O ambiente estava tranquilo.
Uma ou outra mesinha ocupada. As pessoas conversavam com suavidade.
A Cafeteria ficava num falso subsolo. Dentro de um local de salas de cinema. Reservada e cultural.
Uma parede de vidro ficava quase ao nível da calçada da Avenida. De um lado – as mesas dispostas para refeições maiores. Do outro lado – a Cafeteria. Um clima de acolhimento percorria com delicadeza o ambiente. O cheiro de café dava um toque de serenidade.
Pelo vidro se via o movimento da Avenida. Intenso. Uns passavam carregando agasalhos. Outros os tinham dobrados nos braços. Outros ainda, incautos ou incrédulos, tremiam diante do desacreditado.
Mas uma similaridade era geral. Social. Poderia até dizer - democrática.
Todos caminhavam apressados. Passadas firmes - e fortes.
Não se viravam para a vitrine. Não encaravam as pessoas. Só se desviavam e continuavam. Olhavam para frente. Objetivos.
Lembro que foi uma das primeiras observações que fiz quando me mudei. Completamente imigrante – me sentava solitária em algum Café. Em geral numa específica esquina. Sempre levava um livro. Jamais era aberto. O livro dinâmico passava e virava as páginas ora com rapidez. Ora lentamente. Mas deixando um fio de continuidade implícito.
Nunca se sabe o caminho de uma metáfora. Enfim.
Eu observava. Sentada e presente. Mesmo despercebida - como se ausente. O ir e vir. Os casais. O comportamento dos casais. O exposto dos solitários. A forma como as pessoas caminhavam nas ruas. Como se dirigiam às mesas. Como percorriam corredores. Não importava a estação do ano. Não importava a roupa ou sapatos que portassem. O pisar era o mesmo. Forte. Decidido. Como uma marcha sem banda. Mas ritmada.
Impossível não lembrar aquele autor.
Ele dizia que se conhece a cidade onde se está pelo caminhar das pessoas. O caminhar do Homem. Como uma Qualidade. Ou uma falta dela. Sim. O autor conhecia realmente as cidades. E muito mais ainda - conhecia as pessoas.
Mas – escolhida a mesinha - sentamos.
Começamos a nos decodificar. Desfolhamos as idéias. Desvinculamos os roteiros. Desentendemos as formalidades. Rimos das dificuldades.
Enquanto ele também não chegava – fomos quase refazendo o percurso da Vida. De cada um. E de cada par.
De repente começou a falar das filhas. Duas. Pequenas. Bem pequenas. Cada uma com seu estilo. Com suas pequenas birrinhas. Com suas personalidades se compondo.
Nunca pensara em filhos por preferências. Meninos ou meninas. Era abrangente. Queria ser pai.
Estava esclarecida assim a sua posição diante do mundo. E se via agora pai de duas meninas. Falou os nomes. Falou dos tons de pele. Das nuances dos diálogos. Dos momentos de reflexões. Delas. Da importância dos limites. Da complicada dosagem equilibrada de limitar os limites. Do unificar - sem desvalorizar - sabedoria e autoridade.
Foi aí que compreendi. O que dizia o mestre Frances. Muito mais que um pai da realidade. Só funciona o pai real.
Tão de repente quanto começou a falar - fez um gesto. Brusco.
Virou a cabeça numa rapidez que nunca vi igual. Podia até ter problemas no joelho – como referiu. Mas o pescoço estava em absoluta ordem. Assim.
Virou. De uma vez. Como que procurando.
Olhou para o lado - como que tocado por um chamado.
Não da Avenida. Ou das pessoas que passavam apressadas. Ou do pisar forte de alguém apressado. Ou muito menos atraído pelo cheiro do café delicioso. Que desfilava numa bandeja esfumaçando a salinha. Nada disso.
Na mesa ao lado sentava numa cadeirinha uma menina. Bem pequena.
Enfeitava a sonoridade do local com sua vozinha suave. Cabelinhos pretinhos. Franjinha. Vestidinha de inverno. Sorridente. Foi sentando e falando. Ele foi escutando e virando. Assim. Sincrônico. Simultâneo.
Resgatado - continuou de onde tinha parado.
Mas comentou. Discreto. Saudoso. Parecia a voz da minha filha.
Talvez não fosse de expor as emoções. Vai ver por isso gostava de poesias. Poesia é o Lugar certo de disfarçar. É expondo versos que melhor se ocultam as sutilezas ou as certezas. Da alma. Nisso também os poetas são sábios. Quanto mais os identificamos, mais os perdemos de vista. Procede.
Mas enfim. Até me desconcentrei um pouco da conversa.
Pensei no virar brusco. Na lembrança da voz da filha. Que estava em outra cidade.
Pode ser esta - também - uma das formas de definir um pai. Uma definição possível. Ou – melhor ainda - uma tradução possível.
Assim. Sem frases de efeito. Sem frases sem efeito. Sem alegorias na Avenida. Pela certeza do Lugar - simplesmente e assumidamente - de pai.