Blog de Lêda Rezende

Outubro 07 2009

 

O ambiente estava tranquilo.

 

Uma ou outra mesinha ocupada. As pessoas conversavam com suavidade.

A Cafeteria ficava num falso subsolo. Dentro de um local de salas de cinema. Reservada e cultural. 

 

Uma parede de vidro ficava quase ao nível da calçada da Avenida. De um lado – as mesas dispostas para refeições maiores. Do outro lado – a Cafeteria. Um clima de acolhimento percorria com delicadeza o ambiente. O cheiro de café dava um toque de serenidade.

 

Pelo vidro se via o movimento da Avenida. Intenso. Uns passavam carregando agasalhos. Outros os tinham dobrados nos braços. Outros ainda, incautos ou incrédulos, tremiam diante do desacreditado.

 

Mas uma similaridade era geral. Social. Poderia até dizer - democrática.

 

Todos caminhavam apressados. Passadas firmes - e fortes.

 

Não se viravam para a vitrine. Não encaravam as pessoas. Só se desviavam e continuavam. Olhavam para frente. Objetivos.  

 

Lembro que foi uma das primeiras observações que fiz quando me mudei. Completamente imigrante – me sentava solitária em algum Café. Em geral numa específica esquina. Sempre levava um livro. Jamais era aberto. O livro dinâmico passava e virava as páginas ora com rapidez. Ora lentamente. Mas deixando um fio de continuidade implícito.

 

Nunca se sabe o caminho de uma metáfora. Enfim.

 

Eu observava. Sentada e presente. Mesmo despercebida - como se ausente. O ir e vir. Os casais. O comportamento dos casais. O exposto dos solitários. A forma como as pessoas caminhavam nas ruas. Como se dirigiam às mesas. Como percorriam corredores. Não importava a estação do ano. Não importava a roupa ou sapatos que portassem. O pisar era o mesmo. Forte. Decidido. Como uma marcha sem banda. Mas ritmada.

 

Impossível não lembrar aquele autor.

 

Ele dizia que se conhece a cidade onde se está pelo caminhar das pessoas. O caminhar do Homem. Como uma Qualidade. Ou uma falta dela. Sim. O autor conhecia realmente as cidades. E muito mais ainda - conhecia as pessoas.

 

Mas – escolhida a mesinha - sentamos.

 

Começamos a nos decodificar. Desfolhamos as idéias. Desvinculamos os roteiros. Desentendemos as formalidades. Rimos das dificuldades.

 

Enquanto ele também não chegava – fomos quase refazendo o percurso da Vida. De cada um. E de cada par.

 

De repente começou a falar das filhas. Duas. Pequenas. Bem pequenas. Cada uma com seu estilo. Com suas pequenas birrinhas. Com suas personalidades se compondo.

 

Nunca pensara em filhos por preferências. Meninos ou meninas. Era abrangente. Queria ser pai.

 

Estava esclarecida assim a sua posição diante do mundo. E se via agora pai de duas meninas. Falou os nomes. Falou dos tons de pele. Das nuances dos diálogos. Dos momentos de reflexões. Delas. Da importância dos limites. Da complicada dosagem equilibrada de limitar os limites. Do unificar - sem desvalorizar - sabedoria e autoridade.

 

Foi aí que compreendi. O que dizia o mestre Frances. Muito mais que um pai da realidade. Só funciona o pai real.

 

Tão de repente quanto começou a falar - fez um gesto. Brusco.

Virou a cabeça numa rapidez que nunca vi igual. Podia até ter problemas no joelho – como referiu. Mas o pescoço estava em absoluta ordem. Assim.

 

Virou. De uma vez. Como que procurando.

 

Olhou para o lado - como que tocado por um chamado.

 

Não da Avenida. Ou das pessoas que passavam apressadas. Ou do pisar forte de alguém apressado. Ou muito menos atraído pelo cheiro do café delicioso. Que desfilava numa bandeja esfumaçando a salinha. Nada disso.

 

Na mesa ao lado sentava numa cadeirinha uma menina. Bem pequena.

 

Enfeitava a sonoridade do local com sua vozinha suave. Cabelinhos pretinhos. Franjinha. Vestidinha de inverno. Sorridente. Foi sentando e falando. Ele foi escutando e virando. Assim. Sincrônico. Simultâneo.

 

Resgatado - continuou de onde tinha parado.

 

Mas comentou. Discreto. Saudoso. Parecia a voz da minha filha.

 

Talvez não fosse de expor as emoções. Vai ver por isso gostava de poesias. Poesia é o Lugar certo de disfarçar. É expondo versos que melhor se ocultam as sutilezas ou as certezas. Da alma. Nisso também os poetas são sábios. Quanto mais os identificamos, mais os perdemos de vista. Procede.

 

Mas enfim. Até me desconcentrei um pouco da conversa.

 

Pensei no virar brusco. Na lembrança da voz da filha. Que estava em outra cidade.

 

Pode ser esta - também - uma das formas de definir um pai. Uma definição possível. Ou – melhor ainda - uma tradução possível.

 

Assim. Sem frases de efeito. Sem frases sem efeito. Sem alegorias na Avenida. Pela certeza do Lugar - simplesmente e assumidamente - de pai.



Setembro 24 2009

 

Olhou os óculos em cima da mesinha.

 

Não pegou. Por um instante ficou a observá-los. Assim. Sem mais nem por que. Ia tirá-los do lugar - quando parou. E ficou a tentar entender. Os óculos. As lentes. A correção da visão. Lentes corretivas – como tecnicamente nomeavam.

 

Veio um pensamento.

 

Será que enxergariam algo. Será que viam o mundo diferente do que ela via. Será que precisavam dela – como ela parecia precisar deles.

 

Aquelas lentes acrescentavam. Elucidavam. Transformavam borrões em linhas. E ficavam ali. Ou estavam ali. Em cima de uma mesinha. Fingindo abandono. Talvez pior - sugerindo abandono.

 

Olhou de novo. Agora com ar de desconfiança.

 

Que veriam - além dela. Ou aquém dela. Ou apesar dela. Ou pior ainda – o que escondiam dela. Sim. Ficaram o dia todo ali – de algo deveriam estar em acordo ou desacordo. Mas nada assim – ingenuamente.

 

Notou que uma haste estava um pouco mais torta do que a outra. Não tocava muito bem na superfície plana. Ficava um pouco no ar. A outra mais centrada – atingia a mesa e repousava. Ou parecia. Vai ver a que estava no ar estava mais descansada. Vai lá saber onde é o ponto de relaxamento. De cada forma de visão. Ou de cada haste de visão.

 

Ficou com uma dúvida. De que lado estava a visão.

 

De dentro das lentes. Ou de fora das lentes. Como seria ver a lente ao contrário. Poderia expor a visão delas. Ou ocultar a própria. Será que veria a si mesma de outra forma. De fora para dentro. Já que com os óculos tentava enxergar melhor – mas de dentro para fora.

 

Era uma questão a pensar com mais delicadeza. Concluiu.

 

Se antes enxergava bem – agora precisava deles. Eles deram uma nova idéia do antigo mundo. Num momento em que - corrigindo a seu bel prazer – acrescentava o novo contorno. Apagava o enevoado. Podia até ser um feito perigoso - diga-se de passagem.

 

Lembrou da avó de uma amiga. Sempre avisara. Nem sempre é indicado dedicar muito tempo para a nitidez, menina, nem sempre é indicado dedicar muito tempo para a nitidez.

 

Se os anos passavam - e modificava a forma de vê-lo – deveria ter uma razão. Uma razão muito mais existencial do que confusional. Esta foi a primeira palavra que a fez rir. Confusional.

 

Mas as lentes não pareciam dar importância.

 

Deveriam estar ali contornando outra situação. Não deveria ser por acaso que uma haste se erguia. E a outra se apoiava.

 

Aproximou a mão. Pensou. Vou colocar bem de leve no meu rosto. E ao contrário. Posso me compreender a partir daí. Ou me acalmar – me desentendendo de uma vez por todas. E logo eu. Que fico de análise em análise. Tentando quebrar sentidos. Quebrar textos. Quebrar palavras. Talvez a solução esteja nos inteiros. Nos sentidos concretos.

 

E ali está. O sentido ocultado e exposto em par.

 

Com toda a coragem – pegou os óculos. Mas não podia negar. Pegou com carinho. Com gentileza. Não queria perturbar assim de súbito o que eles viam. Ou queria surpreendê-los despreparados. E assim poder ver o que eles viam.

 

Quase riu – não fosse a seriedade da situação.

 

Ajudam a enganar as sombras – por certo. A redefinir os contornos. Mas não como antes. Antes da necessidade deles.

 

Óculos são perfeitos para criar a realidade. Acessória. Quando não mais acreditamos nela. Ou já não confiamos tanto. Ou mais ainda. Quando precisamos de um suporte - para voltar a confiar. Talvez até mais em nós do que na tal realidade. Algo por aí.

 

Foi aos poucos colocando em seu rosto.

 

Primeiro do lado comum. Depois do lado incomum. Tentou ver ao contrário. E no correto. Colocou. Tirou. Olhou para as lentes. Até tocou nelas com os dedos. Reagiram. Ficaram turvas. Compreendeu.

 

Decidiu deixá-los onde estavam por mais um tempo - com as hastes desiguais sobre a mesinha. Por mais um tempo – talvez. 

 

O telefone tocou. Era ele. Vai lá saber por que. Colocou os óculos. Sem delicadezas. Sem pedir licença. Sem teorias. Colocou e pronto.

 

E conversou – nitidamente feliz – com ele ao telefone.

 

 


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