Blog de Lêda Rezende

Março 25 2009

Quando escutou o nome, entrou.


Chegou sério. Assustado, imagino. É realmente temeroso ir sozinho.  Desconheço quem chegue tranqüilo. Diante da suspeita possibilidade de dor em lugares específicos como este. Segurava uma ficha dentro de um envelope plástico com seus dados pessoais. Formal. Receoso. Diria até reservado - dentro do que a sua idade permitia. Seu gestual era limitado. Como se a contenção exterior lhe ajudasse na interior. Vi que se esforçava para fazer ou dizer nada que pudesse ser entendido como errado. Me pareceu, logo depois que se ajeitou na cadeirinha, muito mais cuidadoso que formal. Mas enfim. Esta também é outra daquelas linhas de difícil separação. Entregou-me, responsável, o envelope.


Tentava arrumar pernas e braços. Numa cadeirinha que o cabia com folga. Perguntou pela real possibilidade de dor. Neguei. Interessou-se, então, pelos objetos sobre a mesa. Nomeados e qualificados, acalmou-se. Mas não sem antes dar uma olhada ampla pela sala. Olhou os outros da idade dele que estavam ali – quase - na mesma situação que ele. Todos estavam acompanhados. Viu que ninguém chorava. Deve ter aprendido. Precaução nunca é demais. Pareceu mais confiante. Deu um meio sorriso.


Se ninguém chorava ele também não precisaria temer. Na igualdade sentiu-se amparado. Pela coletividade sentiu-se, talvez, menos ameaçado. Puxou a cadeirinha para mais perto. A esta altura já mais adequado à sua idade. Começou a fazer pequenas investigações, com as mãos, em papéis e materiais expostos.


Perguntei pelos responsáveis diretos. Uma senhora o acompanhava. Preferia, sabe-se lá porque, ficar nem muito perto, nem muito longe. Se necessário, se solicitada efetivamente, se aproximaria mais. Apontei uma outra cadeira, convidei a se sentar também. Recusou. Estava bem. Preferia ficar de pé. Tinha pressa. Gostaria que tudo acabasse logo. Tinha muito a fazer fora dali. Explicou. Sem pudor. Nem meia voz. O pai está detido. A mãe se foi há quase seis meses. Mora comigo. Sou parente. Afastada. Tenho outros a quem cuidar. Ele me dá muita ocupação. Tem um problema. E não tem ninguém para resolver. Mas não tive jeito. Tive que assumir. Ele não tinha mais ninguém. Que eu saiba. Contou sem olhar para ele. Sem tocá-lo. Falou sem recatos. Como um brechó de sentimentos. Gastos. Rotos. Amontoados. Cada um que descobrisse o melhor que ainda pudesse ser usado. E o pegasse para si. Ficou silencioso. Acho que sabia disso.


Contou-me ele mesmo a sua história. Afirmou orgulhoso. Sou um menino de seis anos. Sei fazer muitas coisas, sozinho. Foi uma vez visitar o pai na detenção.  A mãe ainda morava com ele. Não tinha ido viajar. Viajara mas ele sabia que ela ia voltar. Conforme avisou. Quis conhecer o lugar onde o pai estava. E que de lá não podia ainda sair. Ainda. Repetiu. Escutei. Atenta. Contou-me os motivos. Em nenhum momento baixou os olhos. Falava diante de mim.


Foi fazer uma brincadeira. Subiu no beliche de cima. Fez de conta que estava numa escorregadeira. Num parque. A escada escorregou antes dele. Caiu. A acompanhante arrematou a história. Como se fosse uma roupa velha do tal brechó. Perdeu a visão do olho esquerdo nesta hora.


Ele foi logo me dizendo que seria por pouco tempo. Faria um transplante. De córnea.  Alguém, que não precisava mais, ia dar um olho para ele. Avisaram que não doía. E que quando abrisse os olhos enxergaria pelos dois. Ao mesmo tempo. Mesmo que tapasse um. Ou outro. Enxergaria. Passou os dedos no olho ferido. Como uma demonstração.


De repente deu um pulo da cadeirinha. Ficou tão sério que até me assustei. Não sabia o que acontecera. Perguntou pela data. Pelo dia da semana. Conferiu os dados. Confirmou uma outra data. E dia. Pareceu relaxar. Informou feliz. O pai será liberado na próxima semana. Disse data e dia.


Fazia previsões neste todo-futuro. Iria esperá-lo em casa. De vez em quando conferia. Virava em direção à senhora que o acompanhava à distância. Tinha planos. Mas tinha uma dúvida. Que mais parecia um receio de impedimento. Não sabia onde o pai iria dormir. Tinham muitos na casa. Acalmou-se na mesma rapidez que se preocupara. Tinha já a solução. Dormiria na cama dele. Simples. Resolvido. O pai nunca mais o deixaria. Iriam morar juntos numa casa só deles.


Neste momento a acompanhante se aproximou.  Desdenhou da confiança. Falou das vezes repetidas que já fora detido. Justificou a decisão da mãe. Usou adjetivos nada elogiosos. Para o pai. Falou de abandono. De mentiras. De deveres não cumpridos. Do que sobrecarregara a ela. De tudo que desqualificava. O pai. A situação. Só não percebeu que desqualificou a ela também. Na queixa se incluía sem perdão. Nem observou o jeito que ele se virara para vê-la melhor. Esta foi a única vez que ele se moveu para olhá-la. Com a mesma falta de pudor e recato que ela. Olhou de frente. Como num ajuste de visão. Quem sabe em busca da visão correta. Uma espera. Uma cumplicidade. Difícil decifrar. Deve ter enxergado pelos dois olhos. Pensei. Este olhar que ela nem se interessou. Nem percebeu. Ele não esquecerá. Nem depois do transplante. Em seguida ele ficou de costas para ela. Como se longe dali já estivesse.


Interrompi as palavras dela. Não por ela. Mas por ele. Pelo pai. Pelo dia ansiado. Pelos planos. Pela cama já dividida. Pela solidão apaziguada. Pelo amparo antecipado.


Impossível se saber exatamente quem ajuda a quem. Quem favorece a quem. Idade não é garantia. Sexo não é definição. Privacidade não é abuso. Destino não é criação. Estatuto nem sempre é lei. O contrário também vale. Tentei dizer isso a ela. Mas a vi se afastar com indiferença.


Ele continuou sentado aguardando. Quando acabamos o proposto ele se levantou.


Quando ia sair, sorriu. A senhora se retirou na frente dele. Ele atrás dela. Seguindo. Mas fazendo também seu caminho.


Já na porta, virou-se de repente. Para mim. E me fez uma recomendação. Não esqueça. Repetiu o dia e a data que o pai sairia de lá para a casa deles. E sorriu ao afirmar. Prefiro esperar em casa. Mas se eu for buscar, vou ficar do lado de fora. Não vou entrar lá. Para não cair de novo. Sorriu, acenou e se foi.


Não pude deixar de lembrar o mestre austríaco. O estudioso francês. O filósofo alemão. Havia veracidade, maturidade e sabedoria nestas palavras.


E ditas de forma, por isso mesmo, tão simples e ingênua. 


 


Blog de Crônicas - situações do cotidiano vistas pelo olhar crítico, mas relatadas com toda a emoção que o cotidiano - disfarçadamente - injeta em cada um de nós.
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