Blog de Lêda Rezende

Novembro 11 2009

 

Há um saber oculto nas obviedades.

 

Entendi ou descobri sem querer. Ou por muito querer. Enfim. São muitos os desvios que levam às conclusões. Conclusões nunca são lineares.

 

E não foi diferente em relação às obviedades. Elas podem ser tolas. Podem ser desacreditadas. Ou excessivamente criticadas. Muitas vezes transformam um assunto entediante em horas de risos. Ou servem quase de imolação para algum desavisado. E vítima e algoz - trocam de Lugar sem nem perceber.

 

Não importa. Há algo nelas que vai além. Há certa singularidade. Ou talvez um confortável amparo. Que muito acalma a quem se apóia – sabiamente - nas obviedades.

 

Assim fiquei hoje.

 

Há um ano estávamos em grande festejo. Era uma dupla comemoração. Melhor ser mais justa. Era uma multi-comemoração. Ela se libertava. De dores e temores. De choros e pudores. De tanta lágrima caída. De tanta solidão contida. De tanta razão exigida. Das noites mal dormidas. Dos dias exaustivos. Das breves pausas para retomar um fôlego - por si já esgotado.

 

A outra metade teve que ir mais cedo. Numa pressa sem explicação. Mas com a devida aceitação. Sim. Há sempre o que não pode ser mudado.

 

Fazia a primeira viagem por sua conta e autoria. Decidira assim. De um golpe só. Aliás - só - era o alter ego dela. Ela e só.  Até ri agora. Era verdade. Uma dupla unitária. Ou uma unidade dupla. Perfeito. Cada um se sustenta com os parâmetros que escolhe.

 

Mas assim foi. Decidiu. Vou sim. Vou me dar este presente. Aniversário é um precedente. Procedente.

 

Chegou num belo dia de sol. De céu azul. De brisa fresca. Já do avião começara a sorrir. Junto com seu alter ego. Conteve-se um pouco porque se sentiu observada. Mas só um pouco. Estava iniciada a temporada do riso. Quem quiser que duvidasse. Ou reclamasse. Mas não com ela. Nem a ela. Estava em paz.

 

Lembro que pôs as malas no chão com delicadeza. Olhou em volta do ambiente novo. Abriu a porta da varanda. Percorreu com o olhar a paisagem de inúmeros prédios e milhões de janelinhas. E sorriu.

 

Sentiu-se em terra firme. Sentiu um prazer que há muito esquecera. Ou arquivara.

 

O tempo do arquivo - acabou. Abriu cofres e gavetas. E se expôs.

 

Tinha se dado um habeas corpus. E ia usá-lo com todo o direito conquistado.

 

Teve de tudo. Excessos brotaram de todos os cantinhos. Vinho. Compras. Música. De escafandro a borboleta – circulou com sua alegria quase de criança.

 

No teatro a atriz desnudava o corpo para falar da alma. Na vida real ela desnudava a alma – para entender o corpo.

 

Espíritos de vivos e de mortos foram convocados numa cozinha. Uma festa se fez em torno das memórias. A noite permitiu o riso irônico. O vinho coloriu as narrativas. As concordâncias e discordâncias se entrelaçaram até se igualarem. O macarrão do desjejum fez o dia seguinte se estabelecer como – liberdade.

 

Chorou. Riu. Acreditou. Comemorou.

 

Já se vai um ano. Um ano.

 

Desta vez ela não virá. A comemoração será onde mora. Na cidade escolhida. Os amigos reunidos. Equalizado. Sim. Místico e profano. Só não sei se em igual percentual. Equalizado para ela nem sempre é igual a meio a meio. Esta é ela. E seu fiel alter ego. 

 

Já cedo enviou um recadinho. Há um ano estávamos todos em festejos aí. Nunca vou esquecer. Completou no final do recadinho. Estávamos fazendo a maior farra ... ah! que saudades!

 

Cinqüenta anos - de anos especiais. Um por um. Eis alguém que validou todo o registro. Valorizou todo o cartório. Considerou toda a ascendência. Compactuou com a descendência.

 

Assim faz. A cada dia. Respeita e cumpre o prometido.

 

Eis como descobri o valor das obviedades. E a tranquilidade que elas oferecem. Saber assimilar o que é óbvio - possibilita a continuidade da emoção. Mesmo que tantas vezes encoberta pela razão - sempre há por onde escapar.

 

Valorizar a alegria da Existência é sempre a melhor forma de festejar – mesmo que isso seja óbvio.

 

Por isso importa a comemoração. A cada ano. Não faz diferença onde. Há situações em que espaço é limite mais interno do que externo.

 

Saudade também é motivo de parabéns. Tristeza é festejo sem saudade.

 

Do lado de cá do Mapa todos nós erguemos as taças - pelo seu aniversário.

 

 


Setembro 22 2009

 

Estava sozinha.

 

Era já final do dia. Trabalhara dentro do agendado. Atendera todas as demandas que pode. Orientou. Escutou. Reclamou. Compreendeu. Recusou. Aceitou. Defendeu. Proibiu. Acatou. Permitiu. Assim fora o dia. Igual a todos os dias da sua rotina.

 

O frio ainda estava confiante em seu próprio poder. E se mantinha cativo em salas e alas. Ou autoritário. Dava no mesmo. Afinal ele que estabelecia ordens e limites. Ele – o frio.  

 

Quando encerrou as tarefas - voltou para casa.

 

Mal tinha chegado. Ainda estava a decidir a outra rotina - escutou o telefone.

 

Até pensou. Acho que não vou atender. Vou deixar para depois. Agora tenho que seguir uma ordenação. Se não eu que fico aqui desordenada e desarvorada.

Definitivamente - não vou atender.

 

Foi decidindo isso e pegando o telefone. Até atendeu rindo. Eis uma decisão acirrada.

 

Era ela. Atitude rara. Em geral nunca telefonava. Pelo menos para ela. Se servia de mil desculpas. Mas vai lá saber por que – telefonou.

 

No primeiro instante pensou no pior. E isso não era habitual. Este era o oposto dela. Só esperava o melhor. Sempre. Podia atender ao telefone na madrugada – mas sempre acreditando que viria do outro lado uma boa noticia. Já atendia desculpando fuso horário. Como se recebesse apenas ligações do exterior. Ele até ria dela. E ela ria dele.

 

Ele sempre se assustava com o toque do telefone.  Quando a noticia era ruim – ela sempre tinha uma expressão de decepção.

 

Mas lá foi escutar o que ela queria falar.

 

Ela avisou. Precisava lhe falar. Impossível deixar para outro momento.

 

Fiquei lembrando muito de você hoje. Começou durante o almoço. De repente me surpreendi. Só pensava no tempo que você morava ainda aqui.

 

Lembrei das idas a restaurantes. Das risadas que demos juntas. Tantas e tantas vezes. Das suas gracinhas. Do seu jeito de minimizar problemas. E não mais parou.

 

Lembrou daquela vez. Depois - da outra vez. Depois - daquele dia. Da idéia da viagem. Da coragem – mesmo não sabendo onde se amparava. Das lojas onde comprava. Das mudanças. Das diferenças nas escolhas. Nas trocas.

 

Ela continuou falando. Parecia que para si própria. Por que discorria com tranqüilidade. Não cobrava o retorno. Nem sequer o – estou escutando. Só falava.

 

O interlocutor auditivo ocupava um Lugar não bem determinado. Era um daqueles velhos monólogos. Onde a platéia só suspira.

 

A cada registro que ela desenhava – tentava localizar. Não no espaço. Não no tempo. Era uma localização muito mais forte. Era muito mais interna do que externa. Como se preenchesse páginas vazias – ou esvaziadas – a cada frase. Ou como se tentasse preencher.

 

Com a mudança houve lacunas.

 

As citações dos acontecimentos não paravam. Falou sobre atos e fatos.

 

Lembrou de alguns com facilidade. De outros com dificuldade. De alguns riu. De outros fez silêncio. Partes vieram espontâneas na lembrança. Outras sumiram para sempre do registro da memória. Não houve jeito. Ela até insistia. Lembrava até a meteorologia do dia. Mas alguns se foram mesmo.

 

A avó querida de uma amiga tinha uma frase para isso. O que fica no passado é porque este é o Lugar certo de ficar, menina, o que fica no passado é porque este é o Lugar certo de ficar.

 

Pensando assim – se tranquilizou. E poupou esforços ao já tão esforçado cérebro.

 

Despediram-se rindo.

 

Quando ela desligou – ficou calada. Por algum tempo ficou ali sentada. Olhando para o não-sei-onde. Em silêncio.

 

Concluiu. Ou, melhor ainda, questionou.

 

Quantas mãos escrevem a história de cada um. Quantas memórias se unem para compor uma biografia. De quanto do passado é realmente manufaturado o presente. Em qual espelho se credita a história. Qual o princípio da saudade. Ou do esquecimento.

 

A memória.

 

Eis um Lugar onde o egóico – até finge - mas não se sustenta. Eis um Lugar onde a solidão não se inscreve como certeza.

 

Para falar de si próprio é preciso – verdadeiramente – escutar o que o outro fala. Só entendendo-se alheio de si mesmo – pode –se atingir o dentro de si mesmo.

 

Foi cuidar da ordenação da rotina. Não iria ficar ali – como antecipara - desordenada e desarvorada.

 

Riu quando se surpreendeu – quase – jogando um beijo em direção ao telefone.

 


Setembro 11 2009

 

O cenário era o mais - .

 

Parou na palavra mais. Faltou palavra. Sobrou questão. Faltou frase. Sobrou pontuação.

 

Assim. Como uma poesia invertida. Lembrou até do dramaturgo Frances. Ele estava correto. E atual. Era verdadeiro o teatro do absurdo. 

 

A caminhada era em direção à música. A um concerto. Conhecia a orquestra. Conhecia o local. Garantia de prazer com certeza absoluta.

 

Lembrei dela. Íamos muito. A última vez foi com ela. Ainda não tinha optado pelo teatro do além mar. Já acordei enviando recadinhos. Malvada - escrevi rindo. Adivinha para onde vou hoje.

 

O dia estava frio. O céu de um belo azul turquesa. Um ventinho tranqüilo percorria as pessoas e as árvores. Em volta do Teatro - prédios antigos restaurados davam um quase sofisticado toque de elegância - ao antes envelhecido e descuidado. Poucas pessoas passavam caminhando. Só um ou outro que parara o carro mais distante do local do concerto.

 

Foi nesse percurso que surgiu uma esquina.

 

A caminho do concerto.  E foi na virada da esquina que pareceu virar o mundo. Ao avesso. Ou ao direito. Isso nunca se sabe mesmo. Mas parecia que tinha virado. Talvez até coubesse um túnel. O do tempo.  Tudo isso me veio à mente. Aos borbotões. Pode até ter faltado palavra ou frase. Para completar o mais. Porém não faltaram - mais.

 

Ali poderia caber tudo. O começo. O meio. Até o fim. Do mundo. Parecia que espaço e tempo tinham se desordenado de repente. Onde era para ser centro – se transformara no final. Onde era para ser contemporâneo - se transformara em medieval. Mais ou menos assim.

 

Passível de se dizer - assombroso. Ou pavoroso. Ou deprimente. Ou assustador. Ou melancólico. Tudo com um mais na frente de cada adjetivo.

 

Ela vinha. Caminhava seminua. Devagar. Parecia completamente à vontade. Aliás. Termo realmente adequado. Não ria alto. Não chorava.

 

Tinha o sorriso mais tranqüilo – outro mais – que se poderia supor. A roupa suja e rasgada cobria-lhe as partes escolhidas pelo tecido. Não por ela. O que expunha e o que ocultava era um mero detalhe aleatório. Onde não tivesse furos ou faltas – estava coberto o corpo.

 

Olhou para mim. Com aquele mesmo sorriso-tranquilo-social. Fez um aceno com a cabeça.

 

Lembrei do ar sofisticado dos prédios envelhecidos. Só que ao contrário deles - não fora restaurada. Muito menos acolhida. Morava onde deitasse. E sua casa era uma sacola que segurava com a mesma tranqüilidade que sorria.

 

Era jovem. Deveria nem ter chegado à terceira década.

 

Alguns ainda dormiam pelas calçadas. Outros comiam. Outros simplesmente restavam ali. Não olhavam nem para ela - nem entre si.

 

Estanques no particular de cada história. De cada destino.

 

Depois do aceno que me fez, virou-se para o céu. Olhou. Conferiu. Não sei bem o que. Mas pareceu encontrar o que buscava. Fez uma volta sobre si mesma – sentou num degrau da calçada. Displicente com as roupas e seus rasgados permissivos – abriu a sacola. E se concentrou.

 

Quem sabe - uma Pandora de si mesma. Moderna portadora das aflições antigas. Ou o contrário.

 

Mas esta não é uma avaliação fácil - nem confiável.

 

Na esquina seguinte - outro cenário. Surpreendente - não fosse a certeza do procurado.

 

Mudava tudo. Desde cores a cheiros. Desde passantes a ocupantes. Dava até para uma confusão mental. Como se os atores desta peça urbana e a construção apropriada para a encenação - estivessem em desencontro.

 

Lá estava o belo Teatro. Suntuoso. Imponente. E com a fachada em restauração.  Incrível.

 

Até olhei para trás. Ela não estava. Esta não era a esquina dela. Ou ela não era desta esquina.

 

Nas escadarias as pessoas aguardavam. Excessos de tecidos cobriam os corpos. Meias e botas. Sorridentes e falantes – muitos aguardavam a abertura.  O dia frio convidava a agasalhos coloridos. E era um –mais – de delicada sobriedade. Quase uma celebração.

 

Veio o primeiro aviso. O segundo. A orquestra começou.

 

O regente ergueu a batuta.  Excessos e faltas se igualaram e se diferenciaram.  A música preencheu espaços. Enfiou-se em cantinhos. Aguçou sentidos. Liberou emoções. Como se despisse a cada um por inteiro. E cobrisse a cada um por partes.  

 

Na saída voltei pelo mesmo caminho. A Pandora de si mesma e a sua caixa - dormiam aconchegadas.

 

Estava assim – mais - marcado o domingo.

 


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