Blog de Lêda Rezende

Novembro 23 2009

 

Fiquei olhando os pares. Dentro do salão. Repleto e preeenchido por dança e música.

 

Cada par se integrava. Se desintegrava. Dava até uma confusão mental. E tive a sensação de um - virar dois. De dois - virarem três. Até de dois – virarem um. E de muitos - virarem nenhum.

 

Assim a dança os desnudava. Expondo muito mais as emoções do que os corpos.

 

Ela era a mais nova.

 

Não estava desacompanhada. Estava sem acompanhante. Dançava com quem a convidasse. Tinha a pele muito branca. Magra. Esguia. O cabelo repuxado para trás deixava-lhe o rosto mais à mostra. Traços finos. Exóticos.

 

Ficava todo o tempo com a sobrancelha erguida. Como uma tatuagem. O vestido – preto - obedecia com rigor os contornos da pele. Usava uma delicadíssima e alta sandália. De camurça vermelha. O conjunto permitia destacar o que mais importava. Os pés. Por que para os pés - que olhava de momento em momento.

 

Dançava com cautela. Temia o encontro dos corpos. Mãos e rostos próximos. Corpo e pés afastados. Parecia não dançar. Só se apoiar. Tinha uma expressão triste no rosto. Mas sempre que agradecia ao seu par – sorria.  E voltava - só - para a cadeira.

 

Eles eram dançarinos antigos.

 

Tinham um jeito teatral. Como se a dança fosse uma arte lúdica. Podia ser vivida como quisesse. Até com um pouco de desprezo. Sem cautela e sem controle.

 

Talvez a cumplicidade do casamento já não mais existisse. Mas a da dança permanecia jovem. Ele já idoso. Magro. Recurvado. Um terno preto dava um toque discreto de preparação. Ela mais alta. Disfarçava a idade com maquillage. Cabelos soltos e curtos cobriam uma parte do rosto.

 

Um vestido vermelho longo descia rebelde a curvas.  Uma sandália preta com pedras brilhantes faiscava diante do vai-e-volta dos passos da dança. Não se olhavam. Mas se entendiam. Trocavam pernas e braços. Enlaçavam e desenlaçavam. Mas em nenhum momento se olharam ou se abraçaram. 

 

Eles eram iniciantes.

 

Ela chegou tímida. Olhava mais para os lados que para o piso. Media espaços. Deslocava a roupa. Um vestido preto de tecido mais brilhante. Puxava sempre para baixo. Como se isso a fizesse menos visível. E ao mesmo tempo despertasse os olhares.

 

Parecia oscilar – entre se cobrir - ou se expor. Os cabelos eram longos. Avermelhados. Usava uma sandália preta. De salto tão incrivelmente alto – quanto fino.

 

Ele a guiava com cuidado. Lento. Porém mais confiante. Em si. E talvez nela. Quando o passo exigia que os corpos se separassem – e as mãos ficassem presas – ele a trazia com delicadeza.

 

E ela parecia vir com disponibilidade. Este era um dos poucos momentos que esquecia o vestido. E olhava para ele. Rindo. Ele fazia uma expressão de acolhimento – com os braços e com os olhos.

 

Eles eram ocasionais.

 

Entraram um pouco afoitos. Não decidiam a posição da mesa a escolher. Conheciam o espaço. Mas não sabiam lidar com ele. Demoraram a decidir. Decidiram. Arrependeram. Mas não mudaram.

 

Ela usava um vestido preto. Curto. Os cabelos de cachos caiam pelas costas. Talvez desobedientes ao planejado. Irritava-se de vez em quando. E os puxava para o lado do rosto. A sandália era preta. Com uma flor vermelha lateral.

 

Ele estava com um terno preto. Uma gravata vermelha. A flor vermelha do sapato dela e a gravata vermelha dele -- parecia ser a única comunicação compartilhada entre eles.

 

Dançaram duas ou três músicas. Suado – ele pediu para sair. Puxando os cabelos para o lado – ela o seguiu.

 

Há muitos anos assisti a um filme. Passava-se todo num salão de Baile. Uma filmagem atual. Sobre um período passado. Toda a História se passava sem que uma palavra fosse verbalizada. A música, a dança, o gestual e as roupas denunciavam vontades e recalques. Dominadores e dominados. Invasores e submetidos. O contexto social emoldurava as emoções. Mas o contrário se faz sempre - impossibilitado.

 

Inesquecível. Bendisse até a famiglia do diretor. Mas foi ali sentada. Diante do ritmo e da contorção dos corpos. Da mistura de sexos. Da ambigüidade dos gestos. Que me veio uma sensação forte.

 

Me vi assim. De repente. Dentro do tal filme. Participante anônima das mesas circundantes.

 

A Vida desfila diante de nossos olhos. Todo o tempo. Sem precisar pagar ingresso. Ou comer pipoca. Ela vai tecendo e compondo. A cada nó desatado - prossegue uma linha tortuosa. E meio que à deriva – nos fingimos cegos de nós mesmos.Ou melhor. Meio cegos de nós mesmos – nos fingimos à deriva.

 

Quando sai – não resisti. Dei uma olhadinha para trás.

 

Tudo continuava. E se repetia. Perfeito.

 

 


Novembro 21 2009

 

A noite era de festejo.

 

Parceria comemorando a individualidade. Uma noite em que o início seria celebrado. Mais ou menos assim. Ele estava feliz.

 

A noite estava clara. Quente. Carros passavam acelerados pelas largas avenidas. A música se integrava a cada esboço de aglomeração.

 

A escolha fora dele. Deste especial espaço. Optava por conhecer os hábitos nativos. A rotina dos habitantes. Não a rotina de quem chega. Não as apresentações programadas. Sempre foi o estilo dele. Descobrir o natural. Ver os bastidores. Para entender as veracidades. E até as falsidades.

 

Enfim. Lá chegamos.

 

Chegamos cedo. Mais cedo que o habitual do lugar. Ainda bem. O ambiente justificava este propósito.  Ser antecipadamente pontual.

 

Da entrada já se compreendia.  Era quase um santuário. Era um Lugar especial. Aconchegava noites. E fazia de todas – noites especiais. Uma beleza.

 

O cenário era maravilhoso.

 

No acesso principal se destacava uma cristaleira. Colocada suavemente a um canto lateral. Qual um símbolo. Enorme. Com taças ordenadas nas prateleiras. Os cristais lindamente trabalhados. Talvez o fruto da visita de algum deus à Terra. Mãos divinas ali deveriam ter tocado. Mesmo que – possivelmente - disfarçadas.

 

Um longo salão. Longitudinal – escutei este comentário. Não vi quem falara. Certamente alguém desavisado. Nada entendia de medidas. Só de exatidões.

 

Longas e envernizadas colunas de madeira escura contornavam o espaço. Fingiam delimitar ou amparar as laterais do teto. Ou mais ainda. Demonstravam a longa distância. E a diferença entre chão e teto. E as infinitas possibilidades de sonhos que esta distância abriga. Perfeito.

 

O piso era em mármore. Branco. Menos branco do que deve ter sido um dia. E talvez menos plano. Mas bem cuidado. Nem um risquinho inadequado emoldurava esta tela. Sim. O piso era uma tela. Foi o que pensei um minuto depois.

 

As mesas serviam de moldura. Alinhadas em volta do salão. Eram de madeira escura. Espaldar mediano. Assento acolchoado de veludo verde.

 

Tudo disposto de uma forma delicadamente estética. A cada um era permitida visão sem restrição.

 

As pessoas foram chegando. Pessoas comuns. Sem brasões. Sem vestuário griffado. Sem grandes belezas midiáticas. Sentavam. Elegantes. Apenas a postura denunciava uma sutil superioridade. Muito mais interior que exterior. Não dava para entender muito bem. Sou terrena demais. Conclui.

 

A intimidade com o local não abrandava a formalidade. Mas também não impedia o prazer associado.

 

Percebi que homens e mulheres seguravam sacolinhas. Continham os sapatos. Extras. Especiais. Funcionais. De cada um.

 

Quando trocavam os sapatos – uma surpresa. Deixavam de ser cada um. Se transformavam em pares. Belos. Belos pares. E longe de serem pessoas comuns. Transformavam-se em Pessoas. Suficiente.

 

Iam ao salão e dançavam.

 

Trançavam pernas. Com suavidade e decisão. E transparecia a sabedoria. Como se a cada passo – uma revelação. Do estilo. Dos pensamentos. Das buscas. Dos encontros e desencontros. Um pedacinho exposto da real história.

 

A música ordenava os movimentos. Mas as mãos dos homens - nas costas das mulheres - serviam de batuta. Marcavam o ritmo. Denunciavam o comando.  Tamborilando na pele as mil formas de ordenar.

 

Os garçons cruzavam de um lado para o outro. Mas não sem uma regra. Que é talvez muito mais que uma Lei. Só o faziam quando o salão esvaziava. Nada era oferecido enquanto a música da dança tocava. E os pares – dela apenas se serviam.

 

De tempos em tempos – a música era substituída. Por um tipo de jingle codificado. As pessoas voltavam para as cadeiras. E as bebidas ficavam - por poucos minutos – responsáveis pelo prazer ordenado. O salão expunha a solidão. E a tela se fazia branca.

 

Permaneci sentada ali. Ao lado dele. Olhando as danças. Os rituais. As sacolinhas. A troca de sapatos. Os pés e as mãos obedecendo e comandando.

 

Talvez nem sempre na proporção desejada. Mas num ritmo compartilhado.

Entendi. Talvez não a dança. Nem a completude dos pares. Muito menos os comandos corretos.

 

Diante da tela que se dispunha a solidarizar com o imenso espaço vertical – entendi uma parte da Vida.

 

Saímos de lá mais leves do que chegamos.


 

publicado por Lêda Rezende às 15:15

Novembro 15 2009

 

Nem acreditava.

 

Tantos anos sem praticar a  impulsividade. Teve um tempo que era atleta nessa modalidade. Ao menos assim considerava. Estilo medalha de ouro. Por certo não perderia uma maratona – caso houvesse uma. Ou restasse concorrentes.

 

Houve um tempo de ponderação. E nesse tempo a razão fez a regência.

 

Vai lá saber o que deu nesse dia. Uma revirada. Não diria reviravolta porque parecia não ter a tal volta. Vai ver foi um sonho cubista. Algo assim. Bem fora do habitual-recente. Provocou um momento de atenção. Um insight.

 

Quem sabe fez lembrar o tempo que escorre - por entre muros e dedos. Ou fez despertar para o meio tempo que a vida corre -  entre planos e promessas. Enfim. 

 

Nem lembrava mais do  estilo construído. E constituído. Havia esquecido esta parte. Sim. Antes era diferente. Sempre agia em comum acordo - com a  vontade. Mas já fazia tanto tempo. Nem dava para datar mais quando fora a ultima vez. Quando o impulso fora um ato realizado. 

 

Mas não importa. Nem o tempo surrealista escorre pra trás. Nem o para trás escorre no tempo realista.

 

Desta vez retomaria de onde parara. Seria - sem recuos. Melhor conceder um pouco de autoridade à ideia. Mas também não foi sem esforço.

 

A situação fez lembrar um dos conselhos da avó. E' sempre tão contraditória a manutenção das decisões, menina, é sempre tão contraditória a manutenção das decisões. Estava certa.

 

Acordar com a ideia. Decidir  como se decide um sonho. Sem a interferência do consciente. Eis um processo por si só - comprometedor. 

 

Mas ato e fato estavam destinados a uma parceria. Ao menos desta vez. Depois veria o que fazer. Caso surgisse algum tipo de impedimento. Ou de restrição. O depois deve ter sido inventado justamente para ser usado. Perfeito.

 

Conclusão definida.

 

Este o mês de aniversário dele. Desde o primeiro dia do mês fizera surpresinhas. Presentinhos. Colocados em lugares e horários especiais. Para tornar ainda mais especial a data. Todos sempre faziam piadinhas. Do quanto é bom fazer aniversario no final do mês. Mas para quem lhe conhece. Destacavam rindo. Tem muitos e muitos dias de presentinhos e pequenos mimos.

 

Enfim. Mas desta vez o desfecho será diferente. No dia exato estaremos lá. Comemorando lá.

 

Cedo telefonei para ela. Expus a direção. Ela foi logo avisando. Deixa comigo. Farei a parte braçal do plano. Desligamos rindo.

 

Não nego. Por um segundo o pensamento circulou pela cabeça. Um frio percorreu coluna vertebral. Não. Vou avisar que desisti. Que foi um acesso banal de insanidade. Temporária. Já estou curada.

 

Acho que ela lê pensamento. Mesmo à distância. Fui pegando o telefone para informar - já fui atendendo. Era ela.

 

Consegui tudo. Fica tranquila. Uma beleza de ideia. E a muito baixo custo. Perfeito. Anota o número do vôo. E imprime também o voucher do hotel. Boa viagem. Divirtam-se.

 

Sentei. Estava deflagrada a retomada da impulsividade. Que vengam los nuevos dias. Ri.  Três dias de festejos. Em terras para ele ainda desconhecidas. Uma festa diferente.

 

Mas sempre se sabe. Nada é perfeito. Aprendi rapidamente um novo axioma. Pelo menos - novo para mim. Rotina - tem este nome por que não admite surpresas. Nem perdoa impulsos. Assim. Simples.

 

Não teve opção. Agenda adiantada. Horários acrescentados. Jornada triplicada. Nada é depois. Outro axioma. Rotina entende até de antecipação. Mas nunca de adiamento. Foi um tal de acelerar e pré-estabelecer como nunca dantes imaginado.

 

E o corre daqui. Acelera dali. Retoma de lá. Aceita de cá.

 

Vencidas. A rotina. E eu.

 

E foi de repente que anunciei. Assim. Com ar de quem apenas sugere. Falei contendo o riso.

 

Este ano será estilo cumpleaños. Não. Não em casa. Será no Caminito. Quizá a Media Luz. Riu. Acho que até duvidou da própria escuta.

 

Entreguei os impressos. Riu de novo. Mas com olhos bem abertos. Adorou. Celebrou.

 

As malas já estão prontas. Como diz a canção: de tarde, té con masitas. De noche, tango y cantar.

 

 


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