Blog de Lêda Rezende

Fevereiro 01 2010

 


Como fui fazer isso. Sou mesmo imprudente.

 

Sempre me disseram isto. Minha avó me aconselhava. Prudência acima de tudo, menina, prudência acima de tudo. Mas nada. Estou sempre esquecendo os bons conselhos. Ao menos conheço muitos seguidores deste tipo de esquecimento. Mas agora não é hora para estatísticas. Estatísticas de nada servem. Só apontam. Não solucionam.


Não era ele. Mas como eu iria adivinhar se ele é quem chega esta hora e toca a campainha.


Ele tem a chave. Mas sempre toca a campainha. Deve ser para me escutar correndo pela casa. E abrir a porta sorrindo. Ele e a vizinhança toda. Sim. Corro bem rapidinho. Fazendo barulho para ele escutar.

Mas não era ele. Como explicar. Nem sei. Com a quase falta das roupas veio a quase falta das palavras. Bem existencialista. Pensamento cru. Nu. Ri da analogia.

 

Não é só o pensamento que está nu. Ou quase nu. Já é uma forma de vestir. Quase - veste muitas vezes - muito mais. Mas se não é hora para estatísticas, imagina para filosofia. Ri. Acho que ri. Correndo pela casa. Enrolada numa toalha. E abrir a porta.

 

Foi um dia tão árduo. Acabei de voltar do cumprimento do juramento. Hipocrático. E essa me acontece. Que situação. O olhar dela. Parecia que estava vendo um fantasma. Ele. Mal me falou de tanto que ria. Ele tem bom humor. Ou já se acostumou com meu jeito. Não desse jeito. Mas não complicou.

Tudo já estava complicado. O suficiente.  Ela ficou séria. Perguntou se eu estava com algum problema. Lógico que estou. Alguém sem problema sairia correndo pela casa para abrir a porta de toalha sem nem querer saber quem poderia ser. Não falei. Pensei. Não estava com este fôlego todo. Hipócrates ficou com a maior parte. Do meu fôlego.

Lembrei da frase dele – cada uma que se escuta.

Sorri educada. Educada. Esta palavra está em total desacordo. Com a situação. Ela deve estar com medo que seja algum mal de família. Ela sempre repete aquela frase. De por um levar todos. Ou por todos levar um. Já não sei mais. Deve ter também uma toalha em meu cérebro agora.

E tinha que acontecer logo com ela. Justo com ela. Sempre julgando. Analisando. Conferindo. Decidindo. Sempre séria. Humor difícil. Bom humor difícil. Vive apreensiva. É o que me parece. Mas não estou em condições de muita apreciação. Neste momento. Nestas horas é que discordo do pensamento do austríaco. Muitas vezes é exatamente como parece.

Lembrei daquele outro dia. Também mal tinha retornado. Já atendi ao telefone me nomeando propriedade de quem estava do outro lado da linha. Eu. Sua mulher. Falei assim. Em alto e bom som. E um riso anexado.

 

Onde já se viu. Nem esperei escutar direito a voz. E já fui com a oferta. E o sujeito entendia nada. Nem eu. Foi um suor. Esta é a palavra exata. Eu e o desconhecido a tentar adivinhar quem estava errado. Ou se havia mesmo um erro a ser detectado.

 

Isso sem falar num cliente. Chamei de meu amor. Novamente pelo telefone. Ele nem sabia mais se era meu cliente. Ou pior. Que tipo de cliente ele queria ser. Devo estar ficando compulsiva. Por telefone. Por estranhos. Ri.

E ele riu muito quando soube. Ele ri feliz porque só penso que é ele.

Não sou só imprudente. Sofro de mania de surpresa. Outra conclusão sábia. Só é imprudente quem sofre de mania de surpresa. Genial. Ele tinha me dito que só viria muito tarde. Mas eu achei que faria uma chegada inesperada. E lá se fui correndo dando asas e pés à imaginação. Só devia ter colocado uma roupa. Para não passar esta vergonha. Agora ficou parecendo letra de bolero antigo.

Conclusão rápida e certeira. Imprudência é estrutura. Quem é imprudente é no ato e no pensamento. Não entende a palavra combinado. Não existe combinado não alterável. Esse é o pensamento do imprudente. Vive de inesperado. Abre portas à toa. Nem sempre dá certo. Nem sempre o final é feliz. E sempre repete que vai mudar. E quebra o combinado consigo mesmo. Só não decidi se sofre mais ou menos que o prudente. Esse é um pensamento para outra ocasião. Com menos toalha envolvida.

Ela me mandou ficar à vontade. Não iriam demorar. Como assim eu ficar à vontade. Mais. É verdade. A falta de humor conduz ao pouco raciocínio. Isso deveria já ser um axioma. Ela sempre séria. Pouco ri. Também parece não escutar o que fala. Se me colocar mais a vontade que farei. A palavra escalpelo me veio. Ri. Dela. Lógico.

Muita observação. Para quem está na situação que estou. E na sala. No sofá da sala. No velho e bom sofá da sala. Qualquer dia escreverei. Sobre este bom amigo. Acho até que já escrevi. Só não sei onde está. O texto. O sofá e a toalha eu sei. Ainda. Sim. Com licença. Acho que este é o pedido inflacionado. Universalmente. Pedir licença. Pede-se licença. E, muitas vezes, pede-se a nada. Ou para nada. Nova descoberta.

 

Sou uma filósofa quando estou abraçada a uma toalha.


Chega. Ordenei ao meu cérebro. Sossega. Chega. Já me basta a bizarra situação.

 

Melhor colocar uma roupa. Sem correria. Mais conveniente ir andando. Bem devagarinho. Até o quarto. Como se uma lady antiga fosse. Pensei em falar algo bem profundo. Uma explicação bem profunda para a situação ficar desculpada. Vieram mil idéias. Estava lendo Filosofia Alemã e esqueci de vestir a roupa. Estava pensando em fazer uma meditação zen budista e nem deu tempo de vestir a roupa. Escutei a campainha tocar e achei que era ninguém e vim confirmar.Mas nenhuma destas frases me parecia adequada. Ao inadequado da situação. Mais existencialismo. Se falar muito acabo é internada. Interditada. Algo por aí. Melhor dosar bem as palavras. Já basta a tal toalha.

Já vão. Tão rápido. Não. Já tomei banho. Quer dizer, ia tomar banho. Não. Estava saindo do banho. Nossa. Quanta confusão. De repente me parece que o mundo gira em torno de uma toalha. Está bem. Voltem sempre que quiserem. Adoro ver vocês por aqui. Que bobagem. Não precisam avisar.


Estava aguardando seu telefonema. Eu estou ótima. Só com um pouco de calor. Vou tomar um banho. Já que a toalha está tão à mão. Não. Esquece. Depois explico. Melhor usar a chave de agora em diante. Ou vai ficar na porta. Esperando eu me arrumar. Com direito a salto alto e blazer. E passos suaves. Nada mais de correria. Prudência, prudência acima de tudo. Meu novo lema. Como assim não está entendendo a minha fala? Ri. Depois vai entender.

 

publicado por Lêda Rezende às 20:44
Minhas Tags: , , , , ,

Novembro 29 2009

 

O acidente fora terrível.

 

Uma profissão onde o acidente era o oposto exato ao proposto. Foram cedo cumprir suas funções. Rotineiras. Tentavam colocar os pontos subterrâneos de ligação de luz. Dentro da terra. Submetidos ao mundo.

 

Na explosão – ficaram no escuro. Queimados. Lá embaixo. Os dois.

 

Retirados – foram encaminhados ao local de socorro. Desorientados. Gementes. Ainda sem compreensão. Os acidentes são rápidos. O entendimento é lento. Como uma defesa. Do corpo. Da emoção. Da sensação.

 

É preciso mais que uma explosão – para que o pensamento se adeque a uma situação súbita. Seja ela qual for. Assim eles estavam. Assim chegaram à Unidade de Emergência.

 

Corpos queimados. Retorcidos. Contaminados. Entre o que impede e o que invade – uma fronteira tinha se rompido.

 

Ela encerrara o período de especialização. Um dia avisara. Jamais voltaria a cuidar de queimados. Delicada - sentia o peso da dor já no atendimento. Rigorosa nos procedimentos – temia nem sempre ter acesso ao necessário. E diante de si mesma – assim decidiu. Não. Nunca. Atuaria em outras áreas.

 

Esta não cabia mais a ela. Em uma só modulação vocal - convenceu ao outro e a si mesma. Repetiu. Não. Nunca. Decisão exposta e imposta.

 

Escutei uma vez alguém comentar. O Universo é surdo diante de nãos e nuncas. Perfeito. Deve ser esta a explicação.

 

Eles chegaram. No momento exato em que ela chegava. Um encontro. O encontro. Inadiável. Irrecusável. Sim. Agora mesmo.

 

E a partir do encontro – quarenta dias se seguiram. Uma nova rotina se estabeleceu.

 

Durante este tempo - ambos inconscientes. Respiravam por tubos.

 

Alimentavam-se por tubos. Nada sabiam. Nada viam. Nada escutavam. Corpos presentes - nas ausências.

 

Cuidou deles no silêncio. Durante os quarenta dias seguintes acordou às seis horas da manhã. Pontualmente. Ia para a Unidade. E os operava. Todos os dias. Enxertos. Remoções. Composições. Fazia todos os procedimentos necessários. Silenciosa. Como eles.

 

E à medida que eles melhoravam – ela ia se transformando. Só descobriu isso um tempo depois.

 

Nem toda pele é externa.

Há sempre uma outra. Invisível. Intocável materialmente. Mas que também faz contornos. Que também pode ser ferida. Ou festejada. Que permeia as emoções. Reorganiza um novo corpo dentro do inconsciente de cada um. Vai se construindo junto com o amadurecimento. Não da idade. Mas da própria Vida.

 

Algumas vezes imaginava como seria o despertar. Deles.

 

O dela já acontecera. Desde o primeiro encontro. Agora restava o deles. Para complementar o dela. Mais ou menos assim - também - é a Vida. Enfim.

 

Imaginava a apresentação. A confirmação. Que diriam quando acordassem. Havia um conhecimento de um lado. O dela. E um desconhecimento do outro. O deles.

 

Às vezes até ria. Mulher. Magrinha. Com suaves traços orientais. Jovem. Não alta. Eles iriam se assustar. Mas seguia. Diariamente. Cumpria com integridade o que a si propusera.

 

Chegou o dia. Eles acordaram. Primeiro um. Logo depois o outro.

 

Se olharam. Se viram.  Se enxergaram. Assim. Pareciam se constituir pelo olhar. Primeiro individual. Depois a busca pela parceria. Numa sequência quase perfeita. Se re-conheceram.

 

Revistaram a pele externa. Iniciaram – solitários - a recomposição da pele interna. Lembraram o acidente. Escutaram a explosão. Foi um período complicado. Havia um passado não vivido para ser assimilado. Com uma etapa faltante. Qual um nascimento – só que com memória. E o resto seria composto pelo outro. Pelo relato do relato.

 

Há um ano eles a visitam nas datas ditas especiais. Gratos. Íntegros. As marcas que portam – não impedem a vida que tinham. Exercem suas atividades dentro do planejado.

 

Ela feliz - elogia. Não a ela. Mas à pele deles. À coragem deles. Mesmo que aparentemente ausentes. Venciam suas batalhas na Unidade - como na função profissional. O objetivo persistira - concluir com luz.

 

Há algo inegável. Eles chegaram. No momento exato em que ela chegava. Um encontro. O encontro. Inadiável. Irrecusável. Sim. Agora mesmo.

 

Semelhante à pele - nem toda Luz é a visível.

 


Novembro 19 2009

 

Não podia ser denominada de decisão. Talvez nem de escolha.

 

Mas não. Discordava de si mesma. Foi uma escolha. Sim. E uma decisão. Sim. Era só uma questão de ordenação. E isso não é lá muito fácil. Enfim. Estava já ali. Deitada. Aguardando.

 

Procedimentos são assim. Uma vez deflagrados - seguem seus ritmos. E se tornam libertos. Independentes das vontades. Pelo menos das dela. Se de um lado sobrava autoridade - do outro sobrava – obediência.

 

Agora não era momento de rebeldia. Conclusão que a acalmou. Incrível. Mesmo sendo ela.

 

Lembrou da avó de uma amiga. Às vezes é preciso ceder para acceder, menina, às vezes é preciso ceder para acceder.

 

Não entendera esta frase antes. Naquele momento menos ainda. Sentia-se um pouco confusa. E o Tempo parecia se misturar. Mas apenas lembrou. E deixou lá. Estava realmente obediente.

 

Agora era enfrentar. E eis algo que sempre fez. Enfrentar. Poucos sabiam dos medos.

 

Muito se espantou quando ela comentou. Eu sei que você é frágil. E que tem pequenos e grandes medos.  Mas sei que finge bem – para muitos. E riu ao falar isso.  E com total e absoluta desenvoltura. Bem ao estilo. Sem preocupações eufêmicas.

 

Deve ter feito aqueles olhos de desenho animado. Devem ter saltado longe das órbitas. Se surpreendeu. Desde quando ficara transparente. Até se aconchegou com os cobertores. Assim. Como um reflexo medular. Mas não discordou. Ela a conhecia bem. Seria perda de tempo. E já estava com bastante problema de mistura de Tempos. Era suficiente.

 

Ela entrou. Foi avisando. Ordenando. Vai sim. Vai subir após este procedimento. São orientações a serem seguidas. Não um tema em discussão.

 

Aplicaram. Intramuscular. Doeu. Muito. Puxou para si o tal lençol branco. Avisou que ia ceder rápido. Sedada cedente. Este o último chiste. Para ele que a olhava – amorosamente - pálido. Muito pálido. E muito amorosamente.

 

Sentiu a mão dele - apertar a dela. Pensou no milésimo de segundo que restou. Há um especial “apiedamento” enlaçado com o amor. Ou o contrário.

 

Olhou para o lado. Tudo mudara.

 

Que terrível engano. Estava nos Alpes. O branquinho era da neve. Não tinha lençol. Que confusão que fizera. Deveria ser por causa da altitude.

Olhou para os pés. Os sapatos eram de solado grosso. Uma segurança. Evitaria que caísse. Estava com meias grossas. Sentia isso entre os dedos.

Olhou para baixo. Subira a três mil metros de altura.

E olhava o mundo do alto - envolta em silêncio. Absoluto. Sentiu uma paz enorme.

 

Quase reclamou. Foi um barulho forte.

 

Ali também se corrompia o silêncio. Surgiu um teleférico. Procurava ver de onde saíra. Mas não dava. Era longo. Percorria uma trilha estreita. A altitude tinha mesmo mexido com ela.

 

Agora estava dentro do teleférico. A cabine era ocupada por seis pessoas. Seis. Contou e recontou. Mas não sentavam. Ficavam de pé. Ela não conseguia ficar de pé. Somente ela. Obedeceu. A paisagem era linda.

 

Havia uma luz forte. Diante dela. A cada espaço branco – surgia um amontoado verde. As árvores brincavam na neve.

 

Estava há quatro mil metros. Mesmo não entendendo de números – sabia que estava muito distante. Do chão. Do lá embaixo. Mas se segurou numa gradinha. Como fora esquecer as luvas. A gradinha estava tão fria.

 

Sentiu um abalo. Alguém informou. Vai mudar de cabine. Não entendeu bem. Ia dizer que não queria. Sentiu que a mudaram. Ninguém parecia se importar com o querer dela. Enfim. Deve ser o estilo Alpino. Tentou rir.

 

Seu próximo texto seria sobre a altitude. Nunca imaginara sentir algo assim. E ainda disseram que era normal. Não sabia mais quem dissera. Mas registrara o comentário. E buscava entender o tal normal avisado.

 

Quase deu um pulo. O celular caiu. E junto com ele a câmera fotográfica. Que pena. Foi só o que pensou. Não teria como demonstrar. Não teria prova documental. Só das palavras.

 

Notou uma placa de cor marrom num ponto alto da montanha. Leu o que estava lá escrito. Este teleférico foi construído há cinqüenta anos. Alguém acrescentou - numa plaquinha ao lado. Em cinqüenta anos – apenas um acidente. Fatal. Para todos. Mais outro aviso. Este local está a quatro mil metros do nível do mar.

 

Ficou tentando compreender. Que mar. De que mar as pessoas falavam.

 

Sentiu um frio súbito. Escutou algumas vozes. Não compreendeu o que falavam. Devia ser algum idioma codificado. Coisas das alturas. Tentou rir. Ou riu. Não tinha certeza.

 

Viu que ele vinha de lá. Caminhando em direção a ela. E sorria - um riso solidário.Tentava lhe dar a mão mais uma vez. 

 

De repente - abriu os olhos. O lençol branco a envolvia. Ele a olhava - corado. E rindo.

 

Ela perguntou. Há quantos mil metros de altitude nós estamos.

 

Ele riu. Estamos no sétimo andar. Deixa de ser exagerada.

 

Deu-lhe um beijo. Ele disse. Com expressão de alívio conquistado. Ou Bem recebido. Felizmente acabou.

 

E aconchegou-lhe a mão – ainda um pouco fria – com carinho.

 

Ela nada contou. Ainda estava com muito sono. Mas sorriu ao ver um floquinho de neve passar - disfarçado - janela abaixo.

 


Novembro 17 2009

 

Quase não acreditei.

 

Abri a porta do quarto. E fui em direção às escadas. Assim. Com a sequência reconhecida. No habitual da rotina. O ato em si. Mas desta vez fugia ao destino.

 

Desta vez um rumo novo. Uma direção escolhida. Uma data festiva a ser comemorada. E tinha hora certa para dar inicio. A hora da partida sendo a mesma do inicio. Perfeito.

 

Lembrei logo da minha avó. Ela afirmava com propriedade. Entre o que começa e o que termina não tem sequer uma linha, menina, entre o que começa e o que termina não tem sequer uma linha.

 

Foi pensando nisso que sai do quarto. Entre a alegria da novidade. E o pensamento já antigo.

 

Primeiro o susto.

 

Estava tudo branco. Não via a paisagem. Só a cor branca se fazia plena. Muitos pensamentos se enfileiraram. Talvez em auxilio. Lembrei do Ensaio. Lembrei do Disco. Fiquei tentando adivinhar as cores. Compreender o excesso. Parada. Antes mesmo de descer as escadas tudo já havia ocorrido.

 

Não faltaram ideias. Ou recordações. E tudo diante do branco de uma paisagem ocultada. Enfim.

 

Depois a decisão.

 

Desci as escadas. Do lado de dentro - sala estava envolta no branco. Do terraço não se via nem o gradil. Como se houvesse nada além da imensidão branca. Ocupando todo o espaço. Apagando obstáculos. Limites. Acessos. Coerente com o incompreensível.

 

Mas lá me fui dar conta do planejado. Sem filosofias. Sem construções literárias. Tinha que prosseguir em tempo. Pelo tempo. Dentro do tempo. Que o branco lá ficasse.

 

Pragmatismo em ação. Tudo resolvido.

 

O que sobrou em branco - sobrou em falta. Faltava teto. Esta a explicação lógica. Sem teto – sem pouso. Sem pouso – sem decolagem. Simples assim.

 

Podia-se olhar o branco pelo tempo que agradasse. Mas do solo. Só isso. Enfim. Várias parcerias se estabeleceram. E lá ficamos a aguardar que pelo menos uma delas se dissolvesse. Para que o projeto continuasse dentro de uma possível execução.

 

Quando o Disco iniciou sua decomposição – o azul foi se aproximando. Enfim.

 

Cores e nuances iniciaram as suas tarefas. Com o mundo colorido – voltou-se ao propósito inicial.

 

Já não era sem tempo - disseram alguns. Olha o tempo que perdi – comentaram outros. Agora não chegarei mais a tempo – falou alguém com tristeza na voz.

 

Alguns se olharam. Outros ficaram dentro dos seus pensamentos. Talvez nem tão brancos como antes a paisagem. As expressões eram bem tensas. Talvez estivessem no oposto do Disco. Vai lá saber as conseqüência de uma total brancura. E alheia a qualquer avanço tecnológico. Uma brancura por si só.

 

Uma cor – é uma cor. Apenas isso.

 

Quando todos se acomodaram – os avisos começaram.

 

Orientações sobre segurança. O que é proibido. O que é permitido. O que é impossível de ser transgredido. Seguidos de explicações. Situações independentes da nossa vontade. Assim explicavam. Como uma valiosa informação prestada.

 

Sentados e acalmados – houve uma sensação de tranqüilidade. Como se já afivelados – o tempo voltasse ao controle. Cada um com sua solução. Ou sua dificuldade. Mas com absoluta expectativa de aceitação.

 

Olhei para o infinito. Para os muitos tons de azul até o rosa. Mas abaixo se via um branco denso.

 

Optei por escutar uma música. Coloquei os fones. Foi instantâneo. Uma outra viagem se fez. Isolada da formal. Descompromissada com as técnicas. Ou com as coincidências. Quase deu uma confusão mental.

 

Ri. Tocava uma marcha. Nupcial. Uma bela orquestração. Belíssima. E no momento da subida do vôo. Assim. Como se uma regência de fora se fizesse presente. Como uma necessidade.

 

Acordei no branco. Sentei diante do azul. Em proximidade total com o Universo. Se assim se pode dizer.  Um casamento realmente se fazia.

 

O plano da partida e a vontade da chegada. O azul e o branco. As nuvens e o metálico do progresso. O plano e o ato. O gesto e o fato. O riso e a festa.

 

Não sei se foi um recadinho. Uma desculpa. Um sinal. Isso não se sabe jamais. Não tem provas. Nem documentos. E cabe a cada um fazer e desfazer os códigos. Muito mais internos do que externos. E conforme se apresentam.

 

Conclui. Perfeito. Assim devem ser as comemorações.

 

Olhei para ele. Apertei a mão. Sorri.

 

 


Novembro 15 2009

 

Nem acreditava.

 

Tantos anos sem praticar a  impulsividade. Teve um tempo que era atleta nessa modalidade. Ao menos assim considerava. Estilo medalha de ouro. Por certo não perderia uma maratona – caso houvesse uma. Ou restasse concorrentes.

 

Houve um tempo de ponderação. E nesse tempo a razão fez a regência.

 

Vai lá saber o que deu nesse dia. Uma revirada. Não diria reviravolta porque parecia não ter a tal volta. Vai ver foi um sonho cubista. Algo assim. Bem fora do habitual-recente. Provocou um momento de atenção. Um insight.

 

Quem sabe fez lembrar o tempo que escorre - por entre muros e dedos. Ou fez despertar para o meio tempo que a vida corre -  entre planos e promessas. Enfim. 

 

Nem lembrava mais do  estilo construído. E constituído. Havia esquecido esta parte. Sim. Antes era diferente. Sempre agia em comum acordo - com a  vontade. Mas já fazia tanto tempo. Nem dava para datar mais quando fora a ultima vez. Quando o impulso fora um ato realizado. 

 

Mas não importa. Nem o tempo surrealista escorre pra trás. Nem o para trás escorre no tempo realista.

 

Desta vez retomaria de onde parara. Seria - sem recuos. Melhor conceder um pouco de autoridade à ideia. Mas também não foi sem esforço.

 

A situação fez lembrar um dos conselhos da avó. E' sempre tão contraditória a manutenção das decisões, menina, é sempre tão contraditória a manutenção das decisões. Estava certa.

 

Acordar com a ideia. Decidir  como se decide um sonho. Sem a interferência do consciente. Eis um processo por si só - comprometedor. 

 

Mas ato e fato estavam destinados a uma parceria. Ao menos desta vez. Depois veria o que fazer. Caso surgisse algum tipo de impedimento. Ou de restrição. O depois deve ter sido inventado justamente para ser usado. Perfeito.

 

Conclusão definida.

 

Este o mês de aniversário dele. Desde o primeiro dia do mês fizera surpresinhas. Presentinhos. Colocados em lugares e horários especiais. Para tornar ainda mais especial a data. Todos sempre faziam piadinhas. Do quanto é bom fazer aniversario no final do mês. Mas para quem lhe conhece. Destacavam rindo. Tem muitos e muitos dias de presentinhos e pequenos mimos.

 

Enfim. Mas desta vez o desfecho será diferente. No dia exato estaremos lá. Comemorando lá.

 

Cedo telefonei para ela. Expus a direção. Ela foi logo avisando. Deixa comigo. Farei a parte braçal do plano. Desligamos rindo.

 

Não nego. Por um segundo o pensamento circulou pela cabeça. Um frio percorreu coluna vertebral. Não. Vou avisar que desisti. Que foi um acesso banal de insanidade. Temporária. Já estou curada.

 

Acho que ela lê pensamento. Mesmo à distância. Fui pegando o telefone para informar - já fui atendendo. Era ela.

 

Consegui tudo. Fica tranquila. Uma beleza de ideia. E a muito baixo custo. Perfeito. Anota o número do vôo. E imprime também o voucher do hotel. Boa viagem. Divirtam-se.

 

Sentei. Estava deflagrada a retomada da impulsividade. Que vengam los nuevos dias. Ri.  Três dias de festejos. Em terras para ele ainda desconhecidas. Uma festa diferente.

 

Mas sempre se sabe. Nada é perfeito. Aprendi rapidamente um novo axioma. Pelo menos - novo para mim. Rotina - tem este nome por que não admite surpresas. Nem perdoa impulsos. Assim. Simples.

 

Não teve opção. Agenda adiantada. Horários acrescentados. Jornada triplicada. Nada é depois. Outro axioma. Rotina entende até de antecipação. Mas nunca de adiamento. Foi um tal de acelerar e pré-estabelecer como nunca dantes imaginado.

 

E o corre daqui. Acelera dali. Retoma de lá. Aceita de cá.

 

Vencidas. A rotina. E eu.

 

E foi de repente que anunciei. Assim. Com ar de quem apenas sugere. Falei contendo o riso.

 

Este ano será estilo cumpleaños. Não. Não em casa. Será no Caminito. Quizá a Media Luz. Riu. Acho que até duvidou da própria escuta.

 

Entreguei os impressos. Riu de novo. Mas com olhos bem abertos. Adorou. Celebrou.

 

As malas já estão prontas. Como diz a canção: de tarde, té con masitas. De noche, tango y cantar.

 

 


Novembro 14 2009

 

Por muito tempo na Vida fingiu que não via.

 

Assim era ela. Sempre dava um jeito de escapar. Parecia uma sábia diante dos impedimentos. Se fosse para cortar o prazer – agia com rapidez. Não faltavam críticas. Sobravam observações. Análises. Sugestões. Tinha uma auto-referência. Era pragmática. Nada de muitos rodeios. Direto ao assunto era seu estilo mais suave.

 

Recobria-se de marcas. Incrível. A roupa tinha nome e sobrenome. As bolsas e relógios também. Todos com registro em cartório. Não usava um brinco que não portasse uma assinatura. Recobria-se de nomes. E escondia-se em meio deles. Às vezes parecia que a própria nomeação não a sustentava. Mas enfim.

 

Assim seguia seu caminho. Talvez fosse mais um atalho. Uma trilha. Não é tarefa fácil entender as esquinas escolhidas. E a cada virada- nem sempre é possível esquecer o rastro. De onde se saiu. Ao menos é o que parece. Ou parecia.

 

Vai lá saber por que nesse dia me fez tanto relato. Cedo. Bem cedo. Já foi encontrando e dizendo bom dia. E sem esperar a contra proposta – desatou a falar.

 

Chegara a uma conclusão. Não importa se as fantasias se excedem. Fantasias são feitas justamente para os excessos. Seja de credulidade, de ingenuidade, de credibilidade, de eternidade. Não importa. Como um perfume. A intensidade é forte - mas tem prazo.

 

De realidade passamos toda a vida. A somar. A prever. A desistir. A ocultar. A permitir. A ceder. Ocupa tanto tempo da vida útil e muitas vezes só se percebe isso muito tarde. Foi o que entendi esta semana. Até de amar também se pode brincar. Assim falou.

 

Sentei. Estava com a agenda completa. Mas decidi escutá-la um pouco mais.

 

Concordei. E fiz um breve comentário. Bem breve. Ela preferia falar a escutar. E foi para isso que me sentei. Para deixá-la falar. E escutá-la contar.

 

Mas optei pelo breve comentário. E disse. Tudo se pode – quando há o amplo entendimento da solidão que uma fantasia expõe. Só isso.

 

Ela fez uma expressão facial que eu chamaria de interessante. Este me parece um termo que melhor esclarece. O que em absoluto se entendeu.

 

Fez a tal expressão e desconsiderou o comentário. Continuou falando. A fantasia deixa de fora um detalhe – o compromisso com a veracidade. Não envolve maiores nem menores riscos. Não assusta. Nada exige. Só fica ali. Fazendo seu percurso mágico por entre sonhos, estrelas, mares jardins, luares.

 

Levantei. Não era tema para escutar com o olhar no relógio. Era intenso. Longo. Um possível tratado estava sendo construído. Ficou até complicado entender. Onde estavam as diferenças. Ou as semelhanças.

 

De repente sorriu e disse. Ele a nomeara de heroína. Desta vez interpretei a surpresa. Então tem um ele. Mais uma vez desconsiderou. Ele a nomeara de heroína por ser tão responsável pelo dia-a-dia. Somente as heroínas se preocupam com a rotina. Assim ele falou.

 

E ela não só adorou – como incorporou de imediato a personagem sugerida. Já foi logo se sentindo mártir. Faltou fogueira e forca para tanta bravura assimilada.

 

O denominou de – meu ópio. Quando o encontrava ficava viajando nas palavras dele.

 

Impossível perder a oportunidade. Eis uma bela e bizarra dupla. Heroína e ópio.

 

Surgiu aquele silêncio. Um hiato. Onde o riso ficou pendente.  Até se dar conta do chiste. E rir. Muito. Ficou quase entorpecida. Mais um pouco e se faria realidade.

 

Começava a apreender os efeitos que as palavras podem causar.

 

O momento se fez delicado. Parecia feliz. Não sei se plena de fantasia. Ou plena de realidade. Estava numa espécie de completude. Principalmente com ela mesma.

 

Nunca a escutara falar daquele jeito. Nunca exaltara uma parceria. Sempre vivera em torno de si e dos próprios fantasmas. Estes sim. Sabiam acatar as ordens. E a estes ela privilegiava autoridade.

 

Rimos. Respondi que precisava de um tempo para pensar. Para reconhecê-la.

 

Desta vez ela que interpretou a surpresa. Mas sou a mesma. Fantasias existem para que se permaneça do mesmo jeito. Fantasia é terreno fértil – para se ficar inalterado.

 

Nos despedimos. Antes de subir as escadas vi que fez o gesto habitual. Com os dedos – colocou os cabelos por trás da orelha.

 

Voltamos à rotina. Ela – a heroína. Eu – a desavisada.

 

E ambas – atrasadas.

 

 


Novembro 06 2009

 

É uma época de riscos. E de perdas.

 

Isso sem dúvida. As noticias tristes se sucedem. Não adianta fingir que não está acontecendo. Está. É. Cada um com seu temor. Cada um se ausentando de uma socialização. Férias se prolongando.  As ordens são de privacidade.

 

Que os grupos sociais se preservem – se dissolvendo. Esta a tentativa de evitar a propagação.

 

Fosse vivo o mestre surrealista – até ele se assustaria. A Idade Média contracenando com a Idade Contemporânea.

 

Ele chegou. Impossível passar despercebido.

 

Lindo. Cabelinho no corte moderno. Os fios na contradição da Gravidade. A queda da maçã em desafio por um punhadinho de gel. E ele todo orgulhoso da imagem. Perfeito.
 

A mãe segurava-lhe a mãozinha. Ele caminhava confiante. Pequenino – mas confiante. Tinha um jeitinho de feliz. Olhava com atenção em volta. Caminhava entre apressado e contido. Uma tossezinha atrapalhava os comentários que fazia. O vermelhinho do rosto denunciava uma temperatura fora do padrão. Mas parecia desconsiderar.

 

Ela veio. Conferiu a rotina da chegada. Escutou a história. A queixa da mãe. Os sintomas dele.

 

Ele ficou sentadinho. Talvez esperando que o chamassem. Ou só exibidinho em sua arrumação. Vez por outra tocava nos cabelinhos eriçados. Verificava se a desordem estava em ordem. E abaixava as mãos - mais tranqüilo. Como se os próprios dedos valessem por um espelho. Mais uma vez - perfeito. Sábio até. 

 

Ela veio. Sorriu para ele. Fez um comentário para a mãe. Colocou os dois sentados juntos no final da sala. Na última filinha de cadeiras. Só eles.

 

Fez para ele um gracejo. Depois foi colocando uma máscara. No rosto dele.

 

Informava com segurança na voz. Isso não dói. E - objetiva - amarrou os lacinhos da máscara por trás da cabecinha dele.

 

Foi um ato e um gritinho. Assim. Dupla geminada. Sincronismo absoluto.

 

Ele chorou.

 

Ela – surpresa - se assustou. Até se afastou um pouco. Demorou a entender.

 

Quando a dor não é física – fica-se com uma dificuldade maior ainda de mensuração. Ou de compreensão.

 

Mas ele continuou com seu protesto.  Chorou alto. E disse com a voz filtrada pelo material sintético. Estou com medo disso. Desta máscara. Não quero. Quero ir embora. A mãe o acarinhou.

 

Alguém veio em direção a ele. Com voz calma. Explicou. Você agora é o super herói. Por isso está de máscara. Eles todos usam também. Está tão bonito assim. E nem sabemos mais quem é você agora. Igual a um super herói. Ninguém sabe quem é ele e nem o nome dele.

Falou nem tão perto – nem tão longe. Poderia dizer – reservada. Mas tentou assim consolar.

 

Esta foi uma das cenas que não se esquece.

 

Ele parou de chorar. Dava para ver os olhinhos dividindo o espaço com o tecido verde da máscara. Por cima do nariz. A sobrancelha erguidinha. Virou o rosto semi -coberto. E disse. Mesmo com a voz entrecortada. Não sou super herói. Mentira. Ela disse que estou doente. Por isso estou de máscara. Para que ninguém mais fique doente. Super herói não fica doente.

 

Alguns que escutaram – riram.

 

Lembrei do filósofo estudioso do riso. Tem razão. Só é cômico o que excede o trágico. Aquela cena era trágica. Pior ainda. Era também um paradoxo. Não tinha como ser resolvida. Tinha como ser acatada. São ordens. Foi o que ela falou. São cuidados necessários. Completou alguém duas filas à frente.

 

Falou ainda chorando. Manda pararem de me olhar.

 

Submetia-se a uma súbita exclusão. Cuidou da imagem antes de sair de casa. E justamente a imagem – o primeiro item a ser ocultado. Sugeriam ser um super herói. Mas o colocaram sentadinho - distante. Parecia ter um objeto que o escondia – mais se destacava exposto.


O olhar do outro que autoriza. Ou desautoriza. E isso ele sabia ler muito bem. Melhor que qualquer um. Escrevia seu texto como se a folha em branco só a ele pertencesse.

 

Só não sei se pior - ou melhor - do que o espelho.

 

Quando o chamaram pelo nome - olhou para a mãe. Ajustou melhor a máscara. Não passou a mão mais nos cabelinhos.

 

Com voz conformada perguntou: sou eu?

 

 


Novembro 02 2009

 

Ele veio de lá. Feliz.

 

Fazia já alguns anos que não nos víamos. Trabalhamos juntos por muito tempo. Saíra de repente. Mal nos despedimos. Questões burocrático-egóicas. Algo por aí.

Estas são sempre as grandes questões. Sempre nascem desta dupla. Mal explicada. Mal conjugada. Ou muito mal dissociada.  Mas imperiosa.

 

Quando sobra hífen - não há o corte no momento certo. E apagam um espaço. Mais ou menos assim.

 

Minha avó nunca deixou de avisar. Muito eu é sinal de pouco meu, menina, muito eu é sinal de pouco meu.

 

Acho que só hoje entendi o que ela falava. Foi preciso anos e anos para assimilar. A linha quase transparente entre o eu e o meu. Sábia - sempre.

Mas desci. Direto para o local indicado.

Tinha uns exames a fazer. Estava entre corajosa e temerosa. Exames nunca são da ordem do conforto. Ou da diversão.

Mesmo que alguns estudiosos digam o contrário. Ou os seguidores do Marquês. Não faltam teorias. Apologias. Tratados. Mestres de todo o mundo. Austríacos. Franceses. Portugueses. Italianos.

 

O mundo girando em volta de uma dolorosa teoria. Sobre dor e alegria. Sobre sofrimento e satisfação. O homem sendo apto para a dor. Muito mais do que para prazer. Até os poetas se manifestam - sofrer por amor.

 

Nem sei quem são esses. Os estudados.  Os aptos para a dor. Eu não. Detesto dor.

Foi assim que desci. Com este pensamento tentando ocupar o outro.  O dos exames. Brigar com estudiosos de nada resolve. Mas ocupa o espaço do medo. Para isso resolve. E muito.

 

Afinal nesses tempos de tantas contínuas e perigosas mutações – exame é indício de risco. Ou de contaminação.

Não era a situação do momento. Mas não tinha escolha. Era fazer os exames.  Anuais. Rotineiros. Necessários. Procede. Obrigatórios. E pronto. E assim continuei.  Me repetindo – para me ordenar. Obedeça. E pensar que sempre fui rebelde. Nada de temer agulhas. Onde já se viu.

 

Tudo bem. Obedeci.

Foi em meio ao local do exame que o avistei. Eu entrando na sala dos exames. Ele na sala do atendimento. Em frente.

Vi que abriu os olhos. E sem metáfora. Abriu mesmo. Se surpreendeu. Veio em minha direção. Passos apressados.  Com um sorriso. Expressão de confraternização. Desconsiderou as limitações.

 

Foi logo avisando. Em pé diante de mim. Voltei.

 

Como se a materialização não fosse confiável. Apenas suposta. Respondi com um chiste. O bom filho à casa torna.

E fiquei observando.

 

Por que – voltar - se transforma em ato. Muito mais do que em fato. Precisa de desculpas. Sempre. 

 

Cada um com suas demandas. E espelhos.

 

Informou. Esta é a primeira vez. Nunca voltei de onde sai. Repetiu muitas vezes. Esta é a primeira vez. Continuou se explicando. Devia ser importante para ele. Se sentir convidado. Ou aceito. Ou vai lá saber o que.

 

Eu até ri. E falei. De onde saiu – ou para onde saiu. Desconsiderou. Fez bem. 

E continuou desconsiderando. Estes exames vão resultar todos normais. Você está ótima. Agradeci. Um lorde em termos de gentileza.

 

Vamos lá. Tomar um cafezinho. E você me conta desse longo tempo - que você continuou aqui. E eu lhe conto do meu - que fiquei tão distante daqui.

 

Ela. Convidei mas não quis voltar. Casou. Neste último verão. Está feliz. Ele. Sim. Desde que saiu também está em outra Instituição. Ele. Não está bem. Acho que precisa voltar. Ele. Também não se acertou. Quem sabe também volta. Ele. Está feliz com o novo cargo.

Falamos em poucos minutos. Mas acho que nunca falamos tanto. Soubemos dos amigos. Contamos de nós mesmos. Rimos das consequências  - e até das causas.

 

Voltamos rápido para as nossas atividades. A rotina – digamos assim - estava lotada.

 

Olhamos um para o outro. De repente. Com expressão de susto-risonho.

 

Esquecemos o cafezinho. Intacto. Em cima da mesa. Rimos.

 

Não importa. Tem café em todas as estações do ano. E em todos os horários. Até qualquer outro intervalo. Qualquer dia.

 

Foi a primeira vez que voltei de onde sai. Repetiu. E completou. Mas estou feliz por isso.

Ri. Viva a sexta-feira.

 


Outubro 31 2009

 

O dia foi de surpresas. Aliás - de sustos. Dois sustos. Para ser exata.

 

Ficou pensando. No que os dois tinham de semelhante. Deveria ter um laço unindo os dois sustos. Afinal – foi o que fez. Contabilizou os dois - num só dia. Se mais teve – nem notou.

Enfim.

 

Se surpreendeu com ela. Ela que a convidara para jantar. Mas estava tão indiferente. Não sabia se num estilo novo. Ou numa abordagem nova. Vai lá saber. Sugeria uma pequena interpretação. O interior parecia se desestabilizar a cada tentativa de regularidade. Como se o valor fosse o rótulo e não o conteúdo.

 

Falava com certa contundência. Como se não importasse se a escutavam.

 

Não dava bem para definir. Ela apenas repetia as próprias opiniões. Desinteressada pela interlocução. Falava até mais baixo. E o riso se transformara em sorriso. Corriqueiro. Ou – menos ainda que corriqueiro. Indiferente – mas não inconseqüente.

 

Não havia espontaneidade. Como se falasse de si para si. Assim. Sem compartilhar. O jantar acabou. Se separaram. Cada uma para seu destino. E sua rotina.

 

Nem bem chegou em casa - ainda com este primeiro susto em evidência - encontrou um recadinho dele.

 

Fazia tempo que não falavam. Ela relatou um acontecimento. Assim. Aconteceu um destaque. Uma celebração.  Ele leu. E fez o que sempre fez. Interpretou. E com a sabedoria de sempre. Sem muitas delongas. Sem muita retórica. Objetivo.

 

Mandou um comentário. Quando se opera em sintonia com o desejo – coisas acontecem. Para o bem e para o mal.

 

Ela não se conteve. Riu. E fez também o que sempre fez. Quando diante de algum susto. Chistes por cima da interpretação. O desejo não era esse. Nunca foi esse. Deve ser o desejo do Banco. Com esta atividade é que se pagam contas. E enviou.

 

Aí compreendeu. Como se afastara do processo.

 

Há muito virara falsa pragmática. Passava aos atos. Se deu conta. E riu de novo deste pensamento. Não havia como fugir do mestre austríaco. E pensar que até o citou no tal chiste. Assim. Com total alheamento.

 

Recebeu de volta nova resposta. E aí enxergou o hiato. Como se aí tivesse acordado. Exagerada como sempre – abrira os olhos. Riu de novo.

 

Ele foi incisivo. Quase mortal. Não me referi à atividade profissional. Pensava que o desejo era o olhar do outro. Ai tanto faz – o sucesso vem. Porque exatamente se opera em sintonia com o desejo.

 

Repetiu. Procede.

 

Senão se entende de uma vez – quem sabe de duas dá certo. Depois de tanto tempo longe do pensamento analítico – tem mesmo que repetir. Até desenhar.

 

Foi difícil seguir a rotina.

 

Ela queria poder – dupla sempre também desejada. Mas desejou um tempo paradinha. Sem solicitações outras. Sem trabalho braçal. Queria na realidade o ócio. Um momento de entrega aos próprios pensamentos. Esta a vontade real naquele momento.

 

Sentar sozinha e pensar. Em algum cantinho. De preferência diante do mar. Sob o luar. Com os pés descalços. Tocando a areia. Passando as mãos pelos cabelos. Recostando. Quase se arrepiou. Sabia que estava – mais uma vez - fazendo o habitual. Se desconcentrando do objetivo. Já estava agora fazendo turismo. Até riu.

 

A avó da amiga sempre dizia. Não existe vitória contra o próprio estilo, menina, não existe vitória contra o próprio estilo. É verdade.

Mas enfim.

 

Ligar os dois sustos. Concluir porque um fato ficou ligado ao outro - no pensamento dela. Como se um fio condutor tivesse surgido. Muito mais de semelhanças do que de diferenças. Até pensou que poderia ser pelo contrário. Mas não se sentiu segura. Algo a fazia cobrar uma elaboração.

 

A resposta parecia uma só. O olhar.

 

Lembrou de tantos olhares. Há os contraditórios. Os perspicazes.  Os sorrateiros. Os defensivos. Os criadores. Até aquele famoso – oblíquo e dissimulado. Não faltou listagem qualificativa.

 

Mesmo sem mar e sem luar – optou por uma conclusão. Um pouco selvagem. Sem muito amparo teórico. E muito menos - prático. Não uma simbolização. Mas uma conclusão.

 

A união dos tais sustos era no olhar. Mas pelas diferenças. Por um fator bem simples. Para se entender um olhar – é preciso olhar.

 

E nisso estavam ligadas ao oposto. Uma prescindia do olhar do outro.

 

Bastava-lhe um espelho. A outra precisava do olhar alheio. Servia-lhe como um espelho.

 

Falaria sobre isso com ele. Algum dia.

 

 


Outubro 24 2009

 

O telefone me acordou. Um aviso protocolar. A rotina começava - já.

 

Nem sei bem como desci as escadas. Erro - sei. Rápido. Muito rápido.

 

Até lembrei o dia que dancei abraçada ao corrimão. Um ballet exótico. Nada sensual. Numa tentativa de não me fragmentar no chão da sala. Tentativa e êxito. Mesmo que durante uma semana negasse. Nada de estranho com o meu caminhar. Como se não vissem. Faz de conta que tenho nada. Faz de conta que acreditam. Assunto encerrado.

 

Enfim. Desci as escadas já informando. Estou com pressa. Tenho uma sequência a ser seguida. Antes de chegar lá. No trabalho. Onde mais seria.

 

Lógico. Você não tem que entender. Se eu não disser. Tudo bem. Depois discutimos semântica. Deixa para lá. Depois explico. É mal educado falar durante a mastigação.  Sim. Amanhã falamos.

 

E já fui quase empurrando o elevador. E reclamando com as correntes lentas.

 

Nestas horas me lembro de lá. Da brisa do mar serenando ânimos. Do cheiro de café da manhã com tapioca. Da relativa calma diante do inevitável. Até o barulhinho da rede no prendedor. Lembro tudo. Mesmo que em segundos. Como uma viagem da matéria. Transcendental. Dá até para suspirar.

 

Mas enfim. Estou cá. Foi para cá que vim. Melhor deixar de cheirar o carro. Nunca terá cheiro de maresia. Até ri.

 

Ainda bem que não é longe. Este o primeiro pensamento. Parada com o trânsito emperrado. Não andava para lado nenhum. E quase foi o último pensamento. A buzina delicada me fez virar para o lado.  Abri o vidro.

 

Pois não. Um simpático senhor sorria para mim. Até ai tudo bem. Vai ver queria se socializar. Mas não. Avisou com a fala e com o dedo. Apontou. Está muito baixo. Deve ter furado. Vá rápido a um posto.

 

Não sabia se ria. Se chorava. Ou se descia do carro e torcia o dedo dele. E a idéia dele de cidadania solidária. Como assim rápido. Não tinha saída. O trânsito parado. E ele vem me apontar um pneu furado de emergência. Não deveria ter família.

 

Mas agradeci. Muito obrigada. Muito gentil. Uma lady. E eu que dizia que não era nem lady nem santa. Contradição total. Exatamente o oposto. Uma verdadeira santa inglesa. Ou inglesa santa. Certo. Mais semântica. Hoje deve ser o dia Nacional da Semântica.

 

Mas consegui. Eis um posto.

 

Então tem um prego. Vai poder trocar. Espero sim. É verdade. Coincidência existe sim. Então ele chegou com o mesmo problema. E por um segundo eu seria primeira. Não faz mal. Espero. Sim. Sou bem calma. E ele deve ser cego. Pensei. Mas calei.

 

Não. Ela já foi. Sim. Ela achou que você chegaria no horário. E eu achei que chegaria a tempo. Opiniões combinadas em agendas descombinadas. Quase um poema.

 

Sim. Você é a segunda pessoa que me fala isso hoje. Sobre mim. Devo ser mesmo. Muito calma. Ou só tem cego por aqui. Nada. Deixa para lá. Sem problema. Entregue em meu nome. Não esqueça. Por favor.

 

Sim. Nem sei como consegui chegar. E na hora. Pode mandar entrar. Ainda bem. Se me chamasse de calma – eu ia descer. Como assim. Sou uma Lady. E Santa. E com letra maiúscula. Ia descer para me internar. Depois lhe conto o que foi. Esta manhã. Mas pode mandar entrar. Rimos.

 

Ele entrou junto com eles. Tinha uma covinha exposta por um mal disfarçado sorrisinho. As mãos estavam enfiadas no bolsinho da calça.

 

Eles avisaram. Ele estava todo feliz porque ia lhe ver hoje. Tem uma novidade para lhe contar. Verdade. Ele que quer falar.

 

Ele me olhou. Chegou mais perto. E disse como um segredinho. Mas com muita seriedade. E firmeza na voz.

 

Tirou a mão do bolsinho da calça e ergueu o dedinho para me informar.

- apendi a fasser cici em pé –

 

Olhei para ele. Lindo. Feliz. Envaidecido com seu aprendizado. Orgulhoso de si mesmo. Dei um beijo de parabéns. E celebramos na sala esta grande – e verdadeira – conquista.

 

Diante daquela frase - tudo o mais ficou tão banal. Pneus. Furos. Horários.

Ficou tudo isso tão superficializado. Diante da alegria de quem se entende crescendo – e sabe já fazer xixi em pé.

 

Pode parecer tão simples. Mas não é.

 

Poucas vezes entendi com tanta objetividade – o progresso. Ou me ensinaram com tanta suavidade - a evolução.

 

O crescimento. Isto sim - é importante.

 

Agradeci ao Universo o privilégio da escuta. E o dia se fez completamente válido.

 

 


Outubro 22 2009

 

Eram muitos os temores. Sempre.

 

Vivia sob constante pressão. E nem sempre como meta de educação. Mas enfim. Ideias e ideais nem sempre caminham de mãos dadas.

 

Entretanto - não podia negar. A cada aborrecimento ou obstáculo – assim se recompunha.

 

Você quem contou. Se não ela nunca saberia. Isso não vale. Você bem sabia o que iria acontecer. Quando ela soubesse. Mas - observe aquele mosquitinho. Ali na cortina. Lá em cima. Viu agora. Certo.

 

Ele é um disfarce. Na realidade é um monstro terrível. E maior do que este quarto. Ele é meu amigo. O mosquitinho. Muito meu amigo. E viu o que você me fez. E agora está ali disfarçado. Quando você dormir vai lhe engolir. Inteirinho.

 

E você nunca mais vai contar a ela. Pare de chorar. Se ela escutar vai acontecer de novo. E será já. Que ele vai lhe engolir. Fica calado logo.

 

Vai sim. Vai deixar amarrar seu pé - no meu. O cordão é comprido. Tem bastante. Dá para passar pelo chão. E de uma cama até a outra cama.

 

Vamos dormir assim. Se eu tiver medo – lhe acordo. Claro. Estico seu pé. E você acorda. E meu medo passa. Ela não vai ver. E só vai saber se você contar.

 

Acho bom não esquecer o meu amigo mosquitinho. Esta sim. Está escondido. Eu sei onde. Mas você não pode vê-lo. E só aparecerá se você não me ajudar.

 

Vou esconder em sua mochila. Eis um lugar onde não vão procurar. Sim. As notas. Estão ruins. Não sou boa naquela matéria. Mas se souberem agora – adeus festinhas de aniversário. Depois entrego. Não vai contar. Pensa bem.

 

Não se preocupe. Depois eu retiro de lá. E nunca vou contar que você ajudou. A esconder. Claro. Para de ser medroso. Já falei.

 

E assim se vão seguindo. E assim se foram. As soluções imediatistas da infância.

 

Ela nem sabia por que ficara lembrando. Tudo já estava tão distante.

 

O tempo já estava tão avançado. Nem espaço. Nem tempo. Nem convivência. Nada mais era parte do cotidiano deles.

 

Mas as lembranças foram chegando. Sem pedir autorização. Invasivas. Autoritárias. Mas procedentes.

 

As lembranças são sempre oportunas, menina, as lembranças são sempre oportunas.

 

Escutara isso um dia da avó de uma amiga. Lembrava até de alguns detalhes. Era um dia quente de verão. Estavam numa praia. A avó começara a falar do próprio passado. E alguém sugerira mudar de assunto. Para que não ficasse triste. Ela virou-se para a neta e falou isso. Das oportunidades das lembranças. Estava certa.

 

Eram muitas recordações. E sequer sabia como ordená-las. Mas deu liberdade total. Até facial. Podia se imaginar com mil expressões diferentes. 

 

De riso a choro. Sem pular as de tensão ou de alívio que circulam sempre entre as duas. E na ordem desejada.

 

Eis algo em que a consciência não tem poder. A celebração das lembranças. Fica tão fora do pragmático.

 

Em meio a essa lúdica bagunça mental – deu um pulo da cadeira. Então era por isso. Era o aniversário dele. Pensara nisso o mês todo. Fizera vários cartões imaginários. Quase fundara uma retórica nova – tamanho o conteúdo dos discursos que criara. E justo no dia estava saindo da memória. Quase.

 

Imagina se ele soubesse. Que ela tanto lembrara como esquecera. Ele que iria ficar amigo do tal mosquitinho. Deu até um tapinha na testa. Riu. A avó tinha mesmo razão.

 

Ficou com uma dúvida. Será que ele se recordava. De tudo aquilo.

 

A infância é tão seletiva e encobridora em termos de fatos. De atos então. Parece outra vida. Não existe outra fase em que a observação seja tão particular. E sem rodeios. Cada um vendo o mundo por olhinhos tão especiais. Por isso quando coincidem lembranças – é sempre uma surpresa.

 

Quantas vezes ela escutara um pasmo– você também se lembra disso. Inúmeras.

 

Mas é preciso a maturidade adequada para assimilar a infância.  As contradições. As buscas. E a falta absoluta de inquietações.

 

Estas só chegam depois. Na infância – não. O pensamento mágico - junto às praticidades instantâneas - permite um colorido nunca mais re-inventado.

 

Levantou. Telefonou para ele.

 

Já atendeu rindo. Sabia que era você. Vi um mosquitinho passando por mim há pouco - parecia feliz. Ao menos não quis me engolir.

 

Riram. Muito.

 

 


Outubro 20 2009

 

O aviso veio explícito. Claro. Objetivo.

 

É proibido beijar. É proibido abraçar. É proibido falar muito próximo.

 

Fiquei observando. Os comportamentos de cada um. À proporção – e este é o termo exato – que ela avisava. O olhar. A expressão facial. O gestual.

 

Diria até que se estava mais próximo a uma equação. E muito longe de um simples aviso com palavras. Ou com explicações. A equação de cada um que escutava não se somava com a do outro. Não havia uma conta. Ou uma soma. Nem uma divisão. Ou um parêntesis. Talvez – com muita benevolência - um x. 

 

Havia subitamente o conjunto vazio. Assim. Corpos estanques. Algo por aí. Quase uma matemática. Não fosse eu péssima com números e equações. Mas foi só o que me ocorreu enquanto olhava.

 

Este tipo de aviso - expõe.

 

Cada um a buscar em seu próprio corpo o limite de si mesmo. O corpo como uma prioridade extrema. Dava até para dizer que transcendeu a idéia da matéria em si. Uma metafísica ao contrário.

 

Provocou uma certa sonoridade. Pelo discreto re-acomodar nas cadeiras. Já todos se entendiam - num total conformismo com o distanciamento afetivo.

 

Ela que veio avisar – avisou rindo. Como se alheia estivesse ao ambiente. Ou ao risco. Deve ser como jogo de criança. Ganha quem fala primeiro.

 

Foi só o que me ocorreu ao vê-la dar um tom chistoso. Nem de longe pensei em associar ao Marquês. A dose do Marquês já está creditada em excesso.

 

Mas enfim. Deu um ar cômico diante da interdição. De repente - completou. Nem aqui – nem em casa. Cuidado com os familiares. Não teve jeito – venceu o Marquês.

 

Tudo começara com uma gripe. Desta vez. É o que parece. Porque impossível não generalizar. Algo como cíclico. As perdas diante dos desconhecidos, conhecidos e próximos – põem Dor como alvo. Para que o esclarecimento se faça objetivo. Procede.

 

De tempos em tempos – desde a antiguidade - surge uma doença universal. E lá se vem o isolamento. Não só dos doentes. Mas – e principalmente - dos sadios. Uma triste poesia abstrata. Todos lêem. Acreditam. Até se emocionam. Mas cada um vai compor as suas rimas da forma que mais se proteja. Também procede.

 

E existe nada mais imperativo de proteção - do que a interdição dos afetos.

 

Incrível. Como uma interminável expiação de culpa arcaica. Mais ou menos assim. Complicado definir a demanda individual diante de um temor coletivo. Ou o contrário.

 

Após o aviso não havia mais diferença entre o disfarçado temeroso e o suposto infectante. Ambos circulavam - quase igual a um falo. Da posse de um para a posse do outro. Cada um como portador exclusivo da praga.

 

Diante do outro também portador exclusivo da mesma praga. Um espelho - sem o país das maravilhas. E sem o coelho. Vai ver por isso se perdeu a hora.

 

Não faltaram as piadinhas defensivas. Uma forma suavizada de acatar. E – ao mesmo tempo – justificar. Não sei se conto em casa. Ela vai perguntar com quem me beijava aqui. Ainda bem que tenho um namoro virtual. Posso mandar beijo o tempo todo. Vou arrumar também um marido virtual. Por isso prefiro só meu cantinho. Nada de parceiros. Solidão faz bem à saúde.

 

E assim este dia seguiu. Cada um como seu advogado. E promotor do outro. Ou até um vice-versa cabe aí.

 

Quem chegava para as consultas oferecia e recebia um formal, polido e adequado - cumprimento. As salas sempre que possível - ficaram com portas abertas. É preciso que o ar circule.

 

Até ri quando escutei este comentário. E lembrei as tantas e tantas placas que têm nas ruas daqui. Nunca feche o cruzamento. Via alternativa. Não ultrapasse a faixa amarela. Via com câmeras filmadoras.  

 

Agora é preciso acrescentar mais uma. Interna. Privativa. Asséptica. Para combinar bem com o Lugar. Para fazer parte – se acumpliciando. Não importa se é social. Cordial. Fraternal. Sensual. Não há diferença. Novos tempos. Real e triste. Beijar não faz só sapinho. Beijar faz porquinho.

 

Nem bem tinha encerrado este pensamento - sobre os trilhos - e entraram duas pessoas. Estava super lotado. Pelo horário e pelo dia. As pessoas se amontoavam. A pressa do retorno era bem maior que a lógica do espaço.

 

Mas enfim. Eles entraram. Um homem e uma mulher. Seguravam as barras de ferro. Cuidavam para não cair sobre os outros. Ou os outros não caírem sobre eles. Estavam de máscara.

 

Impossível não parafrasear o mestre inglês. O resto é silêncio.

 

 


Outubro 19 2009

 

O dia não fora dos mais fáceis.

 

Tudo já começara de véspera. Mudança de horário. Troca de agendamento. Alteração no local. O simples transformado na contramão.

 

A ordem se oferecendo contra a lei. A lei se fazendo firme. Para recompor a ordem. Mais ou menos assim. Nada de filosófico. Uma organização de ritmo. Sem dança. Sem compasso. Apenas uma exaltação ao – impossível.

 

Durara um dia inteiro. A dissolução da linha entre o permitido e o pertinente. Até entre a consideração e a menos importância. E custara o pensamento da noite. Não diria uma noite em vão. Este termo só existe em notas de rodapé.

 

Lembro de uma frase da minha avó. É o escuro da noite que interrompe o sonho, menina, é o escuro da noite que interrompe o sonho. Estava certa.

 

Mas o dia veio - e a solução junto com ele. Enfim.

 

Foi nesse agenda-e-troca que o de repente se autorizou. Uma cena realmente inesperada. Pelo menos a parte que me coube na cena. E justo eu que tanto admiro as vozes. Fui perder logo a minha. E no momento que mais precisei dela.

 

O que saiu da minha garganta não podia jamais ser chamado de voz. Acho que nem a primeira sonorização da humanidade foi daquele jeito. Um gutural som estranho. E uma imensa alegria única. Vai ver é assim. A primeira parceira.

 

Eu olhava em busca de um presente. O livro que ela poderia gostar. Com a falta de horário livre lá se ia um mês de atraso. E ela sempre fora pontual nas comemorações. Resolvido o tal agendamento – melhor também resolver as pendências. Talvez uma opção para relaxar.

 

Estava diante das prateleiras. Tentava pegar um livro. Por sorte lá as prateleiras são fixas. Senão o mundo teria vindo abaixo.

 

Segurei o volume escolhido. Achei adequado a ela. Adora poesias.

 

Foi ai que notei alguém do meu lado. Ele me olhou atento. Perguntou. Se eu era eu. Assim. Falou meu nome com tranqüilidade. Até aí eu ainda possuía uma voz normal. E o cérebro ainda funcionava. Aparentemente – ao menos. Confirmei. Polidamente. E curiosamente.

 

Fez um cumprimento formal – mas sorridente.

 

E continuou. Reconheci pela foto. Leio seus textos. Admiro muito sua escrita. Que bom poder lhe dizer isso pessoalmente. Que coincidência lhe encontrar aqui. Diante de uma mesma estante. Quando este espaço é enorme. E só estantes.

 

Riu. E comentou sobre um ou outro texto que mais gostara. Riu de mais algum outro. Falou de um estilo diferenciado. Esta foi o último termo de que me lembro. Estilo diferenciado.

 

Quis responder. Quis relatar minha enorme alegria. Minha surpresa. E avisá-lo de que ele fora o primeiro a me reconhecer. Que eu nem sabia que era reconhecível. Nem poderia imaginar. Não faltaram ideias. Ou discursos. Ou metáforas.

 

Mas estava já na fase dois. Eu. Já não tinha um som adequado na voz. E acho que até o encéfalo ficou catatônico.

 

Nunca me acontecera algo sequer parecido. E nunca previ que pudesse me acontecer.

 

Ele continuou falando. Comentando. Fez até algumas sugestões. Exigiu uma maior exposição da minha parte. Fez gracinhas. Deveria ter uma seta indicando os meus caminhos. Algo por aí. Falou que eu estava escondida. Bastante desenvolto. E seguro da sua apreciação.

 

Fez uma observação sobre o livro que eu escolhera. Recomendou ficar atenta às sugestões dele. Respondi um - obrigada. Obrigada de novo.

 

Até me esforcei por um terceiro - obrigada. Mas a voz já em contraponto com o entusiasmo – se isolou. Belas companheiras. Cordas vocais tímidas. Não me faltava mais nada.

 

Ele saiu. Eu fiquei ali. Com o tal livro de poesias nas mãos. O presente dela atrasado. As palavras dele me circulando - a pele.

 

Olhei em volta. Parecia que de repente só eu estava ali. O lugar havia esvaziado. Deve ser assim nessas situações. Preciso saber de alguém experiente.

 

Coloquei o livro de volta na prateleira. Ela esperaria mais um dia. Aquele momento se tornara muito meu. Não tinha como dividir. Ou ser pragmática. Não sabia se tinha entrado numa bolha. Ou saído dela.

 

Voltei feliz para casa. Ri. Com a alma. Com as mãos. Eis enfim o terceiro – obrigada. Tomara que ele leia. E compreenda. A rouquidão - e a feliz emoção que causou.

 

A noite me pareceu tão clara.

 

 


Outubro 10 2009

 

Certo. Bom humor é fundamental.

 

Aceitar o inevitável é sinal de sabedoria. Concluir que sabe que não sabe é uma conclusão amadurecedora.  Quase heróica. Grega. Conselhos de avó nem se comenta. A perfeição das perfeições.

 

Podem ser seguidos com toda a obediência. Tudo procede. Confere. Ganha até aquele ok ao lado de cada frase. Ou de cada pensamento.

 

Assim estava. Tentando ser parcimoniosa. Prudente. Até polida – poder-se-ia dizer. Falar que estava com postura amadurecida - já beirava a redundância.

 

Tudo bem que um bom observador teria ficado mais cuidadoso. Ela estava com aquele olhar fininho. E isso sempre foi um indicativo de alerta. Aos próximos e distantes.

 

Mas impossível não reagir.

 

Acordara bem disposta. Iria continuar com seu pacote de feriados. Já o segundo dia.

 

Estabelecera até um agendamento. Bem à moda antiga. Escreveu num papelzinho. Item por item. Adaptando inclusive horários e atitudes.  Uma maravilha. Uma sequência quase divina. Devia mesmo estar numa fase grega. Isso – lógico - bem antes do olhar nipônico.

 

O papelzinho com a listinha. Este sim um fato novo. Podia até programar. Mas daquele jeito – nunca. Nem lembrava mais o dia que escrevera itens ordenados. Devia ter sido em algum momento de vida escolar. Talvez com algum desespero. Por agradar a professora. Por certo por alguma daquelas pequenas faltas.

 

Na infância as faltas e erros parecem tão tridimensionados. A altura física na infância sempre é inversamente proporcional à altura da visão dos problemas.

 

Deve ter sido numa visão assim. Exagerada. Por isso escrevera os tais itens.

 

Mas enfim. Fora isso – nunca. Ia fazendo dentro do seu ritmo. Mental.

 

Desta vez até prometera não fazer programações. Ou qualificações. Mas não resistiu ao doce sabor de uma exibição. E ainda antes de dormir pegou o tal papelzinho. E escreveu a sua programação do dia seguinte. Até numerada foi. Releu. Concordou. Acrescentou só mais um – no final. E foi dormir tranqüila. Estilo – então estamos combinados.

 

Já começou a sentir o frio no primeiro abrir de olhos.
Até pensou em verificar a própria temperatura.
Vai ver estava com febre. Mas não parecia.

Olhou em volta. O quarto estava bem escuro.
Deveria ser cedo.
Vai ver acordara no hábito dos dias ditos úteis. Olhou para o relógio. Negativo. A manhã já estava explicita.

 

De repente se deu conta. Um barulho mais insistente. Ritmado. Permanente. Nem diminuía. Nem aumentava. Aliás - já era alto o suficiente.

Somou as conclusões. Frio. Escuro. Barulho. De água

Levantou. Abriu as portas.

 

Sim. Chovia como se fosse a primeira chuva do mundo.

 

Como talvez só no tempo da criação. Muita chuva. O céu cinza forte – não possibilitava fantasias contrárias. O frio estava  contundente. Abraçou-se a uma manta - desprezada desde a véspera - no sofá.

 

Foi naquele momento – abraçada na tal manta – que o olhar nipônico se fez com toda a sua força. Nem todo ninja. Ou nem toda naja. Valia o trocadilho. Mas não riu. Sequer um esboço de riso.

 

Voltou para o quarto. Pegou o papelzinho.

 

No item um constava – sol sem moderação. Tinha até uma carinha de risinho ao lado desse item.  E continuava.  Esquecer o carro. Caminhar no Parque. Ir à Livraria. Comprar o presente dela. Caminhar na Avenida. Tomar aquele sorvete maravilhoso que só vende lá. Sim. Ir até lá.

 

O olho quase se fechou. Nem todo nipônico. Lembrou. Tinha avisado a ele desde a véspera. Sim. Poderia colocar o carro na revisão.

 

Estava sem carro. Absolutamente sem carro. Sem sol. Sem caminhadas. Sem sorvete. Com chuva. Com frio.   

 

Só uma palavra lhe vinha à mente. E nunca pensara nesta palavra.

 

Reticências. Só esta se repetia. Por certo uma palavra encobridora. Era uma moça educada. Também repetiu isso alto – como que provocando uma eficiente auto-escuta.

 

Amassou o papelzinho. Jogou na cestinha do lixo a seu lado. Olhou para ele - o papelzinho - como se olha numa despedida.

 

Sentou no sofá abraçando afetuosamente a manta. E lá ficou por algum tempo. Ela. O sofá. A manta. Três pontinhos. Olhando a chuva bater na vidraça.

 

Mas – resignou-se. Ainda teria mais dois dias.

 

E - desta vez - sem agendamentos. Prometeu a si mesma. E até sorriu. Com olhos já bem abertos.

 

 


Outubro 08 2009

 

O dia amanheceu lindo. Só cores.

 

Céu azul. Brilhante. Desta vez nem era o habitual azul turquesa. Era azul brilhante. Intenso. Acolhedor. Ficou ali. Olhando e buscando adjetivos. Fazia tempo que não amanhecia assim. Ou vai ver ela que não amanhecia assim.

 

Aberta para o colorido do mundo. Enfim.

 

Debruçou-se na murada. E ficou em silêncio. Olhou para cima. Teve aquela boa impressão. O céu estava perto. Sentiu-se assim. Perto do céu. Até sorriu. Vai ver era assim no verão. Mas já não tinha certeza.

 

Quase concordou com a amiga que falou sobre o esquecimento do corpo. É verdade. O corpo vai se habituando. E passa a entender cada estação como única. Como se nunca tivesse conhecido outras. Incrível. Por isso de repente – o susto.

 

E diante do susto - fez o indicado. Vestiu o verão.

 

Deitou-se na cadeira. Deixou o sol aquecer a pele. Os cabelos soltos voavam com leveza. Estava sem compromisso nem temor.  Um calor calmo invadiu até os pensamentos. Mal respirou. Não queria que nada afugentasse aquele prazer. Ou se fosse um sonho – nada que causasse o despertar.

 

Bendisse o inverno. Pela amnésia. O inverno se esqueceu de lá naquele dia. E deixou que as cores do verão enfeitassem um pouco a cidade. O verde das árvores em frente ficou mais verde. O amarelo de alguns prédios- mais amarelos.

 

Tudo ia assim. Muito prosaico. Poético.

 

Ela teve uma idéia. Contaria a ele. Ele que vivia sob o sol. Que morava lá de onde ela viera. Que não sabia de cor cinza. Nem de casacos pretos. Nem de meias grossas. Contaria a ele. Mas de uma forma especial.

 

Avisou.

 

Hoje o dia aqui não parece inverno. Estou no terraço. Tomando sol. E decidi até fazer algo que nunca faço.

 

Decidi tomar uma cervezza. O zol eztá tão bonito. Eztá um dia de verão. E tive ezza ideia. Uma cervezza. Nunca bebo liquidoz com álcool. Hoje dezidi exxperimentar. E vozê não zabe o que acontezeu. Os Aztroz vieram pazzear aqui. Em meu terrazzo. Todos elez.

 

Vai ver devo beber líquidoz com álcool. Nunca havia vizto os aztroz. E eztão bem aqui. E não param de girar. É verdade. Como giram. Que aztros mais felizez. Tomara que não ze ezbarrem unz noz outroz. Seria uma tragédia cózmica. Ze forem dezastradoz.  Dezculpa. Interrompi o recado para rir. Aztro dezastrado é perfeito.

 

Ele de lá respondeu. Surpreso. Rindo. Assustado. Como assim. Deu conselhos. Informou dos riscos. Ordenou limites. Relembrou a ela – quem ela era.

 

Ela continuou. Um rezidente de Zaturno acabou de perguntar por vozê. Rezpondi que tudo bem. Que vozê eztá ótimo. Ze quizer alguma menzagem – aproveita que ainda eztão aqui. Não pararam de girar. Maz não zairam daqui do terrazzo. Imagina ze aquele fizico zoubezze dizzo.

 

E assim ficou nesse vai. Vem. Vai.

 

Enviou o último. Ele quer que eu deza para almozar. Falou que não quer converzar com o povo de Zaturno. Vou dezer. Até maiz.

 

Parou o recadinho. Encerrou a lista de z.

 

Sentada em sua cadeira. Olhou para o céu. Para aquele lindo céu azul brilhante. Tranqüilo. O terraço sem astros. E por um tempo ficou ali. Bem sentadinha. Bem longe das cervejas. Diante do sol.

 

Fez assim sua mais nova descoberta. E teve uma sensação maravilhosa.

 

Entendeu a muitos. E a si mesma. Ou vai ver sempre soube. Só não formalizara. Não importava. Não há lógica nas sensações. Nem ordem classificatória. Sensação procede - da desordem. Ainda bem.

 

Compreendeu as infinitas possibilidades da letra. Os surpreendentes caminhos das palavras. A magia de uma construção literária.

 

Pode-se ser o que quiser. Pode-se viajar por lugares nunca dantes imaginados. Pode-se ser quem escolher ser. A liberdade é irrestrita. Não tem um dono. Ou um tutor. Ou mentor. Também não importa.

 

Há o escrito. Há o leitor. Isso importa.

 

Lembrou-se daquele filme. Falava de escafandros e borboletas. E imobilizado – ele pensava. Não existe solidão para quem tem memória.

 

E ela ali. Sentadinha em seu terraço. Diante do sol. Sob o céu azul brilhante – concluiu.

 

A melhor embriaguês – é a composição de um texto.

 

 


Blog de Crônicas - situações do cotidiano vistas pelo olhar crítico, mas relatadas com toda a emoção que o cotidiano - disfarçadamente - injeta em cada um de nós.
Para os mais curiosos:
pesquisar
 
Comentaram o que leram!! Obrigada!!!
Casaste?
Estou bem obrigado
Olá Leda, tudo bem?
Olá LedaVocê está bem?Um Beijo de Portugal
Olá!!!Não consegui encontrar o teu blog no blogspo...
Parabéns pelo seu post, está realmente incrivel. V...
mau e excelente!!!!
Ótimo ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||...
Gostei.
COMO PARTICIPAR NAS EDIÇÕES DO EPISÓDIO CULTURAL?O...
Julho 2014
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5

6
7
8
9
10
11
12

13
14
15
16
17
18
19

20
23
24
25
26

27
28
29
30
31


subscrever feeds
blogs SAPO