Blog de Lêda Rezende

Setembro 09 2009

 

Uma queria explicar. A outra queria entender. E as duas queriam lembrar.

 

Ela comentou. Nunca choveu nesse período aqui. Agora é só chuva. Nem está frio. Mas a chuva está desobediente. Nada de boletim meteorológico.

 

E a vida parecia que ficava grudada no solo. Quando chove – tudo está sempre parado. O asfalto parece segurar os carros. Os trilhos parecem agarrar o metro.

 

Só as pessoas caminhando fogem à regra. Correm e correm entre calçadas e semáforos. Esbarram-se. Cruzam. Desviam. Rápidas. Movimento acelerado. Interessante.

 

A outra continuou. Amanhece com chuva. Anoitece com chuva. No intervalo mais chuva. Até riu deste comentário carregado de redundância.

 

Na hora quis até comentar sobre este efeito Linguístico. Mas a palavra faltou. Deixou para lá. E conjeturou. Quem sabe quando o frio vier – melhora. Antes frio do que chuva. Bom. Chega de falar em chuva. Melhor descermos logo. Deve estar cheio nesta hora.  

 

Desceram para o almoço. Atrasadas e ligeiras. O tempo voa. Quando a gente tem pressa – ele fica sossegado. Mas enfim. Não dá só para fazer críticas. Tempo é tempo. Chuva é chuva. Melhor uma adaptação. Eis dois casos em que a reclamação fica improcedente. Não tem como pedir deferimento.

 

Ela foi descendo e falando. Preciso comprar uma bota. Duas. Vou comprar uma marrom e uma preta. De cano alto. Com esta chuva não tem conforto melhor. E fica-se muito elegante.

 

Foi exatamente neste comentário que tudo começou.

 

Ela respondeu. Comprei uma muito bonita. Preta. Verniz. Linda. Cano alto. Sim. Foi naquela loja. Aquela. Até lhe dei uma blusinha de presente. Sim. Em seu aniversário. Tem naquele shopping. E naquele outro também. A loja.

 

Não consigo lembrar. O nome da loja. Nem daquele outro shopping. Fica perto da casa dela. Parece que estou vendo. A loja. O shopping. E a bota. Só tem lá. Não sei como o nome me fugiu. Da memória.  E que fuga. Nem uma letra parece vir para ajudar.

 

Ela respondeu com calma. Aparente. Rindo. Eu sei qual é. Sim. Você me deu a blusa. Ficou pequena. Tive que trocar. Fui naquele shopping novo. Foi inaugurada uma filial também lá. No shopping novo. Já disse. Sim. Também não lembro o nome.

 

Fui no domingo. Encontrei com aquela sua amiga morena. Que trabalha naquela Clínica. A morena. De cabelos longos. Não lembro o nome dela. Mas você sabe quem é. Ela até emagreceu muito nos últimos meses. Você até falou sobre isso. Que tinha sido uma dieta rigorosa.

 

Não lembra. Tem que lembrar. Você também trabalhou com ela. Ela estava lá comprando umas saias. Até conversamos um pouco. Ela perguntou por você. Mandou beijos. Pediu para você ligar para ela. Esqueci de lhe falar.

 

Sim. Só rindo. Não lembro o nome. Da loja também. E não lembro o nome do shopping.

 

Bom. Vamos logo almoçar. Hoje a agenda está cheia. Não dá para ficar de vassoura na memória. A poeira que fique lá.

 

Riram. Um riso contido. Continha uma vontade. De lembrar logo o nome. Do raio da loja.

 

E o nome daquela magrela. Sim. A paciência parecia ter ido embora. Junto com os nomes. Ele, se soubesse, ia logo fazer gracinhas. Ia dizer que ia tatuar em meu braço. Os nomes. Sim. Muito engraçadinho. Deixa encontrar com ele. Sim.

 

Bom. Mas vou torcer para lembrar. Do nome dele. Do motivo da reclamação. E até das gracinhas dele. No dia que o encontrar.

 

Agora quase engasguei. Tem razão. Só rindo.  

 

Acredite - vem tudo no consciente. Até palavrão. Palavrinha. Só não vem os nomes certos. E isso não é o pior. Queria tanto saber se é a Loja que estou pensando.

 

Bom. Diga então o nome da que você está pensando. Quem sabe é esta. Ou tem uma sonoridade parecida. E acabaremos por lembrar o nome correto.

 

Olharam uma para outra. Talheres nas mãos. Bandejas diante delas. Crachás em cima da mesa - ainda bem. Colegas e amigos passando. Olhando. Cumprimentando. Saindo. Chegando.

 

Ela começou a rir. Ela deu sequência. Riram. Riam. Muito.

 

Ela não podia dizer o nome da que estava pensando. Para ver se era o nome que a outra estava pensando. Simples. Muito simples. Não lembrava o nome.

 

Chegaram enfim a um acordo. O verão não demora. Melhor pensarmos em sandálias. Qual loja você comprou aquelas sandálias tão lindas. No verão passado.

 

A resposta veio rápida. Tal Loja. Em tal shopping tem. Naquele outro shopping também.

 

Era a das botas. Eram os shoppings.  Nem conseguiram terminar o almoço.

 

Rindo – subiram as escadas de volta.

 

Viva o verão. Com botas. Sentiram-se salvas. Desta vez.

 


Maio 19 2009

Ele falou assim.  Você está sozinha. Vou pegar esta cadeira. Licença. Assim. Objetivo.  Aliás, nunca vi termo mais adequado. Objetivo. O sentido. O pedido. A cadeira. Ela. Objetivo de objetos mesmo. Coleção de objetos. E numa rapidez impressionante.

 

Olhei para ela. Fez um gesto com a mão como liberando a cadeira. Sorriu.  Sem graça. E toda cheia de graça. O jeito que o olhou parecia esperar algo. Ou, quem sabe, algo mais ser pedido. Difícil saber o que.

 

São muitos os monólogos travados apenas com um olhar. Para virar diálogo depende da aceitação do outro. Do reflexo do olhar do outro. Para que uma mágica qualquer aconteça.

 

Mas não parecia uma temporada de muita mágica para ela. Para ele - não sei. Não estava com jeito preocupado. Queria mesmo resolver uma questão de assento. Para um terceiro amigo com quem dividia a mesa. Parecia só isso. Só queria a cadeira. Não percebeu o olhar. Ou fingiu não perceber.

 

Foi uma troca estranha. Estranha a eles. Mas formal.  De pedidos. De permissão. De olhar. De sorriso. E só a cadeira saiu do lugar. Só a cadeira se integrou a um grupo.

 

Ela ficou ali. Sentada. Obediente talvez ao aviso. De que estava sozinha. Quase uma ordem. Ou uma previsão. De que continuaria sozinha. Por isso lhe tirou a cadeira. Talvez ele tenha visto mais a impossibilidade. Do que a possibilidade. E ela tentou ver mais a possibilidade. Do que a impossibilidade. Vai lá saber.

 

Estava sentada numa mesinha mais para fora do ambiente. Tomava um café. Mas não parecia interessada nele. No café. Porque o abandonava na mesa. A esfriar. De vez em quando um mínimo gole. E o abandonava de novo.

 

Vestia uma blusa preta. De um ombro só. Um descoberto. O outro coberto. Escolha interessante. Uma saia preta curta. Uma sandália. Uma pulseirinha no tornozelo. Meia idade. Ou menos um pouco. Mas a maquillage era forte. Decisiva e decidida. A maquillage. Não ela.

 

Cada vez que abandonava o café olhava em volta. Parecia uma dança. Uma coreografia. Era colocar o café na mesa e o olhar se afastar. Isso a fazia parecer mais solitária ainda. Como se distante estivesse. Não deve ter sido por acaso que escolhera aquela mesa. Mais para fora do ambiente.

 

Todas as mesinhas estavam ocupadas. Todos os lugares. A garçonete corria daqui para ali. Bandejas e mais bandejas. O cheiro do café percorria todo o espaço.

 

E ela ali. Sentada em sua mesa de uma única cadeira. Afastada de todos e de tudo.  

 

Fiquei pensando nas escolhas. Que sempre são muitas. E numa ordem crescente. Escolhera a roupa. Escolhera o local. Talvez por ser perto de casa. Ou do local de trabalho. Vai ver também tinha hábito de ir até ali. Mas não me pareceu. Nenhuma garçonete a reconhecera. E nem deram uma maior atenção a ela. Teria Alguém. Vai ver o Alguém não tinha horário para almoço. Ou se tinha não quis. Vai ver um regime. O Alguém deveria ser gordo e estava de dieta. Poderia ter encerrado um romance recente. O Alguém já não mais estava adequado. E estava à procura de um novo. E ainda não se decidira. Por onde começar. Ou até se deveria começar. Ou seria meio tímida. Sim. Só meio. Por isso cobriu um ombro. E expôs o outro. Agradaria a tímidos e afoitos. E tudo dependeria de que lado a vissem primeiro. Mas o colecionador de cadeira a vira de frente. Foi diante dela e em pé que avisou da solidão. E levou a cadeira. E não se interessou pelo ombro. Nem o coberto. Nem o descoberto.

 

Num determinado momento abriu a bolsa. Olhou o celular. Não deveria ter recados. Nem chamadas. Guardou o celular. E pegou a xícara do cafezinho.

 

Repetiu o movimento. Recolocou na mesa. Esperei que olhasse em volta.

 

Como uma ária. A repetição no tempo certo. Mas não. Continuou olhando para a xícara. Depois puxou um pouco a blusa em direção ao ombro descoberto.

 

Levantou-se. Pegou o que lhe pertencia. Deixou para trás o que não lhe pertencia. Colocou a cadeira onde estava sentada bem junto da mesa. Vazia de todo.  

 

Parecendo cheia de si, saiu. No tornozelo, a pulseirinha dançava.

 

 


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