Blog de Lêda Rezende

Dezembro 14 2009

 

Ele pedira de uma forma muito cuidadosa.

 

Não é fácil pedir uma transferência de data. Mas pediu. Arriscou. Sempre arriscava. Eis uma coisa que nunca deixou esquecido. Os riscos. Ou as trocas de datas. Sempre. Até quando pode, arriscou. E trocou data. Muitas - adiou. Uma - antecipou.

 

Desta vez pedira para passar o Natal do modo habitual. Ela ainda com o mesmo sobrenome. Antes da cerimônia. Seria este então o último assim. E já estava tão perto.

 

Ela ponderou. Ele cedeu. Combinado. Transferiram. Adiaram.

 

Feliz, ele organizou uma festa particular. E cheia de surpresas. Foi uma noite de muitos risos. Em meio a muitas lágrimas. Incrível como um riso sempre atrai uma lágrima. E o inverso nunca é verdadeiro. E desta vez não foi diferente. A cada gracinha um riso e um choro contracenando. E simultâneos.

 

Ele solicitou mais um favor. Uma gentileza. Quase uma imposição. Não registrar em filmes. Nem fotos. Preferia que ficasse como registro apenas da memória. De cada um. E quando não existisse mais os “cada um” que o assunto então se encerrasse. Porque ninguém entenderia. Pelas fotos. Pelo filme. Todo o significado. Poderia minimizar a noite. As palavras. As lágrimas e os risos.

 

Tempos depois ela até discordou. Por ter aceitado. Gostaria das fotos. Filmes.

 

Quando tudo se modifica, as fotos nos levam de volta. Ao cenário. Ao que passou. Cada imagem vem com descrição. E isso funciona como um sonho. Imagens - primeiro. Palavras - depois. E por inteiro. Mas enfim. Não tinha as fotos.

 

Ele passara a véspera do Natal - o dia todo fora de casa. Ninguém sabia onde. Todos perguntaram. Quando finalmente voltou. Ele não explicou. Ninguém viu sacolas. Nem pacotes. Nem presentes.

 

Jantaram juntos. Todos. Muitos. Uma festa de Natal. Na sala ampla a mesa coloria. Com a toalha. Com a comida.  Com as taças. Na sala ao lado uma enorme e colorida árvore.

 

E a surpresa. Muitos pacotinhos novos em volta. E ninguém vira quem os colocara. Todos brincaram. Não tinha chaminé.

 

E veio o momento dos presentes. Troca daqui. Agradece dali. Surpresinha lá. Gritinho acolá. Papéis pelo chão. Aquele suave barulhinho de presentes sendo abertos. Como mistérios desvendados.

 

Ele caladinho. Esperando a sua própria vez. De entregar os que ele comprara. Aí começou a surpresa. Do Natal. Os tais pacotinhos até então sem dono. Eram dele.  

 

E iniciou a distribuição. Cada um ganhou o seu. Adequado ao estilo. Ou à função. Ou intenção. Colocou música. Fez discursinhos. Cada um ganhou seu texto.

 

Ela tropeçava e caía. Com facilidade. Quase caiu de rir. Quando abriu seu pacotinho do presente. Ganhou um protetor de joelhos. Com lacinhos e tudo para prender na perna.

 

Ele não passava um dia sem uma reclamação. Fosse do que fosse. Até da falta de motivo. Já acordava reclamando. Se queixando. Ganhou uma agenda de queixas. Com carinha de birra na frente.

 

Ela acreditava na relação perfeita. Que tudo sempre podia ser resolvido. Com uma palavrinha a mais. Ou a menos. Falava sempre numa certa condescendência amorosa. Confiava nisso. Vivia nas nuvens. Ganhou um tapete. Imitando um tapete voador.

 

Eles dois só brigavam. Não se desgrudavam. Mas brigavam. Não era preciso razão. Nem culpa. De repente lá estavam. Brigando. Discordando. Brigavam até quando concordavam. Já fazia parte da relação deles. As palavras atropeladas. Ganharam uma placa. Psiu. Silêncio.

 

E por ai seguiu a noite. A cada pacotinho aberto – risadas.

 

Nada com valor material. Só emocional. Não se importava com outro tipo de valor. Só com o valor da emoção. E era um adorador. De risos.

 

A data foi transferida. A alegria permaneceu. Com dia e hora inadiável. Na memória de quem ainda está. Na história recontada.

 

O cada um ficou menos. Ele se foi. Mas a cada "você lembra" - a ausência se transforma em presença. Eternizando a idéia dele que - apenas do modo habitual -  não mais participou.

 

 


Outubro 25 2009

 

Olhei o relógio.

 

Pela diferença de fuso já é aniversário dela. Lá. Além mar.

 

Fiquei pensando o que dizer a ela. Como explicar em palavras escritas - toda a nossa cumplicidade. Como dar entonação à letra. Todos esses anos que participamos de nossos aniversários. E os outros tantos que deixamos de compartilhar a data.

 

Desde que ela se mudou para lá. Há muitos anos. Nunca mais parabéns para você de pertinho. Cantado. Abraçado. E que agora estou eu aqui. Lembrando. Saudando. Num silêncio de um teclado. Ou - na musicalidade que o teclado também permite. Como uma sinfonia particular. Onde o ritmo acelera ou acalma – de acordo com a emoção a ser descrita.Um Allegro e um pianissimo simultâneos.

 

Ultimamente está virando rotina. Comemorando de cá. E os aniversariantes de lá.

 

Ri. Impossível conter o riso. Festejo é assim. Sempre um riso vem conjugado. Um pretérito perfeito.

 

Lembrei a última vez. Ela estava aqui. Morávamos perto. A casa dela se preencheu de amigos. Ninguém sabe organizar uma festa do jeito dela. Prática. E linda. A festa. Ela também. Lógico.

 

E as comidas. Maravilhosas. Descobri que manga em cubinhos entrelaçada com couve refogada em tirinhas é quase um símbolo. Ou uma natureza bem viva. De prazerosa refeição. Nacionalista. Ingredientes combinados. Adequados ao paladar e à digestão. Perfeito.

 

E o bacalhau. A linha entre o espiritual e o material fica tão apagada.

 

E as sobremesas. Inesquecíveis.

 

Às vezes disfarçava. Burlava a confiabilidade alheia. Tudo que ela fazia era perfeito. Portanto podia transgredir. De vez em quando falsificava. E - de um bolo qualquer comprado – uma obra de arte surgia. E negava a receita. Coisas da minha mãe. Ela quem me ensinou. E ria da própria transgressão.

 

A mesa impecável. Toalhas lindas recebiam a louça delicada. Compunham uma vista alegre. As taças. Os vinhos. O champagne. Um banquete para os amigos queridos. E a energia afetiva a fazia parecer descansada. Como se num SPA estivesse toda a tarde. Para receber os convidados na noite.

 

E o riso - sempre feliz. E os braços - sempre acolhedores.

 

Lembro de uma vez em especial. Logo que vim morar aqui. Ela tranquila me apresentava. Aos mais supostamente esquecidos. E desconsiderava perguntas indelicadas. Ou impedia que chegassem até a mim. Não queria saber de constrangimentos. O período era difícil. Ela sabia. Não possibilitaria mais dor. Ou invasões de privacidade.

 

Sempre respeitou. Nunca questionou. Não iria permitir o contrário. Fosse de quem fosse.

 

E todos acatavam. E acataram. Sempre. Até que desistiram de questionamentos.

 

E o tempo passou.

 

O último aniversário dela aqui.

 

Sabíamos que seria um longo tempo assim. Ela além mar. E nós todos aqui. Comemorando o dia dela – sem ela.

 

Mas deixou para nós muita sabedoria.

 

 

Na delicadeza do trato. Na organização de uma reunião informal. Na formalidade de afetos. Na disposição emocional de acarinhar.

 

Premiava a cada um com seu sabor preferido. Separava até os lugares. Sabia onde cada um gostava de sentar. E deixava o espaço já quase que nomeado. Deixa para ela este cantinho. É mais tímida. Ela não gosta de calor. Deixa perto da janela. E por ai seguia.  

 

 

Ensinou que as festas são para os amigos. Importa o que eles gostam. Não entendia festa com egoísmo. Festa não é para o dono da casa. É para os convidados.

 

Hoje. Não estou lá. Mas sei exatamente como está seguindo. A programação. O festejo. O cardápio. As flores. O cheiro percorrendo a sala.

 

E mesmo com muitas pontinhas de inveja – fico feliz por todos eles.

 

Estão diante dela. Podendo conviver na rotina. Cantando os votos da data querida de lá. Que são diferentes dos cantados de cá. Mas com a mesma intenção. Por certo. Ora, pois.

 

E adivinho o riso dela. Os agradecimentos.

 

O olharzinho sorrateiro de vez em quando esticado - em direção a todos nós. Que aqui estamos. Deste lado de cá do descobrimento. Celebrando e cantando de dentro do nosso coração. Enviando para alguma estrelinha que passe. Para que ela receba de lá.

 

Parabéns - Lia querida. Muitas saudades. Muitas felicidades. 

 

 


Outubro 07 2009

 

O ambiente estava tranquilo.

 

Uma ou outra mesinha ocupada. As pessoas conversavam com suavidade.

A Cafeteria ficava num falso subsolo. Dentro de um local de salas de cinema. Reservada e cultural. 

 

Uma parede de vidro ficava quase ao nível da calçada da Avenida. De um lado – as mesas dispostas para refeições maiores. Do outro lado – a Cafeteria. Um clima de acolhimento percorria com delicadeza o ambiente. O cheiro de café dava um toque de serenidade.

 

Pelo vidro se via o movimento da Avenida. Intenso. Uns passavam carregando agasalhos. Outros os tinham dobrados nos braços. Outros ainda, incautos ou incrédulos, tremiam diante do desacreditado.

 

Mas uma similaridade era geral. Social. Poderia até dizer - democrática.

 

Todos caminhavam apressados. Passadas firmes - e fortes.

 

Não se viravam para a vitrine. Não encaravam as pessoas. Só se desviavam e continuavam. Olhavam para frente. Objetivos.  

 

Lembro que foi uma das primeiras observações que fiz quando me mudei. Completamente imigrante – me sentava solitária em algum Café. Em geral numa específica esquina. Sempre levava um livro. Jamais era aberto. O livro dinâmico passava e virava as páginas ora com rapidez. Ora lentamente. Mas deixando um fio de continuidade implícito.

 

Nunca se sabe o caminho de uma metáfora. Enfim.

 

Eu observava. Sentada e presente. Mesmo despercebida - como se ausente. O ir e vir. Os casais. O comportamento dos casais. O exposto dos solitários. A forma como as pessoas caminhavam nas ruas. Como se dirigiam às mesas. Como percorriam corredores. Não importava a estação do ano. Não importava a roupa ou sapatos que portassem. O pisar era o mesmo. Forte. Decidido. Como uma marcha sem banda. Mas ritmada.

 

Impossível não lembrar aquele autor.

 

Ele dizia que se conhece a cidade onde se está pelo caminhar das pessoas. O caminhar do Homem. Como uma Qualidade. Ou uma falta dela. Sim. O autor conhecia realmente as cidades. E muito mais ainda - conhecia as pessoas.

 

Mas – escolhida a mesinha - sentamos.

 

Começamos a nos decodificar. Desfolhamos as idéias. Desvinculamos os roteiros. Desentendemos as formalidades. Rimos das dificuldades.

 

Enquanto ele também não chegava – fomos quase refazendo o percurso da Vida. De cada um. E de cada par.

 

De repente começou a falar das filhas. Duas. Pequenas. Bem pequenas. Cada uma com seu estilo. Com suas pequenas birrinhas. Com suas personalidades se compondo.

 

Nunca pensara em filhos por preferências. Meninos ou meninas. Era abrangente. Queria ser pai.

 

Estava esclarecida assim a sua posição diante do mundo. E se via agora pai de duas meninas. Falou os nomes. Falou dos tons de pele. Das nuances dos diálogos. Dos momentos de reflexões. Delas. Da importância dos limites. Da complicada dosagem equilibrada de limitar os limites. Do unificar - sem desvalorizar - sabedoria e autoridade.

 

Foi aí que compreendi. O que dizia o mestre Frances. Muito mais que um pai da realidade. Só funciona o pai real.

 

Tão de repente quanto começou a falar - fez um gesto. Brusco.

Virou a cabeça numa rapidez que nunca vi igual. Podia até ter problemas no joelho – como referiu. Mas o pescoço estava em absoluta ordem. Assim.

 

Virou. De uma vez. Como que procurando.

 

Olhou para o lado - como que tocado por um chamado.

 

Não da Avenida. Ou das pessoas que passavam apressadas. Ou do pisar forte de alguém apressado. Ou muito menos atraído pelo cheiro do café delicioso. Que desfilava numa bandeja esfumaçando a salinha. Nada disso.

 

Na mesa ao lado sentava numa cadeirinha uma menina. Bem pequena.

 

Enfeitava a sonoridade do local com sua vozinha suave. Cabelinhos pretinhos. Franjinha. Vestidinha de inverno. Sorridente. Foi sentando e falando. Ele foi escutando e virando. Assim. Sincrônico. Simultâneo.

 

Resgatado - continuou de onde tinha parado.

 

Mas comentou. Discreto. Saudoso. Parecia a voz da minha filha.

 

Talvez não fosse de expor as emoções. Vai ver por isso gostava de poesias. Poesia é o Lugar certo de disfarçar. É expondo versos que melhor se ocultam as sutilezas ou as certezas. Da alma. Nisso também os poetas são sábios. Quanto mais os identificamos, mais os perdemos de vista. Procede.

 

Mas enfim. Até me desconcentrei um pouco da conversa.

 

Pensei no virar brusco. Na lembrança da voz da filha. Que estava em outra cidade.

 

Pode ser esta - também - uma das formas de definir um pai. Uma definição possível. Ou – melhor ainda - uma tradução possível.

 

Assim. Sem frases de efeito. Sem frases sem efeito. Sem alegorias na Avenida. Pela certeza do Lugar - simplesmente e assumidamente - de pai.



Agosto 24 2009

 

A fila estava grande.

 

Um pouco de impaciência de um ou de outro. Pernas trocadas a cada minuto. Olhares solicitando cumplicidade se cruzavam e desviavam.

 

A responsável pelo registro saiu.  Assim. De repente. Levantou-se da cadeira giratória e saiu. Parecia em busca de algum auxilio. Não deu para saber. Só se sabia que demoraria ainda mais a espera.

 

Foi imediato. A responsável saiu e ela fez uma expressão de total desamparo.

 

Era a primeira da fila. Era bem jovem. Magrinha. Não muito alta. O cabelo amarrado para trás. A roupa despojada. Uma amiga a ajudava com os poucos pacotes que segurava.

 

No momento que a moça levantou e saiu - fez aquela expressão. De total desamparo. Virou-se para os lados. Para trás. As mãos continham o que comprara.

 

A amiga não sabia muito como agir. Ao menos parecia. Porque falava nada. Estava, talvez, um pouco assustada. Só isso.

 

Outra encarregada apareceu. Séria. Não se dirigiu a ninguém.

 

Ela falou quase como uma súplica. Curvou-se sobre si mesma. Como se dominada por alguma dor forte. Curvou-se. E falou para ela. Não podia demorar. Precisava pagar logo o que comprara.

 

A nova encarregada olhou para ela. Nada respondeu. Olhou para as pessoas da fila. Indiferente. Ia saindo quando ela repetiu. Ainda meio recurvada. E com a pele pálida.

 

Meu marido morreu. Esta roupa - vim comprar para enterrá-lo. Não posso demorar. Estão esperando. Preciso ser atendida rápido. A amiga colocou as mãos sobre o ombro dela. O gesto muito mais do que ampará-la parece que a deixou mais curvada.

 

Difícil um peso maior do que o de uma perda.

 

Olhei para as mãos dela. Segurava uma camisa lilás. Uma gravata roxa e uma calça preta se embaraçavam entre meia e roupa íntima por entre os braços dela.

 

Quando se sabe que uma roupa é para vestir um morto - a roupa parece ficar mais vazia ainda.

 

Deveria ser tão jovem quanto ela. E magro. A roupa era de tamanho pequeno. Falou algo sobre os sapatos. Precisava de sapatos. Mas era tudo sempre tão longe. Um departamento do outro. Estava agoniada. Angustiada. Talvez mais que isso. Parecia portadora de uma solidão imensa.

 

Todas as decisões pareciam ganhar a cada momento mais peso. E os ombros dela pareciam – a cada vez mais - suportar menos. E se curvava a cada gesto que fazia em direção ao que comprara.

 

A nova encarregada decidiu-se por ajudá-la. Quando começou a digitar os preços – ela olhou o relógio. Repetiu sobre a pressa.

 

E mais uma vez se curvou sobre si mesma.

 

Aquela cena era tão real que já sugeria uma irrealidade.

 

Olhei para as cores da roupa que ela escolheu.
Vestia o morto de morto.
Mas pedia pressa. Não podia demorar.
Talvez a pressa em atender ao morto o fizesse - temporariamente - vivo.

Olhei para as pessoas da fila. Ninguém mais falava. Sugeria um Teatro – não fosse a Vida.

 

Os que estavam sozinhos observavam – parecendo desprotegidos. Os casais talvez mais expostos - diante da perda exposta dela. Uns se tocaram. Outros ficaram mais próximos. Outros se afastaram. Outros ainda disfarçaram como se não fizessem parte daquela fragilidade universal. Ainda teve quem abandonasse as compras nos carrinhos e saísse. Fingindo afoiteza.

 

Cada um com sua verdade ou sua mentira. Cada um escapando da certeza única pelo viés que suportava.

 

O dia era sábado. Duas horas da tarde.

 

Não pude deixar de lembrar o poetinha. Falava da perspectivas do domingo em seu poema. Pensei no domingo dela. Quando o relógio não lhe pedisse mais a urgência. Quando as roupas ocupadas se fizessem vazias. Frias. Mais vazias. Mais frias.

 

Ela pagou e saiu. Saiu acompanhada pelo olhar de muitos.
E deixou para muitos a lembrança da perda - incorporada.

 


Agosto 16 2009


Ela sempre alertava. Muitas vezes as faltas são tantas que acabam ocupando lugares indevidos.

 

Não sei se são muitas. Ou se estão muitas. Ou se as vemos muitas. Meio complicado falar de falta. Expõem metades. Pelas metades. É sempre um paradoxo.

 

E pela metade muitas vezes são as explicações. E os excessos ambíguos da falta de explicações. Os descuidos com as gentilezas. O desuso das delicadezas.

 

Eis um terreno fértil. Com enorme rapidez fica-se pleno de faltas. Falta de interpretação. Falta de motivos. Falta de compreensão. Falta de confiança. Falta de lealdade. Falta de reciprocidade. Falta de conclusão. Falta de solidariedade. Falta de afetuosidade. A antiga e sempre conceituada falta de paciência. Isso sem esquecer a falta de compostura. Ou a sempre citada falta de condescendência. Que tantas vezes é aliada da falta de coragem.Ou da falta de conceito. Mas não se pode esquecer jamais - a falta de resposta.

 

Assim eu estava. Diante deste redemoinho de faltas. O telefone tocou. E o som fez um corte no tempo das faltas. Por que nas faltas do tempo isso já é comum.

 

Ela viera por uns dias. Rápidos. Era uma festa de família. Teria que participar. Mas conseguiu uma breve saída. Para vir até aqui.

 

Aguardei feliz. Chegou feliz. Desbravadora e vencedora dos trilhos. Nos trilhos. Confiante na decisão. Sorridente com a conclusão. Impossível errar o caminho. Já começamos a rir desde esta frase. Muito mais que uma frase.

 

Tudo reafirmava os caminhos trilhados. Não no destino. Mas na Vida. E certos. Ao menos parecia até o momento.

 

Quando sentamos para o vinho – nos repetimos. Rimos e choramos. Como no tempo das inaugurações do exílio. Ela no dela. Eu no meu. E o som das teclas fazendo vínculo entre nós duas.

 

Foram tempos difíceis. Mas nunca em tempo algum nos falamos tanto.

 

Nunca contamos tanto uma sobre a outra. Nunca soubemos tanto de nós.

 

Ali sim. Não havia falta de assunto. Eis uma falta abolida. Enfim uma. Até comemoramos. Podia faltar tudo. Mas nossa conversa era abundante. Um mais jorrar de palavras. De comparações. De questionamentos. De textos lidos. De textos a ler. Ela reclamava a impossibilidade do trabalho externo. Eu invejava o ócio temporário. Dela. E ela ria da minha agenda se construindo. Ou se paginando.

 

Descobrimos o sabor das páginas. Que só passam a existir quando preenchidas. Só se folheia o que está preenchido. Parece óbvio. Mas nem tanto. Páginas em branco são completas. De faltas. Não se brinca de olhar para elas por muito tempo.

 

Lá um dia me avisou. Arrumei as malas. E voltou para as raízes.

 

Depois disso – alguns hiatos. Um silêncio. Um retorno. Uma noticia. Um bilhete. Um sufoco. Um até mais. E por muito tempo nos afastamos. Da nossa história. Da nossa rotina. Até que um dia – faltou assunto. E sobrou silêncio. A tristeza - por saber mais faltas – se fez presente.

 

Agora estávamos ali.

Naquele momento. Sentadinhas nas cadeiras - na cozinha. A tentar atropelar o mínimo possível. Os relatos. Os excessos do - eu me lembro. Os inúmeros - você não sabia. Incontáveis - nem sei por que não lhe disse.

 

Quase foi preciso contratar um cronômetro.  De emergência. Ou uma nova emenda. Uma legislação de urgência. Você fala. Ela fala.

 

Fez um comentário. Sobre duas coisas que fazia bem. Dirigir e criar. E torcia pelo futuro. Para continuassem sendo elogiadas. Mesmo que num tempo passado. Rimos porque não faltou tempo. Achei genial a informação. E o pedido. Daria até para inscrição em pórtico. Passado. Presente. Futuro. Numa única eleição.

 

Mas enfim. Lembrei do Filósofo santificado. Ele falava isso. Que não existe futuro nem passado. Só presente. Porque é nele que falamos. Seja em que tempo for. Perfeito.

 

Quando nos despedimos – já todo o velho código estava re-paginado. Os risos resgatados.

 

As faltas pareciam diminuídas. Mas nunca se sabe. Talvez tenham escapado pela porta da saída. Ou ficaram atrás das cortinas. Ou se esconderam como poeira sob o tapete. Até ri quando pensei nisso. Pode-se passar a Vida toda permitindo que ele acolha faltas e erros. Deixando por cima risos e acertos.

 

O tapete como o Presente do Filósofo. Salvaguardando. O Futuro do Presente. Eis a enevoada solução. Arriscada por certo. Pisar sobre faltas é atividade que requer arte. Muito mais que sabedoria. Até por que quem sabe – não pisa.

 

Mas como dizia a minha avó. O que falta e o que sobra é sempre misterioso, menina, o que falta e o que sobra é sempre misterioso.

 

Olhou para trás. Deu um sorriso. E lá voltou pelos trilhos até o encontro agendado para a festa. Dia seguinte voaria cedo para as raízes.


Agosto 11 2009

 

Estou sempre lembrando os poetas.

 

Nunca estive tão à mercê deles como atualmente.

 

Hoje foi a vez dele - invadiu o meu pensamento. De repente veio assim. Uma poesia específica. Procede. Era sobre o dia dos anos dele. Como ele olhava para os anos passados. E como comemorava o ano presente.

 

Desconheço enredo mais belo.

 

Assim são os poetas. Não deixam que nada escape. E, a cada versinho, cada um se enlaça dentro da sua pessoal desorganização. Sim. Porque diante das organizações – a poesia escapa. Fica-se com as estatísticas. Ou com as listas. Ou até com as falsas verdades. Mas a poesia só denuncia a desorganização. Aprendi há tempo. Sem atalho e sem todo.

 

Brinca-se com as palavras. Como na arte da dobradura. Começa-se com um papelzinho sem marcas. Dobra-se daqui. Vira-se dali. E a figura que surge parece até espontânea. Mas não é. Palavra é escolhida a dedo. Mesmo que seja vinda de um ato falho. Ou de um ato perdido. Até de um ato esquecido.

 

Como as dobraduras – as palavras nos levam ao Lugar que manufaturamos. Disso ninguém escapa. Pode negar. Recusar. Mas não tem saída.

 

E lá estávamos nós. Há quatro dias. Diante de tudo que representava ato e fato. E até o contrário cabia. Festejo é sempre assim. Um não mais acabar de vice-versa.

 

Desta vez – mais uma refeição antes da partida. Reiteramos votos e afirmamos dúvidas eternas. Lógico. Não existe continuidade se não há as cultivadas dúvidas.

 

A minha avó estava certa. As certezas não constroem as grandes amizades, menina, as certezas não constroem as grandes amizades.

 

Foi pensando nisso que nos despedimos. Sob o som do zíper das malas sendo fechadas. Do barulhinho das rodinhas pelo piso. Do girar delicado da chave na porta.

 

Elas se foram. No final da tarde. Ou no final do dia. Não importa. Despedida não tem horário. Simplesmente é.

 

Saíram levando novos risos e novos códigos. Um pretenso caderninho com novas páginas escritas. Em meio às páginas amareladas dos velhos e recontados acontecimentos. Cada uma com seu olhar para o que viu. Para o que negou. Para o que descobriu. Até para o que esqueceu.

 

Quando saíram – sentei.

 

Olhei a mesa com a toalha branca ainda sobre ela. Caminhei com os dedos pelos bordadinhos. Uma manchinha vermelha me fez rir. Lembrei dela cobrindo com o guardanapo a pequena marca do desatento gestual. O cafezinho esvaziado em sua proposta marcava com fina textura a xícara deixada num cantinho da mesinha. As cadeiras desalinhadas denunciavam o senta-levanta. Nas pias alguns pratos se amontoavam certos da função bem aplaudida. Um papel colorido e brilhante num cantinho do sofá demonstrava os motivos do encontro. As flores coloridas erguiam-se alheias se idas ou vindas. Na bancada as fotos mexidas marcavam a dança da memória.

 

Um ventinho entrou por uma fresta da porta da varanda e percorreu o espaço como posseiro.

 

Em meio a esse amontoado de lembranças - o telefone tocou. Até dei um pulo da cadeira. A realidade se apresenta de todas as formas. Foi o que pensei. Procedia.

 

Do lado de lá alguém solicitava informações precisas. Práticas. Pragmáticas. Respondi o demandado. Sorri. Parecia que me acordavam. Que os acontecimentos giraram em torno de um cochilo. Uma piscadinha mais longa.  

 

A rotina re-estabelecia as suas metas. Não sei se com tranqüilidade – como pensei num primeiro momento. Mas por certo com determinação. Até acelerei os movimentos. E já fui olhando para o relógio. Só não olhei logo porque esqueci onde o havia colocado. Mania antiga. É sair da rotina – e o coitado do relógio vai para um canto qualquer. Mas – resgatado – voltou a dar as ordens.

 

E me pus de imediato a obedecê-las. Agora era só recolocar o que estava deslocado. Arquivar novos dados na memória. Voltar a prever o dia seguinte.

 

Guardar objetos em seu devido Lugar. Fazer o mesmo comigo. Retomar o meu tal devido Lugar.

 

Bem o contrário do que foi vivido. Pensei enquanto colocava os registros em ordem. Enquanto alinhava as fotos no balcão. Ou arquivava a poesia. Ou enrolava e dispensava o papelzinho colorido do presente. E o tempo se fez total. Sem fragmentações. Quase sem antes e depois.

 

Estávamos com os dias ao nosso redor. Agora era continuar ao redor dos nossos dias.

 

Tudo co-memorado na forma de-vida. Ri. Feliz.

 


Agosto 04 2009

 

Pode parecer redundante. E é. Isso não se discute. Nem se tenta esconder. A emoção superou a emoção.

 

Se ele escutasse perguntaria. O que isso significa. Esta é uma pergunta que ele sempre faz. A pergunta pelo significado exato.

 

Não há frase escutada, nem texto lido - que a pergunta não venha acoplada. É tão justa que nem hífen interfere. Ou nem hífen tem autorização para cortar a questão. Junto com a postulação - algumas vezes até esboça um riso. Não sei se da tal pergunta. Ou da idéia alheia. Isso é sempre difícil de qualificar.

 

Cada um pensa o que decide. Mas revela apenas o que não censura. A si próprio. Ninguém gosta de se colocar em posição de resposta. Só em posição de pergunta. Uma boa escolha. Sábia. No mínimo - também - cautelosa.

 

Mas fiquei ali. Lendo e relendo a mensagem. Com a emoção superando a emoção.

 

Então tudo dera certo. Mesmo de tão longe. Mesmo sem participação materializada. Sem conhecimentos das faces. Ou das interfaces. Foi só indicar a vontade. Seguir a sequência. Obedecer aos comandos. E deixar lá.

 

E agora o retorno. Assim. Mais de repente que de repente. Ela avisava. Consegui. Chegaram. Estão lindos. A impressão é ótima. Até a embalagem de envio é muito bonita. E adequada.

 

Nem sei quantas vezes li e reli. Esse recadinho.

 

Já fui logo acrescentando. Na imaginação. Será que ela leu comendo bolo de nozes. Será que fez um cafezinho. Será que estava sentada na mesa da cozinha. Não faltaram - será.

 

E o mais engraçado é que nem respostas. As respostas - as tinha. Podia vê-la recebendo. Abrindo. Sorrindo. Podia sentir o entusiasmo. O acolhimento. A pontinha de orgulho por participar. Podia até ver a pressa em abrir logo. Mas sem perder a delicadeza. O cuidado. Para não rasgar o papel. Podia descolar ou desamarrar. Mas nunca rasgar.

 

Lembrei do mestre austríaco. Ele que comentava sobre o papel. O mais importante nem sempre é o que está escrito. E sim saber que a pessoa está passando as mãos no que foi escrito. Isso é belo. Alguém que nos conhece – toca nas frases que inventamos. Nunca o entendi tanto quanto hoje. Tantos anos de estudo. E um aviso decodifica toda uma teoria. Maravilha.

 

Mas foi assim. Ela fez o pedido. O pedido foi atendido. Em cima do que foi escrito. Tudo muito rápido.

 

Fiquei pensando no tempo. Ela saiu daqui. E foi para lá. Além mar. Tempo e espaço deslocados. Ou recolocados. Nunca se sabe.

 

Lembrei da minha avó. Ela falava sobre isso com uma seriedade não muito habitual. Cada vez que a via falar com aquela expressão - eu sentava. Como se o ato de sentar me fizesse mais atenta. Ou formalizasse com mais rigor. O que ela – meio à toa – falava.

 

Tempo e espaço não são relógio nem mapa, menina, tempo e espaço não são relógio nem mapa.  

 

Procede. Agora estava o conceito demonstrado. Ela – além mar. Eu – muito aquém do mar dela. Daqui escrevi. De lá publicaram. Ela escrevia o bilhete de recebimento. Eu lia o aviso de leitura. Dá até para ter confusão mental. Ri.

 

Pensei. Preciso comemorar. Preciso contar. Para quem incentivou. Para o mundo. Para mim mesma.

 

Foi o que fiz. Nesta ordem. O mundo estava ocupado. Com seu ritmo. Seus acertos. Sua rotina. Muito justo. Compreendi.

 

E fiquei com o mim mesma. Desta vez imitei o mestre francês. Fui para o espelho. Olhei e comemorei. Numa solidariedade afetuosa.

 

No final do dia - outro recadinho dela. Havia se descoberto lá dentro. Na dedicatória. Nos relatos. E informou. Ao receber - sentara na cozinha. Na bandejinha diante dela colocou um bolinho. Partiu duas fatias. Leu tomando um cafezinho com uma gotinha de conhaque. Sorrindo para as páginas.

 

Conferiu o tempo. A distância. Acreditou na simulação. Confiou na execução.

 

Entre além e aquém – esqueceu a Semântica. A Sociologia. Até a Filosofia. A fantasia apagou os mares. Ai esqueceu - por fim - a Geografia.

 

Assim me informou. Assim li. Assim entendi. E assim uma publicação - se fez ao contrário. Exatamente como deve ser.

 

À noite ele me trouxe flores. Fiquei - Muito Feliz. Com letra maiúscula.

 

Preciso marcar a data de hoje. Fui dormir - sorrindo - pensando nisso.

 


Agosto 01 2009

 

Quando li o recado demorei a acreditar.

 

Acendi a luz. Abri a porta da varanda. Um pouco de iluminação também externa podia ajudar. A clarear. Até a esclarecer. Limpei os óculos. Ajeitei de novo a cadeira. Até reiniciei o portador. Uma brisa entrou suave.

 

Depois de tantos anos. Um recadinho estilo - procura-se. Era eu a procurada. Era ela quem procurava.

 

Cada vez que eu pensava isso – queria repetir o ritual de configuração. Lá se ia de novo limpar os óculos. Até ria.

 

Certo. Vamos ver do que se trata.

 

Desde que sai de lá nunca mais tive notícias. Ou melhor. Tive algumas. Terceirizadas. Estava se solidarizando com quem escolhera. Como uma ajudante voluntária e fraterna. Não importava. Se já vali. Se já valeu. Devia saber o que fazia. E aprovei. Sem interferências. Muito menos queixumes. Não tinha tempo.

 

Entre as caixas da mudança e as idas a hospitais para coração descompassado – só me restava o tempo exato para ter calma.

 

Quando as caixas saíram vazias e o coração compassou - no final da tarde tinha o café.

 

Ela vinha com bolinhos de nozes e sotaques. Não dava tempo para queixumes. O riso começou a ocupar o espaço com franca e exposta decisão.

 

O tempo passou. Os dias se somaram e foram completando a década.

 

Mas lá estava o recadinho. Procura-se. Uma década depois. Parecia que os dias estavam se dividindo. Para explicar um tempo que passou. Como se folheasse um calendário antigo. De trás para frente. Ou vai ver era mesmo de frente para trás.

 

Como dizia a minha avó. Não se comprometa com o calendário, menina, não se comprometa com o calendário.

 

Tinha razão. Fatos e atos podem ser partilhados com qualquer um de nós. Mas as datas de um calendário são sempre alheias - também a qualquer um de nós. Foi uma sensação inicial. Assim. Confusa. Ambígua. Surpresa. Tudo ao mesmo tempo. Ao ler o recadinho.

 

Decidi responder. Achou. Estou aqui. Resolvi complementar a informação com dados atualizados.

 

Li e reli umas trinta vezes. Aumentava os relatos. Cortava. Fiquei um tempo entre o prolixo e o sucinto. Entre um imposto e um exposto. Optei por este Lugar - entre um e outro. Mas me identifiquei.

 

Até me assustei. Quando a gente se identifica – se qualifica. Ou o contrário. Diante de si próprio. Foi o que descobri. E lá me vi de novo - às voltas com o calendário.

 

Escrever avisando aqui estou – fez novamente passar as páginas dele. Desta vez de todo lado. De frente para trás. De trás para frente. Deu até vontade de encontrar um ainda não impresso. Um da frente para frente.

 

Mas enfim. Depois de ler e reler. Informei. Confirmei. Achou.

 

Foi como se – eu - tivesse me achado. Depois de uma década.

 

As pessoas do passado têm esta capacidade. Ou funcionalidade. Quando voltam – é como se uma materialização se procedesse. A formalidade da informação - como um balcão de cartório. Vai-se relatando os dados na suposição que o outro – do outro lado do balcão – os esteja registrando com a valorização procedente.

 

Só depois descobrimos que os tais dados só são importantes para nós mesmos. Eles é que nos localizam. O outro apenas os transcreve. E nos devolve. E ficamos com os nossos dados em volta de nós – vida a fora.

 

Não era um balcão. Não tinha funcionário. Não se reconhecia a firma. Protocolarmente falando.

 

Mas tinha uma explicação. Uma descrição. Uma até possível entonação. Como uma anamnese de saúde. De sobrevivência. Com umas gotinhas de orgulho. Uma dose quase medicamentosa de vaidade. E uma overdose de alegria egocentrada. Pelas escolhas. Pelas conquistas. Pelas parcerias estabelecidas. Até pelas perdas. As perdas estão sempre presentes. Mas o motivo é nobre. Elas expõem as escolhas. Procede.

 

Sentada diante do texto – li tudo que escrevi. Desta vez fugi ao habitual. Não imaginei o que ela pensaria ao ler. Fiquei imaginando o que eu pensaria disso – há uma década.

 

Os dados foram enviados. Com os anos colados a eles.

 

O calendário - discreto - observava silencioso sobre a mesa.

 


Julho 21 2009

 

Acordava sempre muito cedo. Não tinha um só dia que não reclamasse.

 

Lembrava dos tempos da graduação. A única matéria que tivera problema. A aula se iniciava quase com o nascer do sol. Não dava muito certo. Se faltava – era porque não conseguia acordar. E quando ia - passava todo o horário da aula dormindo. O professor até ria. Quando estava de bom humor.

 

Mas nem sempre ele estava. De solidário bom humor. Perdeu. Fez uma recuperação. Que - por sorte dela - começava depois do dia já normal. Assistiu todas as aulas. Foi aprovada. Com as boas notas de sempre.

 

Enfim. Sempre fora desse jeito. Podia emendar noite com dia. Em tarefas ou prazeres. Mas nunca acordar antes do sono já vencido. Quando isso acontecia o sono é que saía vencedor. Assim explicava. E assim ria. De si e da explicação. Podia até faltar disposição matutina. Mas bom humor nunca faltou. Fato verídico e comprovado.

 

Mas parece que é desta forma que o mundo rege. Ou é regido. Na contramão do desejo. Ou da vontade. Ou da idéia. Não importa.

 

Após a tal graduação não faltaram motivos. Ou imposições. Ou talvez ainda ocasião. Parecia que tudo para ela só começava cedo. Cedíssimo.

 

Aceitou. Se é para ser – aceito. Não adianta ir contra. Fui vencida.

 

Pior ainda do que no tempo da graduação. Agora acordava antes do sol. Enquanto ele se espreguiçava - ela já estava de saída.

 

Mas não era tão resignada. Fingia. Mas não era. Reclamava. Muito. Fez mil invenções. Inventou susto oriental. Afundou despertador. Toques de submarino. Da mitologia à tecnologia não faltou ameaça. Ameaçava tanto que já nem sabia mais a ordem.  

 

Mas uma coisa não se podia dizer dela. Que atrasava. Nunca. Nem uma só vez. Não atrasava. Ao contrário. Até se antecipava. O amadurecimento tem lá suas vantagens. Não se luta contra o óbvio. E aprende-se que minutos não compensam horas. Às vezes ela se atrapalhava e dizia o contrário.

 

Mas cumpria o que tinha que ser cumprido. E recebia elogios. Muitos perguntavam se vinha daquele país onde a pontualidade tem nome e sobrenome. Faziam piadinhas e gracinhas. Com a pontualidade antecipada dela.  Não se aborrecia. Ria. E se surpreendiam. Quando revelava a origem. Aprendeu a se divertir com isso também. Eis algo que o despertador não tirou. O entusiasmo pelo riso. Isso era factual. De relação profissional a particular. Ou de afetiva e amorosa. Sempre era esse o comentário. Estava sempre bem disposta. E procedia.

 

Neste amanhecer foi especial.

 

Desceu as escadas. Ainda estava escuro. Reclamava de si para si. Sim. Não tinha ninguém saudável àquela hora acordado. Tinha que reclamar e responder. Ela com ela mesma. Como uma esquizofrenia matutina. 

 

De repente escutou o aviso de mensagem no celular. Conferiu. Era dela. De lá. Além mar. Mandava um recadinho. Não imaginava que ia ser lido naquela hora exata. Outro fuso. Outro horário. Mas em tempo real.

 

Entendeu pela primeira vez o significado emocional disso. De tempo real.

 

Não resistiu. Respondeu. Ela retornou. Surpresa. E ficaram de conversinhas. De combinações. De comparações. Uma de cá - no escuro do dia recém amanhecido. A outra de lá - no escuro do dia já alto e enevoado. As duas no escuro. Clareando as idéias com o feliz riso solto.

 

O pão queimou. Ficou igual às duas auroras. Num momento de concentração na resposta se viu colocando manteiga dentro da xícara de café.  Informava a sequencia de erros. E riam. E trocavam as novidades. Rapidamente. Não podia se atrasar. Ela daqui. Nem ela de lá. Cada uma compromissada com a própria rotina.

 

Depois de pães queimados e leites derramados - não choraram. Riram. Ela – prática –avisou. Vamos tocar o dia. Boa sorte no seu. Ela de cá respondeu. Sim. Muito boa sorte no seu também. E no silêncio da comunicação teclada - se entenderam. E se despediram.

 

Pela primeira vez em tanto tempo – não reclamou. Estava feliz com o despertar cedinho. Achou até que já estava acordando tarde.

 

Riu. Imaginou o que diria o tal professor se tivesse assistido esta cena.

 

O dia seria muito bom. Sem dúvida. E imitou às avessas – e em homenagem – o conterrâneo dela.

Tudo fica bem – se começa bem.

 

Acabou a arrumação e saiu feliz.

 


Julho 16 2009

E de repente, aqui sentada, me deu um estalo.

Estalo.

A palavra certa. Tão rápida que a conclusão veio. Fez até um barulhinho.
Passei a mão nele. Senti. Pensei. Eis aqui um verdadeiro amigo. Fiel. Estável. Incondicional.

Comecei a lembrar. Das incontáveis vezes que fiquei com ele. Inúmeras lembranças me ocorreram. E sei que ainda estou sendo injusta. Muito mais deve ter me feito de companhia.

Lembro quando chegou. Foi logo se integrando ao novo conjunto.
Incluía todo tipo de perspectiva.
Fez-se de belo e esnobou o espaço. Ficou imenso. Mas ficou em seu quinhão. E dali só era movido em raros e especiais momentos. De busca. Digamos assim.

Escutou muitos risos. Risos de festa. De alegria. Lembro de algumas festas. Tão ativamente participou. Embora passivo parecesse.
Em uma estava de roupa nova. Cheirinho de talco.
Todos falaram dele. E falaram de si e dos outros. Diante dele.

Escutei alguém recomendar: não derrame o vinho nele. Cuidado. E o recomendado se ajeitou. De forma mais elegante. Para que tal transtorno não acontecesse.

Numa outra estava tão bonito. Todo branco. Muitos preferiram ficar de frente. Não se aproximarem muito. Sempre alguém cuidando para que não houvesse acidentes. Escutou histórias. Em vários sotaques e idiomas. Teve até briga em Inglês. Tudo diante dele.

Silencioso cedeu o espaço. A cada um dos conflitantes.

O tempo passou.
Com os risos e as lágrimas alternadas.
Tempos de mais risos.
Tempos de mais lágrimas.

Durante anos e anos. Mudou de aspecto. Mudou de espaço.
Mas sempre ali. Disponível.

Se na noite o quarto não permitia riso - era direto para ele que se caminhava.
Se os excessos acabavam com a certeza do percurso - ele era o primeiro a ser encontrado.
Se o caso era apenas um pouco de silêncio e penumbra - só junto dele existia esse lugar.

Não havia situação que ele não estivesse envolvido.

Negócios foram feitos diante dele. Ficou encoberto por fumaça. Cheirou a nicotina. Aceitou mãos tensas sobre ele. Até um tapa escapou certa vez.

Foi o único que sempre se manteve calmo.

Escutou promessas de todo tipo. Escutou desculpas. Desenganos. Enganos.

Foi daqui pra lá. De lá pra cá. Houve um tempo que esnobou o espaço. Outro em que se viu pequeno diante dele.

Conheceu gente que ficou por longo tempo e depois partiu.
Gente que ficou por pouco tempo e depois partiu.
E gente que chegou e jurou não partir.

Viu gente pequena crescer. Serviu de amparo para as perninhas que tentavam se deslocar. Trôpegas.

Entre idas e vindas. Continuou escutando. Todo tipo de emoção.

Foi aqui. Sentada. No meio da noite. No silêncio.
Que se deu então o tal estalo.
O que já falei antes. Não sei. Como nunca percebi isso.

Um fiel amigo. Viva o sofá da sala.

 


Julho 16 2009

 

Os anos passaram mesmo.

 

Ela nem se dera conta. Termo exato. Não contara o tempo. Os dias. As mudanças das estações. Não deu importância. Nem ao calendário lunar. Só ao que somasse ou multiplicasse. Esta uma forma segura. Ou uma tentativa bizarra. De não angustiar - pelo que não tem. Olhando apenas - para o que tem. Estava se sentindo adequada. Aprendera algo. Aprendera a seguir com os dias. Para a frente.

 

Se escolhera disfarçar a falta - nada melhor que viver de somar. E lá se ia.

 

Somava roteiros. Descobertas. Novidades. Até nomes de ruas.

Mas não é bem assim. Dias também se contam para trás. Porque são particulares. E cada um tem seu próprio calendário. Seu gregoriano de plantão. Como uma emergência providencial.

 

Ao abrir da porta - teve uma sensação estranha. Como se tivesse estado desmemoriada. Ou em estado de esquecimento. Durante muito tempo. Naquele momento se deu conta. Do tempo.

 

Estava bem mais atrás. Quando ela deu a ordem de saída. Seguiu a fila. Ainda no mesmo estado. Caminhava lenta. Compassada. Com olhar de rotina. Sem alardes. Sem manifestações. Não deu para negar um detalhe. Mínimo. Um súbito frio que escolhera o estômago. Dela. Como um posseiro. Impulsivo. Aqui vou estar.

 

Ela desconsiderou. Deveria ser o cansaço.

 

Chegou à porta. Diante da escada. Entendeu uma frase banal. Da tal luz no fim do túnel. Nunca viu tanta similaridade. E entendeu o tal friozinho posseiro.

 

Primeiro o cheiro.

 

O cheiro de mar. De maresia. De berço. De sereia. De fartura. Respirou forte. Como para despertar um sentido até já esquecido.

 

Naquele momento importava respirar. Respirar. Como o primeiro dos atos. Como o primeiro dos instintos. Lembrou de tudo. De tantos. De todos. De teorias. Isso numa única inspiração.

 

Até fechou os olhos. Os sentidos exigem – muitas vezes – privilégios. Concedeu.

 

Deu mais um passo. Sentiu a luz. Uma luz forte. Mas calma. Encheu todo o espaço. Os olhos não demoraram a se acostumar. Mas demoraram a acreditar. Como tinham conseguido compreender.  A distância da luz. E por tanto tempo.

 

Descendo a escada sentiu o calor. Na pele. Nos cabelos. Como um abraço. O calor contornava o corpo como uma manobra de revitalização. Emoldurando, despertava. Como uma aura festiva. Assim sentia.

 

Pareceu escutar um bem vinda.

 

Cercada pelo cheiro. Pela luz. Pelo calor. Decodificado todos os sinais. Na emoção. No corpo. Concluiu. Estou aqui. Como se a memória só naquele momento estivesse despertado. E aberto as suas gavetinhas. Expondo fotos. Marcas. Traços. A própria história. Desde sempre.

 

Obedeceu. Agradeceu.

 

Foi seguindo o percurso estabelecido. De vez em quando até fechava os olhos para sentir mais forte o cheiro. Depois abria os olhos com muito cuidado.

 

Como se assim pudesse separar cor por cor. Com lentidão. Para que nada escapasse. Ficara tomada de egoísmo. Egoísmo pelo puro prazer de quem retorna. Não sabia se havia esquecido aquela intensidade das cores. Ou se havia se defendido – acinzentando a tal intensidade daquelas cores. Tantas vezes o que parece - não é o que parece.

 

É muito mais fácil viver o prisma inteiro que um único ângulo.

 

Escutou sotaques. Regionalismos. Palavras que nunca mais dissera. Comportamentos que nunca mais tivera.

 

Recostou no carro. A cabeça um pouco para trás. E assim ficou. O tempo que o percurso durou. Virando com vagar para mais um detalhe. Ou para saber das ausências. Das mudanças. Das descrenças.

 

Foi retomando seu registro. Entendendo a própria presença. Se incluindo no estilo. Se re-compondo. Poderia sentir. Dizer. Repetir. Escutar. Sou daqui.

 

Olhou para todos os lados. Para todos os espaços. E respirou - tranqüila.

 

Por um período - estava de volta. Apertou forte a mão dele na dela. Sorriu.

 

 

 


Julho 10 2009

A frase veio com néon. Assim ficou. Penduradinha. Brilhando. Questionando sem pudor. Nem constrangimento. E com insistência.

 

Sim. Outros pensamentos vieram - mas ela não saia. A tal frase. Não respeitou ordem. Não aceitou um mais tarde. Muito menos um logo depois.

 

Até um desapareça foi ensaiado.

 

Nada resolveu. Ficou.

 

Parecia decidida a ter uma resposta. Ou uma conclusão. Alguma solução teria que ter. Mas dali não se retirava.

 

Ficara o dia todo. Desde o despertar. Até deve ter sido a causa do despertar. Foi começando meio sem brilho, meio enevoada. Formulada em sílabas separadas. Com o despertar completo parece que se incorporou. Encheu-se de força e poder. Sim. Muito poder. Só este excesso de poder para vencer as abstrações. Aliás, só um excesso de poder para desconsiderar constrangimentos.

 

Podia-se até recordar as palavras do mestre Francês. Ele dizia que não entendia. Como se sabia que o pensamento vinha de dentro. E não de fora.

 

Eles são assim. Só jogam o indecifrável. O mestre austríaco queria desnudar a alma feminina. O mestre francês queria desacreditar o pensamento.

 

Enfim. Nem mestre austríaco. Nem mestre francês. Nada afastou a tal frase. Continuou ali. Brilhando a sua pergunta. A interrogação parecia bem maior que a frase.

 

Lembrei a minha avó. Ela sempre repetia isso. Como um alerta. Não tem pergunta que a formulação seja maior que a interrogação, menina, que seja maior que a interrogação.  

 

Em determinados momentos a interrogação se destacava. Em outros a frase sobressaia. Mas olhando atentamente. Não havia uma frase com uma interrogação no final. Na realidade havia uma interrogação arrematando uma frase. Pode parecer igual. Mas não é.

 

Como se faz para des-impregnar a retina.

 

Esta a pergunta. Esta a interrogação.

 

Passa-se a vida toda impregnando. De imagens. De cores. De situações. Todo um novo conceito apreendido. E fixado na retina.

 

Começa-se por imagens. E por imagens se termina. Mais ou menos assim.  

 

Em meio a elas permeiam as letras. As cores. Os brilhos. As nuances. Os adereços. Mas as imagens sempre lá. Tudo o mais gira em volta delas. Das imagens. Nomes. Endereços. Até números de registro. Estilos. Sons.

 

Inclusive o da voz.  Quantas vezes se repetem. Posso até ver. Quando fala assim - sei bem o jeito. Até quem não pode ver. Vê pelo tato. E compõe a imagem. Sabe quem é pela imagem táctil. Mãos e retina se fundindo num só arquivo.

 

A imagem autoriza. Desautoriza. Repete. Há uma genética envolvida. Uma exacerbação. Um desafio. Não se lembra de mim. E a resposta sempre vem rápida. Sim. Mas você mudou tanto.

 

Há todo um referencial pela imagem. Ela vai acompanhando, na retina - as mudanças. Ou a retina vai gravando as mudanças – na imagem. Como um jogo de slides. Mas personificado. Para cada um – seu estojinho de slide.

 

Para cada um – a retina individual faz seu álbum.

 

Como se faz para des-impregnar a retina.

 

Se a imagem desapareceu. Como ensinar a retina a não mais procurar. Como se apaga um entalhe cinzelado. Como se treina ao contrário uma retina.

 

A pergunta ficou. E ficará.  Por um tempo. Como a busca da imagem.

 

Mas introjetará algum dia. Por certo. Assim se espera. Neste dia a frase apagará o neon. O poder se fará compreensão. E a interrogação se fará um ponto. Final.

 

Com mais tranqüilidade a retina aceitará. A resposta.

 

A impregnação é para sempre. Mas não para o cotidiano.

 

 


Julho 08 2009

 

Não pude deixar de lembrar o poeta. Aprendi. A entender os poetas.

 

Eles devem ser uma obra pessoal do Criador. Vêm em nosso auxílio em momentos que não adivinhamos. Com seus versinhos delicados. Com sua forma singela de escrever. Deixam ali. Escritas. Gravadas. Suas mensagens.

 

Nada demandam. E tanto oferecem. Entendem da dor. Do amor. Da saudade. Deixam seus recadinhos. Modestos. Para que possam ser utilizados nos momentos adequados.

 

E que cada um escolha o seu verso. Já que dos momentos - não se tem escolha.

 

Nunca amei tanto os poetas quanto hoje. Nunca me curvei com tanta deferência diante deles.

 

De repente do riso fez-se o pranto.  

 

E uma enorme tristeza veio. Ocupou – ou tentou ocupar - um espaço bem menor do que ela. Faltou corpo. Faltou alma. Para dar conta de tanta dor.

 

A notícia veio rápida. Ela se foi. Passava no momento errado. No lugar errado. E se foi. Assim.

 

Não parecia verdadeira. Não parecia possível. Parecia com nada.

 

Só a memória iniciou seu comando. Com a mesma rapidez. Fez-se dona da dor. Reconheceu e registrou a perda. De imediato. E comandou. Solitária.

 

É triste a perda da parceria das lembranças. Pode tudo ser recontado. Nunca mais, porém, partilhado. Ou compartilhado.

 

A história não se escreve com duas mãos. Ou com uma idéia. É escrita a partir de quatro mãos. E um povoamento de idéias. Se não - sobra história e falta documentação. Da possível ratificação. Falta o riso solto - eu também me lembro. Falta a lágrima solidária - eu também não esqueço. Falta até o simples diálogo - nós estávamos lá na época. Agora já não há mais com quem dividir. Ou duvidar. Ou esclarecer.

 

Assim as lembranças chegavam. Desordenadas. Fora de organograma e cronologia. E os versos dos poetas se interpondo. Como um trançado. Por onde a dor, se ramificando, também se amparava. Ou tentava se amparar.

 

Como recobrindo este muro tão rapidamente desnudado.

 

Veio à mente as palavras do escritor preferido. Ele - contras as intermitências. Do susto inadmissível pelas perdas. Talvez da complexidade de um luto. O susto teria que ser se não houvesse jamais a perda. Se viesse um aviso. Este aqui não irá.

 

Na época que li – pensei. Talvez numa briga egoísta e pretensiosa. Com um autor daquela dimensão. Ele escreve muito bem.  Mas entende nada de perda.

 

Sim. Pretensiosa.

 

Mas talvez tenha um adendo. A questão pode ser – também - outra.

 

Também. O saber desde sempre da futura perda não faz menor a vulnerabilidade. A nada. Talvez todo o saber aja ao contrário. Exista para isso. Para expor a vulnerabilidade. Quanto mais saber - mais vulnerabilidade. Como leitores de dicionários. Substituindo um por um dos mistérios - para multiplicar significados. E vice-versa.

 

Não o quando. Não o se. Mas o como. As tantas formas das perdas. Carregadas de mistérios. E mal completadas – já sobrecarregadas de significados.

 

Há um hiato. Entre o momento da partida e o momento da perda. Não é igual. São momentos registrados de formas diferentes. Antônimos.

 

A toda perda corresponde um excesso. De silêncios. Do que não foi dito. Do que não foi confirmado. Até de um tempo perdido. Uma angústia se somando à outra. Na individualidade da solidão. As desculpas. As culpas.

 

Como se simples operadores de registros todos fossem.

 

O que faltou dizer, se transforma em companhia. Em relatos.  

Como uma necessidade para que o luto possa se processar. E a manhã possa continuar.

 

E até mais, minha querida amiga.

 

 


Julho 07 2009

 

Decisões são da ordem da auto imposição. Assim fez. Nem bem tomou a decisão e já pôs mãos à obra.

 

Termo bem adequado. Parecia uma obra. Uma construção.

 

Já acordou pensando. Vou arrumar os livros. Nem sabia explicar por que a decisão. Detestava arrumação. E por um motivo simples. Bem simples. Detestava ver a desarrumação que uma arrumação provocava.

 

Alguém havia lhe dito. O por que desta reação. Lembrava, certamente, a desarrumação interna. Como um espelho. Por isso se angustiava.

 

Na época até ficou atenta. Agora decidiu deixar a interpretação de fora. Ao menos naquele momento. Mal dava conta da idéia. Imagina da etiologia da idéia.

 

Riu e prosseguiu na decisão. Cedeu a este primeiro pensamento do despertar. Se tinha um motivo – descobriria.

 

Começou pela estante da frente. Alguma ordem tinha que ter. Para enfrentar a desordem. Escolheu a ordem decorativa, digamos assim.

 

Auxiliada por um paninho, álcool e óleo para couro – lá se foi. Se sentiu uma restauradora daquele famoso Museu. Não faltou nem a máscara descartável. Afinal. Nem só de restauração vivem os alergistas. E vale mais uma vez o contrário. Em parte.

 

Uma idéia realmente de mosteiro. Estilo auto flagelação.

 

Parecia ter tido um começo. Em algum momento começou. Mas confirmava nunca ter fim. Em algum momento assim pensou. Sim. A cada livro retirado para ser adequadamente catalogado – uma nova fileira tinha que ser remanejada.

 

E quando remanejava e dava por encerrado - descobria um volume perdido. Que pertencia justamente – à prateleira que já tinha encerrado. Foram muitas idas e vindas. Sobe e desce. Desvira e vira.

 

Já mais calma resolveu – vai lá saber também por que - abrir os livros.

 

Viu que todos – ou quase todos - tinham datas. E local onde os comprara.

 

Alguns até com dia e hora. E a estação do ano. Até riu. Nem lembrava mais - assim fazia.

 

E assim fez por muito tempo. A cada livro comprado registrava. Os dados do dia da compra. Até o boletim meteorológico. Riu de verdade. Mas não deixou de achar muito boa a idéia. Congratulou a si mesma. Em um deles viu que tinha escrito. Primavera sem flores e com muita chuva. Viu o ano. Será que fora mesmo. Ou seria ela que estava se sentindo assim. Deveria ter anotado melhor. Em um outro estava lá. Dia de sol, final da tarde - a livraria estava vazia. Novamente não sabia se era a sensação dela com ela mesma.

 

De repente caiu um papel. De dentro de um outro volume desgarrado. Amareladinho. O papel. Meio amassadinho. Ou melhor, enrugadinho. O tempo não poupa nem os papeis, pensou.

 

Lembrou daquele poeta. Ele falava isso num poema. De um papel amarelado encontrado num livro. Mas que rasgara sem abrir e ler. Não queria mexer com o passado. Mais ou menos assim, pelo que recordava da poesia.

 

Fez diferente. Abriu. E leu.

 

Era um bilhetinho dela. Avisando que tinha adorado a temporada que tinha passado lá. Que fora muito bem acolhida. E que a adorava muito. Que se sentiu fazendo parte real da família. E que estava com saudades.

 

Quase chorou. Incrível. Ela agora estava casada com ele. E fazia realmente parte da família. E escreveu esse bilhetinho ainda tão criança.

 

Foi em meio a tudo isso que teve uma luz. E que luz. Tirou até a tal máscara. Melhor espirrar que sufocar. Quando a luz vem é preciso se estar exposta. Ficou até de pé.

 

Estantes. Uma real autobiografia. Ou uma prova autobiográfica. Os próprios livros. Estes que se compram e guardam em alguma prateleira. Os lidos e até os não lidos.  Porque são resultado de uma escolha. Denunciam a evolução. A formação do pensamento. De época em época. O crescimento emocional. Não importa o estilo. Importa esta composição.

 

Pelas datas relembrou lugares. Pessoas. Estados de espírito. Movimentos. Ideologias. Filosofias. Entendeu as que ficaram. Compreendeu as que se foram. Assimilou as que se construíram. Avaliou as que sucumbiram.

 

Olhou para os livros como para si mesma. Passou a mão de leve pelas capas. Leu com carinho seus registros. Foi assim organizando - com súbita tranquilidade - toda a estante.

 

Entendeu o próprio pensamento.

 

Ali. Sentada. Diante da tal estante da frente. E de frente para a estante. Ali viu sua vida. Suas buscas. Seus achados e perdidos. E deu um riso particular. Para esta sua idéia ao despertar. Do despertar.

 

Procedia.

 

 


Julho 01 2009

Lembrou daquele texto. Ele falava mais ou menos assim - a pena parou.

 

Como se no meio do texto a pena tivesse parado. Ali. Estancada. Sem nada a dizer. Muito menos a declarar. Fez-se paralisia. Congelou. Atos. Não sentimentos.

 

Os sentimentos estavam tão abalados que não se davam conta. Não podiam continuar. Atropelavam-se. E ao mesmo tempo paralisavam. Sensação estranha.

 

Parecia que os fragmentos do tempo se afastavam. Deixando pedacinhos soltos. Como mosaicos abandonados – decompondo sua forma. O que era para ser continuação – virou passado. E como passado foi reportado.

 

Tudo numa mesma declarada inversão. Onde tinha que ter não tinha. Onde tinha que estar – já não mais existia.

 

De repente tudo ficara sem cor. Sem lastro. O alcance tinha sido maior que pudera imaginar.

 

A notícia viera junto com uma lágrima. Ficou ali escutando. Dizem os entendidos - em situações limites - falta chão. Parece uma metáfora sem importância. Ou uma analogia. Ou apenas uma comparação banalizada. Mas se é verdadeira não se sabe. Porque ali parecia o contrário. Sobrava chão. Muito chão. E não se sabia que lugar pisar. O que faltava era ar.

 

Se sentiu sufocada. Presa em algum ponto do discurso dela. Ficou assim. Suspensa na palavra. Presa na angústia. Paralisada na dor.

 

E ela em frente. Contando. Contendo. Relatando. Expondo a sua dor. A sua falta. O seu desamparo. Mostrando no corpo o resto inútil que lhe ficara.

 

Lembrou o Francês. Se uma perda é muito grande – a perda seguinte é das palavras. Procede. Teve abraço. Teve choro. Mas não teve palavra. Pelo menos a palavra certa. Deve existir uma só que seja. Que se diga. E que acalme. Proteja. Explique. Console.

 

Mas isso já é pedir demais a uma palavra. Ela vem em auxílio - em auxílio. Nunca em função. Parece que a palavra não tem função. Tem regra. Tem sinônimo. Tem antônimo. Tem até acento. Mas não tem função. Descobriu isso na hora. Na hora de verbalizar. Por que verbalizou silêncio.

 

Fez um esforço enorme. Para mover os lábios. Começou pelas letras. Tentou formar a palavra. Construir uma frase. Assim, desta forma. Como quem engatinha. Pensando em andar. E perdida naquele excesso de chão.

 

Não conseguiu falar. Ou melhor, conseguiu falar. Não conseguiu dizer.

 

Dizer da enormidade da dor compartilhada. Da compreensão da dor individualizada. Da certeza de uma dor materializada. Que até – de tão forte - podia ser tocada. E que não faltava chão. Sobrava espaço. Tinha agora ali, diante delas - um lugar vazio.

 

Foi tudo isso que quis dizer. Letra por letra. Mas só disse silêncio.

 

E paralisou diante da dor. Da ausência.

 

Quando ela saiu não sabia o que fazer. Com o dia. E fez o que tentou fazer com a palavra. Fez minuto a minuto. Depois as meias horas. Para depois completar o ciclo das horas. Seguiu então o compasso das horas inteiras. Fez o dia - apenas - cronológico.

 

E levou consigo os dias que não virão. Junto com este dia encerrado.

 

Haverá sempre um chão sobrando. Uma presença faltando. Haverá a ligação. Pelo elo faltante.

 

Uma ligação pela ausência. Fazendo assim bascular a impossível presença. Mas ainda assim - presença. Ou ainda assim – ausência.

 

Quando uma ordem é invertida – toda uma nova equação tem que ser estabelecida. E todo um tempo novo precisa ser – existencialmente - acreditado.

 

Ficou - em meio a este passar de dia cronológico - pensando nas idéias do filósofo alemão. Ele garantia que só a dor é positiva. Devia saber o que falava. 

 


Blog de Crônicas - situações do cotidiano vistas pelo olhar crítico, mas relatadas com toda a emoção que o cotidiano - disfarçadamente - injeta em cada um de nós.
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