Já estava pronta para sair.
De repente notou uma luzinha vermelha. Piscando. Pela fresta da bolsa. Por certo um recadinho. Resolveu ler de uma vez.
Estava lá. Escrito. Hoje foi suspenso o atendimento. Teve um problema com os computadores. Uma falha técnica mais complicada. Outro com a luz. Não precisa vir. Será feito um re-agendamento parcializado.
Atendimento suspenso. Re-agendamento parcializado. Achou o máximo.
Comparou a uma figura de linguagem. Ou a uma obra literária.
Mas quase pulou. Primeiro de susto. Era a primeira vez na vida que fazia um pedido e acontecia. Literalmente. Inacreditável.
Acordara com sono. Como sempre. Daí pensou. Bem que hoje podia ser cancelado o atendimento. E eu poderia dormir mais um pouco. Mas imagina. Se me aconteceria uma maravilha desta. Nunca. Acelerou e foi cuidar de obedecer as ordens do relógio. Cruel objeto. Pensou entre os dentes. Mas prosseguiu.
Mal acabou de ler o recadinho - se auto-conferiu.
Checou – estava viva. Correu para um espelho. Deveria estar iluminada. Não estava. O espelho mostrou o habitual. Optou por reler o recadinho. Vai ver fora uma alucinação. Não foi. Lá estava.
Que belo recadinho. Que lindíssimo texto. Desdenhou dos poetas. Nenhum faria uma composição tão emocionante quanto aquela. Riu. Riu de novo.
Tudo bem. Pediu perdão aos poetas. Por precaução. Vai ver que os deuses que cuidem deles poderia se aborrecer. Não queria mais surpresas. Aquela estava já perfeita.
Pensou. Fosse a Idade Média e já sabia onde iria parar. Mas não era. Pelo menos a da cronologia da Humanidade. Idade Média só a dela. Particular. Riu dessa bobagem também.
Se primeiro quase pulou de susto – de segundo pulou de alegria.
Olhou para a bolsa com o material. Para os papéis. Para a roupa que vestia. Em especial para o relógio no braço. E se despediu. Deles. De todos estes – adereços.
Mas se o pedido foi atendido – a vontade vinculada foi descartada.
Que dormir que nada. O sono foi-se como mágica. Deveria ser isso. Era o Dia da Magia. Ela que não tinha conhecimento. Riu de si mesma de novo. Estava se sentindo já uma humorista. De primeira categoria.
Mas enfim – dormir seria desdenhar do pedido inicial. Jamais faria isso. Poderia ser visto como um menosprezo. Estava com muito zelo em relação aos deuses amigos. Mais uma vez riu.
Despiu-se da proposta inicial e vestiu-se da adquirida. Sim. Iria à praia. Desceria a serra. E iria ver o mar.
Perfeito. Idéia de gênio. Foi mais uma vez se olhar no espelho. Deveria estar iluminada mesmo. Riu para o refletido. Que devolveu à altura.
Quando se compreendeu – já estava lá.
Em pé na areia. Diante do seu tão amado mar. Pontinhos prateados aqui e ali brilhavam na água docemente salgada. Faziam quase um cortejo de pequenas luzes. Lindo.
Algumas mesinhas de cimento ficavam na areia. Com banquinhos em volta. Escolheu um deles e sentou. Para uma alegria tão grande - alguns rituais.
Ficou um tempo apenas olhando. Brincava com a chave do carro entre os dedos. Deixou que o sol escolhesse os pontos da pele que iria tocar.
Depois com muita calma foi em direção à água. Estava morna. Pequenas ondinhas deixavam a espuma branquinha na borda. Que sumiam com delicadeza.
Mergulhou. Pulou. Brincou. Jogou água para cima. Para baixo. Riu. Viva o Dia da Magia.
Lembrou o tempo em que seguia as definições do mestre austríaco. Mas desta vez se colocou mais à parte. Nada de passagem ao ato. Como o mestre definia atitudes intempestivas.
Fez o habitual brinde e – rindo - informou. Para o Universo. Que me perdoe o Mestre. Mas este foi Além do Princípio do Prazer. E muito além dos Atos Falhos. Sem Homem dos Lobos. Sem Totem ou Tabu. E principalmente sem Perturbações Psicogênicas da Visão.
Este foi um verdadeiro Ato de Passagem. Passagem feliz. Até o mar. Diante do mar. Num dia em que um erro da tecnologia cedeu espaço à realização plena de uma fantasia.
Foi a vez do impossível vencer o possível. E mergulhou – mais uma vez.
Voltou no começo da tarde - muito feliz.
Amanhã retomarei a tal agenda parcializada. Perfeito.