Blog de Lêda Rezende

Agosto 26 2009

 

A sala estava cheia. Cadeiras e poltronas ocupadas.

 

Não havia um só espaço para sentar. Ele chegou com ar tranquilo. Parecia sereno. Sabedor do que exatamente fazia ali. Olhou em volta. Confirmou.

 

Não tinha mesmo onde sentar – aceitou. Vestia-se elegante. Sóbrio. Os óculos de aro preto lhe davam mais idade que a pele e a postura. Rendia-se ao frio através de um cachecol. De pé encostou a um canto da parede. Abriu um livro.

 

Parecia que estava só. O seu mundo estava dentro do livro. Não fora dele. Como se estivesse em uma bolha. Uma redoma. Vai lá saber.

 

Nada o desconcentrava. Nem barulho. Nem o murmúrio das vozes de quem também esperava. Nem quando ela derrubou o envelope que segurava. Nada o desconcentrava. 

 

A expressão acompanhava o que lia. Parecia uma exposição de mímica facial. O corpo – imóvel. Os ombros encostados na parede. As mãos virando as páginas. E no rosto o reflexo do texto. Às vezes sério. Outras com cenho franzido. Outras vezes parecia que lera algo engraçado. Surgia uma meia covinha na face. Passava as páginas com suavidade. Devia ser alguém que realmente gostava de livros. Com muito cuidado o manuseava. Uma delicadeza de quem sabe como é sutil o lidar com as palavras.

 

O atendimento estava atrasado – ali ficou por muito tempo. Até me pareceu que chegara adiantado. Devia ser cuidadoso com o tempo. Como demonstrava ser com o livro.

 

Aliás - devia ser cuidadoso com tudo. Com os livros. Com a própria imagem.

 

Os cabelos um pouco grisalhos tinham um corte adequado ao rosto. Uma daquelas pessoas que, por ser discreto – acaba por chamar a atenção.

 

Conclui isso quando olhei em volta. Muitos olhavam para ele. Meio que ocupavam o tempo observando a elegância e discrição dele.

 

Assim estavam todos. A assim a sala de espera se comportava. Salvo um ou outro que levantava para um pouco mais de água – a maioria aguardava sua vez. Com calma e tolerância.

 

Uma mocinha escutava música de forma egoísta e batia os pés no chão. Uma possível denúncia do ritmo do que escutava. Um egoísmo com certa socialização. Digamos assim.  

 

A mocinha que derrubara o envelope o continha com força entre os dedos.

 

Duas moças sussurravam algo sobre amores e pudores.

 

Uma senhora fazia uma dança com duas agulhas entre os dedos. E uma mágica em forma de meia parecia surpreender a quem acompanhava os movimentos dela.

 

Foi ai que veio o que se poderia dizer - segundo ato. Se um Teatro fosse. Ou - um molto vivace. Se um andamento musical fosse.

 

Mas não foi. Não era.

 

A mocinha do som egoísta sentiu algum calor. Mesmo diante do frio precoce. Talvez causado pelo bater de pés. Ou pelo calor do ritmo que escutava. Isso não se soube. Nem foi perguntado.

 

Ela levantou. Foi até junto dele. Junto dele tinha uma janela. Abriu. Assim. Sem mais nem por que. Sem consultar. Sem avisar. Abriu.

 

Ele, concentrado – continuou a ler o tal livro. Talvez tenha erguido de leve a sobrancelha. Mas não ergueu sequer o olhar. Permaneceu de pé. Agora junto ao ventinho da janela. Mas com toda a elegância já definida desde a chegada.

 

Alguém gritou. Em alto e explícito som. Uma barata. Entrou voando pela janela. Está ali. No cachecol dele.

 

De repente tudo voava. Não só a infeliz invasora.

 

O livro voou longe. Despaginado. Quase fraturado. Aberto. Exposto. Desencapado. Uma tristeza.

 

O cachecol foi arrancado às pressas para fora do pescoço. No seu vôo sem escala prevista - se enfiou nas agulhas dançantes da mágica senhora. De onde saiu voando já mais acompanhado e foi se espatifar no chão enfiado em duas agulhas.  

 

E bem ao lado das mocinhas sussurrantes sobre amores e pudores. Que perderam os pudores – e talvez os amores – e saíram com pernas e gritos para fora de onde estavam contidas.

 

Entre gritos, vôos rasantes e acrobacias – vieram os seguranças.

 

Queriam saber onde. Quando. Quem. Esqueceram do por que. Atropelados, pelas duas mocinhas ex-sussurrantes, tentavam chegar até a senhora das agulhas.

 

Impossível.

 

O elegante e concentrado leitor agarrou um deles pelo braço e suplicou. Ao menos foi o que pareceu pelo tom de voz. Uma súplica. Dizia com voz trêmula. Matem. Matem.

 

Tem situações especificas que um simples - por que - faz falta. Tivessem perguntado o por que dos súbitos vôos e gritos – saberiam do que se travava.

Mas não foi preciso. A mocinha do som egoísta trazia entre os delicados dedinhos – uma mariposa.

 

Ela não tremia a mão porque segurava a mariposa. Acredito que a mariposa - de tão  assustada – tremia a mão dela. Da mocinha.  Disse – era uma mariposinha. Assim. No diminutivo.  

 

O segurança retirou a mão dele do braço exigido.

 

Todos se olharam. Ela olhou para todos. A mariposinha por certo – não quis olhar para ninguém. Saiu – tão logo pode - voando janela a fora.

 

Quase igual a ela – fez o leitor elegante. Quase. Pegou o livro despaginado. O cachecol desalinhado. E, pálido, saiu. Meio que voando – de tão apressado. Mas - pela porta.

 

Mas igual a ela – tremia. Só não se perguntou mais uma vez o por que. Se de temores. Ou se de pudores.

 

Escutou-se um riso vindo do cantinho da sala. Foi a vez da senhora das agulhas mágicas. Devia ter a resposta.

 


Agosto 23 2009

 

O dia começara quase como no estilo habitual. Mas enfim. Era mesmo o último dia dito útil da semana. Já era este um bom pensamento pelo despertar.

 

Como nada é mesmo perfeito - amanhecera um pouco enevoado.

 

Mas nada de importante. Os dias estavam assim. Amanheciam com uma temperatura mais delicada. Com o passar das horas o calor dizia presente em alto e bom grau. Confiante na repetição - arrumou-se adequadamente.

 

Uma roupa leve. Sapatilha. Nada de muita paranóia de frio. Ou de excessos.

 

Estava já há muitos anos na região. Sabia como se comportar. E sabia como a dita região se comportava.  Sentiu-se quase uma especialista em meteorologia. Até dispensou ler o boletim diário. Já sabia tudo.

 

Já na rua sentiu alguns pinguinhos delicados. Uma garoa banal - pensou. Não deu novamente importância. Apressou o passo e foi em direção aos caminhos dos trilhos.

 

Não esqueceu um risinho sorrateiro. Um certo olhar de superioridade. Em direção aos exagerados com casacos, botas e lenços. Embora já tentasse disfarçar um pouco de desconforto. Estava frio. Além do habitual da semana. Enfim. Devia ser porque ainda era cedo. Muito cedo. Novamente não deu importância.

 

Parecia já um dia de rebeldia.

 

No percurso – teve uma idéia.  Iria ao cinema no final do dia. Há tempos não fazia isso. Estava sempre voltando direto para casa. E acabava desanimada de sair outra vez. Desta vez iria retomar o ritmo antigo. E saudável.  

 

Sempre gostou disso. Ir ao cinema no último dia da semana. Era como se exorcizasse os dias de tanto trabalho. Finalizava com uma viagem ao mundo da sétima arte.

 

No começo desta rotina sentia falta de uma companhia. Depois se acostumou.

 

Lembrou um conselho da avó de uma amiga. Vemos e escutamos com os nossos próprios olhos e ouvidos, menina, com os nossos próprios olhos e ouvidos.

 

Perfeito. Assim entendeu. E lá ia. Sozinha. Sem queixas. Nem pequenos pudores. Escolhia o filme. Segundo seu gosto e expectativa. Assistia. E voltava para casa certa de que se dera realmente um presente.

 

Foi esta retomada que decidiu logo cedo. Parou antes de chegar ao destino. Comprou o jornal. Precisava escolher. Tinha uma sala de cinema que ela adorava. E ficava na Avenida preferida dela na cidade. Leu a programação. Perfeito. Até sorriu. Escolha feita.

 

Agora era só torcer para que o dia não fosse tão longo. Mas aprendera também a ter paciência. Até porque ter ou não ter – paciência - não é uma questão. Em relação ao passar do tempo – é sabido – nada muda.

 

Mas a chuva realmente chegara – e permanecia. Não diminuía. Não partia. Ficava.

 

O dia todo olhou pela janela. Mas concluiu. A Avenida do tal cinema era bem longe de onde estava. Devia ser chuva por zona. Isso também era habitual nesta cidade. Ela iria para outra no final do dia.

 

Continuou otimista. Mas – prudentemente - desconfiada.

 

Acabou o horário. Desceu. Já atravessou a rua sob chuva mais forte. Garoa parecia coisa do passado. O presente era bem mais contundente. Cabelos e roupa - inadequada – molhados.  A sapatilha estava de fazer inveja. A algum habitante do deserto. Só se fosse a algum deles. Porque os pés estavam encharcadamente congelando.

 

O frio aumentara. Muito. Muito.

 

Era um mais tremer que não dava conta. Mas se esforçava. Isso era inegável. Se esforçava para ser discreta. Nada de ser olhada pelos outros no final do dia – do jeito que olhara para os outros no começo do dia.

 

Vingancinhas têm limites. E não aceitaria provocação. Do olhar de quem quer que fosse.

 

Desistiu da tal sétima arte. Entrou em casa. Gelada de frio. A roupa molhada. Os cabelos molhados. Pela bolsa os respingos marcavam sua entrada da sala ao quarto.

 

De repente o interfone tocou. Era o porteiro. Alertava -  uma correspondência sob a porta da cozinha. Foi verificar. O selo dizia algo sobre urgente e importante. E confidencial. Algo por aí. Leu no envelope a palavra Justiça. Quase riu. Era a última palavra que pensou em ler naquela altura dos acontecimentos.

 

Abriu. Era uma intimação. Para ser testemunha. Numa ação trabalhista.

 

Agora sim. Falou por entre os dentes. Faltava mais nada. Mas tentou manter a calma. Ainda gostaria de ver os netos nascerem.

 

Deixou a finada sapatilha de lado. Teve o cuidado de guardar o envelope da tal intimação. Trocou os pingos frios por pingos quentes. Desconsiderou até a salvação do Planeta. Aqueceu-se por um tempo a mais no chuveiro.

 

Já relaxada - colocou uma ópera. Achou a escolha procedente. Apagou as luzes. Fez a viagem em volta de sopranos e tenores. Numa arena. Nada mal – pensou.

 

Estava – de qualquer jeito e sob qualquer condição – deflagrado o final de semana. Que venha, então.

 

Quando ele chegasse e ela contasse – coitado dele se risse.

 

Recostada no sofá – abraçada num edredom - riu sozinha. 

 


Agosto 19 2009

 

Ela viu a porta aberta e entrou para um cumprimento.

 

Sentou com suavidade. Puxou a cadeira para mais perto da mesa. Muito polida. Estava bem maquiada. Batom discreto. Os cabelos longos e com cachos soltos emolduravam a face. Tinha aneizinhos nos dedos. Uma roupa em tons claros adequada para a ocasião e estação. Assim. Toda uma lógica percorria gestos e atitudes.

 

Falava com voz serena acompanhada de um riso contido.

 

Na hora pensei esta palavra. Contida. Não dei o destaque necessário. A esta observação. Errei. Sempre que algo der um sinal de alerta – deve-se estar atenta ao sinal de alerta. Este é um princípio básico. Do Manual da Socialização. Ou da Sobrevivência. Me chamou a atenção. Mas fiquei escutando o que dizia. Ela falou. Com todo aquele jeitinho dócil. Olhava também com certa docilidade. Certa docilidade. Outra observação – notei e desconsiderei.

 

Como dizia sempre a minha avó. Fica atenta ao erguer espontâneo da própria sobrancelha, menina, fica atenta ao erguer espontâneo da própria sobrancelha.

 

Ela estava mais uma vez certa. Dava até para comparar com o mestre austríaco. Sobrancelha é o melhor analista de uma situação. De uma atuação. Como se lesse sempre primeiro que os olhos. Ou escutasse muito mais que os ouvidos. Deve ter uma ligação direta especial com o cérebro. Como sentinela. Ergue-se como sinal de alerta máxima. E nem sempre é valorizada. Acaba-se por desconsiderar esta vigilante proteção.

 

E assim foi. Lembro que as minhas sobrancelhas se ergueram uma ou duas vezes. Mas fiquei - diante da docilidade - com ingenuidade. Mais ou menos por aí.

 

Fez um gesto sobre a mesa. Arrumou com toda uma sequência os papéis que estavam em desalinho. Acariciou os papéis na ordem que colocou.

 

Ajustou mais uma vez a cadeira em direção a mesa. Falou algo sobre gostar muito do que fazia. E sobre ser uma pessoa com uma dose alta de paciência e metodologia. Até usou esta palavra. Metodologia. O serviço de casa era cansativo. Mas tinha tanta metodologia que acabava ficando mais fácil.

 

O marido a questionava. Achava que nem tudo fazia bem. Achava que tinha culpa por alguns desacertos. Em especial da saúde. Por um tempo essas observações a incomodaram. Atualmente – não. Sabia que fazia o melhor possível. E garantia que ninguém faria melhor do que ela.

 

Tinha uma mania de limpeza quase obsessiva. Mas preferia assim que lidar com poeiras e sujeiras num ambiente de convivência familiar.

 

A cada frase encerrada – ou a cada ponto de continuação surgia um sorriso. Quase como um hífen. Ligando palavras e amenos trejeitos faciais.

 

Interrompeu um pouco o que falava. Pediu com a mesma voz dócil. Gostaria de um copo com água. Estava frio. Mas sentia sede.

 

Recebeu o copo. Colocou sobre a mesa. Num movimento casual para ajeitar a bolsa sobre o colo – derrubou o copo.

 

Ai sim. Foi a vez que fiz o tal aceno positivo em memória da minha avó.

 

Era uma outra pessoa diante de mim. O copo caiu. Não quebrou. A água se espalhou sob a mesa.

 

Ela ficou vermelha. O cabelo parecia que tinha até encolhido. Ou aumentado o número de cachos. A voz parecia ter dado um adeus eterno à docilidade. Nada de voz orquestradinha. Agora era voz tempestuosa.

 

Gritou. Eu odeio isso. Odeio o que faço. Odeio a ele. Odeio ter que cuidar dos outros. Odeio cuidar da casa. Odeio essa sujeira.  

 

Desta vez acho que até meus cílios se fizeram companheiros das sobrancelhas. Mas já era tarde.

 

Tentei acalmar. Acidentes acontecem.

 

Olhou séria para mim. Olhava para a água no chão e se desculpava. E esbravejava contra tudo e contra todos. Nem escutava o que lhe era dito.

 

No final de um tempo – o tempo superou a si mesmo. Pegou os objetos que estavam já numa cadeira ao lado. Perguntou pelas horas. Ajeitou os cabelos. E saiu.

 

Olhei para o chão molhado. Para os papéis alinhados na mesa. Para a porta.

 

Precisei de um tempo para que as minhas sobrancelhas e cílios voltassem ao local de nascimento. Pareciam estar já penduradinhos no teto.

 

A mocinha da limpeza entrou. Apagou o registro. O dia prosseguiu. Embora diferente do jeito que começou.

 

Recuperada - relembrei meu querido amigo indiano. É a água que cuida da limpeza. Seja da forma que for.

 

Consegui até rir.

 


Agosto 13 2009

 

Ele escolheu o lugar. Eles concordaram. Nós aceitamos.

 

Estava tudo perfeito. Nada fora do estilo habitual. Marcaram a hora de nos pegar. Com eles dois iríamos encontrar já no lugar combinado.

 

Começamos a nos arrumar. Tudo com muita calma. Ainda fazia parte dos festejos. Mas agora imitávamos – em parte - o título do livro. Seis. Não éramos. Somos. E lá organizamos os seis o restante das risadas e congratulações.

 

De repente uma idéia.

 

As idéias são assim. Nunca sabemos se estão contra ou a favor. Ele sugeriu. Uma taça de vinho antes de chegarem. Depois descemos. Dá tempo. Aliás – tempo é o que mais temos hoje.

 

Concordei. Procedia.

 

Já arrumados – iniciamos nosso festejo particular.

 

Sentamos diante da mesinha. Organizamos taças e guardanapinhos. Tudo com muita delicadeza. Em tempos de comemoração toda a gentileza é pouca. Ele, cuidadoso, foi se adiantando – eu lhe sirvo.

 

Abriu a portinha de vidro. Olhou. Escolheu. Pegou a garrafa que descansava na prateleira.

 

Solidária a tal garrafa. Ou a prateleira. Não quis vir sozinha. Veio em conjunto com mais três. E foram abruptamente ao chão. Assim. Sem mais nem por que. Sem maiores explicações. Sem menores detalhes. Sem grandes considerações.

 

Caíram. Unidas. Deviam ser da mesma videira. Vai ver vieram na mesma importação. Nascidas e criadas juntas. Um primor de união. Pensei num daqueles milésimos de segundo. Que surgem diante destas pequenas tragédias. Concessões do bom humor que ajudam a manter a sanidade.

 

Por um segundo antes o cenário parecia em ordem. O piso branco. Os tapetes – azul e branco. As cadeiras com a madeira envernizada bege.  Os sapatos com tom e brilhos corretos. A saia longa colorida dava um toque informal. A calça de um jeans acinzentado já avisava da chegada do inverno. Assim. Tudo sob controle.

 

Por um segundo depois – o cenário já se re-organizava de forma espontânea. Pelo piso branco escorria apressado e caudaloso o líquido vermelho. Os pedaços de vidro sugeriam um mosaico sem limites sob o brilho da luz do teto. Os tapetes afogados pareciam ter engordado de repente. E lentamente a cor deles ia mudando. Muito mais lenta e no inverso da nossa. Nós rapidamente de corados passamos a brancos. Esverdeados até diria.

 

Os sapatos. Estes sim. Se adequaram rapidamente ao ambiente. Vermelhos e com lasquinhas de vidro. Pareciam os sapatos mágicos daquele filme clássico-preferido dos irmãos do Norte. Só não tínhamos as pedras amarelas para seguir. A saia – mais colorida que antes - pingava o vermelho com uma delicadeza especial. A calça – já distante do tal jeans acinzentado - não mais anunciava o inverno. Homenageava uma arena. O touro já tinha vindo. E - certamente - vencido.

 

Não mais havia espaço sem cor. Ou vazio. Exceto dentro da portinha de vidro. Lá sim. Tudo continuava com a temperatura mantida. Nos espaços projetados. Com a calma da frieza. Ou com a frieza da calma. Aquela altura não dava mais para ser teórico.

 

Entre pulinhos para não aumentar a composição do tal mosaico e corridas aos paninhos para diminuírem a tal arena – o riso se fez.

 

Impossível nos olhar e não rir. Uma pergunta não calava. Falamos mesmo o que a respeito da sobra do tempo. Mais risos. Panos jogados às pressas.

 

Roupas trocadas como se num desfile de modas – tamanha a ligeireza dos gestos. Sapatos retirados com cuidado. Telefone tocando. Avisos de – já estamos aqui. Podem descer.

 

E nós ali. Entre os verbos. Poder. Querer. Dever. Descer.

 

Escolhemos o verbo - telefonar. Avisamos a ela. A ela. Quando chegar amanhã pela manhã – cuidado. Quatro garrafas de vinho se quebraram. No chão. Acho que escutei um possível o que. Com alguns decibéis mais sofisticados. Não sei bem.

 

Desliguei.

 

Talvez esta tenha sido uma frase da minha bisavó. Já não posso garantir. Se não tiver a solução – apenas feche a porta. Sugestão obedecida – ato praticado.

 

Já no carro - vi um brilho na meia dele. Um caquinho de vidro a enfeitava. Retirei com delicadeza.

 

Mas não contamos a eles.

 


Junho 25 2009

 

A semana fora toda complicada. Aguardava o resultado. Não conseguia se concentrar.

 

E o que mais queria era se concentrar. Para esquecer que aguardava o resultado. Mas não havia jeito. Nem bem dava uma pequena tarefa por encerrada e lá vinha o pensamento. Melhor dizendo – uma cachoeira de pensamentos. Lembrou até do nome daquele filme. Sim. Uma torrente.

Mil teorias. Mil planos. Mil contradições. Não faltou o inevitável por que eu.

 

Entre raiva e condescendência. De si. Dos outros. Lembrou do russo. Mas não cometera crime algum. Mas também sabia. Crime nem sempre tem objeto e objetivo explícito. Em geral é implícito mesmo. E mesmo assim é crime. Se irritou com o russo.

 

Nunca imaginara. Que uma resposta provocasse tanta aflição. Aliás - não a resposta. A falta dela. Estava difícil conviver com a falta dela. Da resposta.

 

Queria comiseração.

 

Nem bem formulou este pensamento e já o retirou da lista. Nada mais triste que um olhar de comiseração. Receber esse olhar. Ler no outro a sua situação. Esse olhar só é maravilhoso quando não se precisa dele. Ai sim. É perfeito. Dá até para inclinar a cabeça. Uma quedinha para afagos. Fazer ar de mais comiseração.

 

Com motivo, não. É diferente. E divergente. Fica-se ainda mais destituída. Mais desorientada. Empobrecida de valor próprio. Doeria muito mais. Não brincaria com isso. Até se sentiu desanimada.

 

Ainda tinha uma outra questão. Quem iria buscar. O resultado. Ela sozinha. Ou solicitaria companhia. Mas quem escolheria. Ele ficaria muito tenso. E nem contara a ele. Como poderia falar assim. Vamos lá. Vamos juntos. Ele nada sabia. Não seria saudável. Detestou esta palavra. Ela era amiga, mas muito delicada. Ela também era muito ansiosa. E ela própria não gostava de se expor. Entendia que exposição só quando se está sob controle.  Caso contrário dá mesmo é em muito caso contrário.  

 

Ótimo. Grande idéia. Mandaria um moto boy. Do moto boy até riu.

 

Imaginou ele chegando. Trazendo o envelope. Ela já até derrubando o coitado. O capacete caindo. A moto despencada no chão. Ela arrancando o envelope das mãos dele. Ela abrindo. Se agarrando no pescoço dele.

 

Parava ai o pensamento. Se agarrando por que. Por que dera negativo. Ou porque dera positivo. E lá voltava ao pensamento número um.

 

Pior é não poder mandar acelerar o resultado. Quer dizer. Poder - podia.

 

Poderia se lamentar. Falar do excesso de angústia. Esbravejar. Falar alto. Chorar baixinho. Fazer uma verdadeira cena convincente. Mas onde se escondera a coragem. Ao menos isso aprendera. Coragem era algo evanescente. Aparecia e sumia numa rapidez além das medidas. Nem bem se sentia a presença, e ela já ia se ausentando.

 

Continuou trabalhando. Achava incrível ninguém perceber como ela estava agindo. Mudara alguns hábitos. Era um tal de água e cafezinho que pensou em pedir aumento – para pagar a conta da cantina. Só a mocinha da cantina deveria estar feliz. Nunca vendera tanto. Em tão pouco tempo. Enfim alguém estava feliz. Viva a mocinha da cantina.

 

Quase engasgou. Com o cafezinho. Notou que estava bebendo um gole de cada alternado. Café quente e água gelada. Viu isso pelo olhar da mocinha. Que discreta virou de lado. Foi mudar o canal da televisão. Procede.

 

O celular tocou. Escorregou da mão dela e caiu na latinha do lixo.

 

A colega olhou para ela e riu. Solta. Leve. Olhou o riso dela e pensou.

 

Suspendeu o pensamento. Melhor deixar assim. Sem pensamentos. Achou o celular entre os papeis. Ainda tocava.

 

Atendeu. Era de lá.

 

Pode vir buscar o resultado do exame, senhora. Claro, Já está pronto. Ele achou que quanto mais rápido melhor. Não, senhora. Não abro exames. Desculpe. Também não perguntei. A senhora virá buscar hoje ainda. Certo. Estarei aqui sim.

 

Vou sozinha. Pronto.

 

Decidiu pelo elevador. Era só uma escada. Mas achou que o elevador seria melhor. Teria companhia. Escada é solitária. Cada um sobe e desce e nem se olha. Só se afasta. Num elevador ninguém se afasta e se olha.

 

Achou que estava grave. Deveria já estar disseminado. E já no cérebro. Ninguém pensa tanta bobagem - tão rápido. Sorriu para a mocinha do elevador. Sorriu para todos no elevador.

 

Desceu. Entrou na sala. Disse o nome. Foram pegar o exame. Recebeu. Agradeceu.

 

Pelo jeito que falou até achou que falara em outro idioma. Um dialeto talvez. Nem ela mesma entendera o que dissera à mocinha. Sem importância. Ela lhe dera as costas. Atendia já outra pessoa.

 

Não abriu. Saiu. Optou pela escada. Não queria que ninguém a olhasse. E queria que se afastassem.

 

Era um momento daqueles de extrema solidão.

 

Abriu o resultado. No último degrau da escada. Já perto da saída. Estava escrito. Negativo. Negativo. Negativo.

 

Subiu a escada de volta. Desceu pelo elevador.

Queria agora que todos a olhassem. E não se afastassem.

 

Nunca mais se descuidaria por tanto tempo. Fez as pazes com o russo.

 

Nunca mais. Falou isso para a mocinha do elevador. Que a olhou sem nada entender. Mas sorriu.

 

 


Junho 19 2009

Morara toda a vida lá. Numa cidadezinha onde a terra, o sol, a lua, a pouca chuva - eram as fronteiras e as sem-fronteiras conhecidas.

 

Apaixonara-se. Talvez. Mas ele disse que iam morar juntos. Que ia cuidar dela. Acreditou. Talvez.

 

Ficou grávida. Nem chegaram a morar juntos. Nem ele cuidou dela. Foi não-sabe-para-onde. Um lugar por certo bem distante. Não soube mais dele.

 

Viveu de talvez. Foi amparada pelos parentes. Desamparada pelos mesmos parentes. Acolhida e cobrada. Não tem rima, mas tem realidade. Talvez.

 

O tempo passou. Numa conta certa. A barriga cresceu. Sentiu uma dor.

 

Talvez tivesse chegado a hora. Assim falaram para ela. Foi para um pequeno hospital. Nasceu. Menino. Bem pequenino. Deu o nome do santo do dia. Viu num calendário do hospital. Decidiu. Seria este o nome dele. Foi o primeiro nome que viu depois que ele nasceu. O santo ajudaria. Confiou nos sinais.

 

Notou que estavam todos um pouco sérios. Começaram uma explicação. Curta. Mas prolongada. Para quem não sabia muito bem o que explicar.

 

Assim pensou.

 

Segundo entendeu do médico ele tinha um probleminha. Mas quem sabe teria alguma solução. Talvez. Precisaria de muitos exames. Na cidadezinha não havia possibilidade.

 

Assim começou a tecer a poesia dela.

 

Com a ajuda de amigos e vizinhos conseguiu uma consulta numa cidade próxima. Talvez melhor equipada. Nada concluíram. Nem diagnóstico. Nem prognóstico.

 

E de versinho em versinho chegou até a cidade grande. Enorme. Uma viagem longa. Difícil. Mas enfrentou. Todo o tempo. Noite e dia sem dormir. Cuidava do filho no espaço minúsculo do assento onde estava.

 

Quando chegou nem sabia bem onde - e já estava no hospital. Com o filho. Se sentiu igual a ele. Sem prognóstico. Mas aguardou.

 

Estava muito magra. Tinha os músculos dos braços bem marcados. Era bem jovem ainda. Mas as marcas da pele desconsideravam a cronologia. Ou o contrário. As mãos rudes e ásperas pareciam leves. Tocava os cabelos do filho com muita suavidade.

 

Sentada com ele no colo escutou o que buscara. Uma certeza. Qualquer uma serviria. Não poderia era administrar os não-sei. Não suportaria mais talvez. O saber lhe dava nomes. Diminuía a angústia. Permitia o medo.

 

Medo é mais fácil de assimilar. Porque já se sabe do que é. Na angústia fica-se balançando numa dor que não tem vínculo. Nem com o corpo, nem com a alma.

 

Estava cansada de talvez. 

 

Definido. A doença era sem resgate. Haveria uma aparente evolução física normal - tempo de calmaria. Assim tentava entender. Depois uma queda na evolução natural - até a fase terminal. Não seria muito curta. Mas também não seria muito longa. Passaria por vários estágios. Seriam necessárias algumas intervenções. Algumas mais complicadas. Outras mais simples. Mas faria muitas delas.

 

Foi-lhe dito assim. Com delicadeza. Mas com a sinceridade necessária.

 

Escutou. Compreendeu.

 

Abraçou o filho. Sorriu para ele. Disse com um sotaque forte. Vamos tocando a vida. Já chegamos até aqui. Parecia impossível. E já chegamos. Agora vamos continuar. Consegui um lugar para nós dois morarmos. E um trabalho que posso também ficar com ele. Vou mudar. Não volto mais para lá. Aqui ele terá melhores cuidados. De onde vim - vai ter nunca o que tem aqui. 

 

Olhou em volta. Para cima. Para as paredes. Deu a impressão de que olhava toda a cidade. Daquela cadeirinha onde estava sentada – visualizava a geografia. Um vôo além do marcado. Dimensionava o espaço numa forma de reduzi-lo. Do tempo já entendera. E não queria mais discussão sobre quanto. Nem quando. Escolhera apenas o onde. Isso era o que entenderia dali em diante. Do onde.

 

Falou com a métrica certa. Uma estrofe perfeita. Onde as palavras faziam marcações corretas.

 

Não havia queixa. Não destacava lamentos. Muito menos referência a sorte. Ou à falta dela.

 

Havia emoção. Solidão. Intenção. Ela era toda a atemporalidade.

 

Quando levantou sorriu com ar de criança. Talvez o único instante em que a idade cronológica se igualou à aparente. Pareceu tão frágil. Tão assustada.

 

Mas se recompôs rápido. No instante seguinte já carregava o filho. A esperança. As certezas. E a força. Visível nas veias dilatadas do braço fino, mas musculoso. Na sacola que segurava tinha o desenho de uma flor.

 

Tinha dor. Mas tinha flor. Tinha rima. Tinha certeza. Tinha valor. Tinha clareza. Tinha pranto. Tinha santo. Ele tinha partido. Ele tinha nascido.

 

 

Somando tudo, tinha tanto. 

 

 



Maio 15 2009

Ficou parada. A boca aberta. Os olhos escancarados. Fria. Gelada. Paralisada. Parecia que só havia um movimento. O coração batia. E batia descompassado. Só o som do coração se escutava. Do coração dela.  Acho que não. Não foi só o dela. Todos deram sua contribuição. Com as batidas aceleradas. Em meio a um silêncio rigoroso. Quase silêncio de inverno.

 

Como aquilo pode acontecer. Em meio aos pulinhos e risinhos. Assim. De repente.O ambiente ficou como que congelado. Como quando se congela uma imagem. Uma foto congelada

 

Ele tinha decidido pela compra. Assim o fez. Escolheu o modelo desejado. Não poupou. Era uma decisão sem discussão. Objetiva. Sem figuras de Linguagem. Sem retórica convincente. Sem dialética. Assim. Crua e objetiva. Vou comprar. Comprou. Tela ampla. Todos os maravilhosos recursos da atual tecnologia. Backlight. Objeto de dar tanto orgulho quanto prazer. Por possuir.

 

Ficou linda. Num canto da sala. Com todos os equipamentos em espaços corretos. Conforto no ponto certo. Até uma mini adega completava o conjunto. Tudo calculado para dar toda a possibilidade de conforto.

 

Complementou. Veio o novo brinquedo. Daqueles que são pura festa com vantagens. Podia ser jogado com movimentos físicos além de dedinhos em controle. Maravilha. Tinha para todo gosto. Corrida. Esqui. Guerra. Travessia. Fitness. Boliche.

 

Alta sofisticação na mesma proporção que a alta satisfação. Assim ele ficou. Assim ele sentiu. Satisfeito. Quando viu tudo em funcionamento. Sorriu. Feliz. Um espaço lúdico. Mesmo que para gente já bem grande.

 

Decidiram por uma, também lúdica, inauguração. Convidaram amigos mais próximos. Queridos. Aceitaram. Comidinhas. Bebidinhas. Competição e risos. Na melhor forma de convivência. Concorrência esportiva. Sem angústias. Sem riscos. Com lealdade. Diversão pela diversão. Ela sempre muito delicada. Recebia os amigos com todos os cuidados. Para que todos se sentissem bem vindos. Acolhidos.

 

Depois de algumas competições escolheram continuar com um boliche.

 

Sugestão aceita de imediato. Primeiro eles. Muitos risos. Poucos acertos.

 

Chegou então na vez dela. Sempre fora muito boa em boliche. Assim pelo menos destacou. Nem bem a sugestão foi aceita. E já foi logo dizendo. De mim agora ninguém ganha. Disse rindo. Ficou de pé.

 

Já prática - dispensou determinados cuidados. Não prendeu o controle no pulso. Conforme indicado. Avisado. Até pressionado. Dispensou. Segurou o controle. Fez o gesto. Foi logo dizendo. Observem a pontuação. Assim. Em alto e confiante som. Orgulhosa das habilidades. E um risinho associado.

 

Ergueu a mão. Fez o gesto correto. Quando apertou o botãozinho. Não apertou.Não tinha mais botãozinho. O controle voou. Voou decidido. Qual mesmo uma bola de boliche desinformada. E lá se foi direto. Num strike, digamos, incorreto. Aquele som fino. Plasmático. Nem todo violino daria conta.

 

Partiu. Quebrou. A tela.

 

Parada. Ela ficou ali. De pé. A mão ainda erguida. Vazia. O escuro diante dela. E o silêncio. Salvo uma ou outra inspiração mais forte. Com um sonzinho tímido gutural acoplado.

 

Olhou para ele. Estava sentado atrás dela. Pálido. Os amigos. Pálidos.

 

Parecia até uma doença contagiosa súbita. Nem risos nem cores. Apenas o negro e a palidez.

 

Ele acalmou. Consolou. Acidentes acontecem. Tudo bem que falou gago. E nunca fora gago. Mas devia estar fazendo parte da tal doença súbita.

 

Os amigos ainda ficaram um pouco mais. Comentando. Repetindo. Solidarizando. Quando se despediram, ela os abraçou. Agradeceu, até sorriu.

 

Nem bem fechou a porta - chorou. Chorou. Chorou. Chorou a noite toda.

 

Discutiu metafísica. Recalculou até o horário de verão. Nada. Nada resolveu. Concluiu. Realidade é assim. Imutável.

 

Nem todas. Ainda bem. Algumas podem ser recicladas. Digamos assim. A solução se fez presente.

 

Ele curou a gagueira. Ambos curaram a palidez. Os amigos voltaram. A festa continuou de onde tinha parado. Ela não tira mais o prendedor do pulso. Como bracelete.

 

Mas sem strike.   

 


Março 31 2009

Parecia um acesso súbito de confusão mental. Daqueles que se desconhece quase o próprio nome. Ou onde se mora. Ou o que realmente se faz. Mas me contive. Contei até nos dedos. Não para fazer contas. Mas para confirmar que tinha dedos. Depois abri minha bolsa e conferi. Sim. Eu mesma. Dados de residência conferem com o referenciado. Endereço de trabalho idem.

 

Um projeto. Para que se aprenda. Que se declare saudável. Com toda a idéia de renovação. E atenção. Ao menos a idéia. A utilização real sempre é incógnita.

 

Surgiu um atalho.  Sob a forma de um convite. Necessário um remanejamento. Não de função. Não de métodos. Mas de área. Uma outra área. Com maior abrangência e necessidade. Disponibilizam-se vagas. Para voluntários.

 

Lembrei daquele filme. O professor sugeria que se subisse na mesa. Quando se considerasse o visto já reconhecido. Para que se abrisse um novo ângulo. Concordei. É uma forma de sempre rever o mundo. E ter a certeza. De que ele não está pousado nas costas de um elefante. Ultimamente estou mais atenta a dúvidas e certezas. Ou a talvez.

 

No caminho a paisagem foi mudando. A urbanidade se desfazia de forma natural. De prédios a casas. De pontes a córregos. De jardins a árvores. De parque a mata. De motordicas  ao retirante. Uma passagem.  De impressionismo a natureza morta. Às vezes na literalidade. Outras no ritmo da poesia bucólica. Gradual. Mas não muito lenta. Nada por aqui é lento.

 

Quase nada. Ou muito pouco. Deixa pra lá. Vai ver que tudo é lento. Até aí tudo bem. Não tem lugar no mundo que não passe por esta transição. De paragens. Nem sei se o termo existe. Mas me parece bem adequado. Um exagero ali. Outro reduto acolá. Tudo bem. Paisagem e Vida se confundem. Sempre.  

 

Foi nesse pensar filosófico que precisei contar os dedos. Eu que já estava orgulhosa de mim mesma. Não tomava mais susto. Tive uma recaída. Uma baita recaída. Afinal são muitos anos de residência fixa. Neste pedaço de metrópole. Citada sempre pelas dimensões e avanços. Pela sofisticação. Exagero até nos problemas. Mas nunca a este extremo. Este foi surpresa.

 

O local estava fechado. Aguardando o toque da campainha.  Aguardei. Encostada a um portão lateral. Parada em frente a este tal portão. Bem ali. Diante de tanta abrangência sem necessidade que senti. A tal confusão mental.

 

Ao meu lado. Meu. O portão se abriu. O que eu aguardava encostadinha. Que a campainha do outro fosse escutada. O do lado. Eu tão calma. Com minhas teorias de paragens. Quando de repente abre este portão. Acoplado a um muro alto. E saem de lá uns quarenta. Não. Acho que uns sessenta. Vai lá. Talvez uns cem. Tudo bem. Uns vinte. Bodes. Cabras. Com guizo.

 

Passeando e sonorizando o passeio. Como um dia no parque. Não tive jeito. Tentei gritar. Duas coisas podem ter acontecido. Porque ninguém me notou. Ou a voz não saiu. Ou os guizos abafaram a voz. Sem terceira opção. Mas não parou aí. Olhei para o que seria um morrinho. Por trás de uma casa vizinha. E lá estava tranqüila. Feliz. Recebendo a brisa. Gozando do simples prazer da existência. Uma vaca. De frente para dois cavalos. Assim. Sem mais nem menos. Com toda a naturalidade. Aliás, um resumo completo de naturalidade.

 

Pensei em nunca mais comer camarão abafadinho. Devia ser isso. O almoço de ontem. De tão divino causou alucinações. Ou desistir de replicar questões de pontos. Ou fazer reza Benta. Vai ver foi castigo. Decidi conferir se era eu mesma. Que estava ali. Que estava em cima da mesa. Quero dizer, do carro. Do porta-malas. Em cima do porta-malas do carro. Que por sorte não sei de quem, não consegui abrir. E que tremia. O carro. Depois concordei. Eu tremia. Sacudia. Entre os calmos bodes. E cabras. E guizos. E o olhar plácido, ruminante. Da vaca. Sim. Tudo confirmava. Era eu mesma. E, importante - acordada.

 

Enfim superado o primeiro choque. O segundo. E o terceiro. Comemorei. O portão esperado abriu. Uma mocinha apareceu. Eu em cima do porta-malas do carro. Nada falei. Ela só me olhou. Me pareceu tranquila em relação ao movimento, digamos assim. Talvez intranquila em relação a mim. Me identifiquei. Entrei. Todos me aguardavam para dar continuidade. Ao proposto.

 

Viva a urbanidade. A mesa. A visão ampla. O local abrangente. Agora sei. O mundo não está apoiado nas costas de um elefante. Ainda bem. Era só o que me faltava. Um elefante.

 

Por segurança contei os dedos de novo.

 

publicado por Lêda Rezende às 02:12

Março 22 2009

Durante muito tempo eu recriminava o Universo por me ter colocado vivente, digamos assim, ou existente – para dar um certo toque filosófico - no século XX. Sim. Vivia repetindo. Queria ter nascido na Idade Média. Época dos galanteios. Dos castelos. Das muitas salas. Do espaço. Dos cavaleiros. Das tapeçarias. Das roupas femininas cheias de mil-saias. Das festas. Do romantismo exagerado.


Quanta bobagem. Qual nada. Idade Média tem muitas faltas. Falta principalmente a comunicação. Ou melhor, a rapidez na comunicação. Anos para uma carta atingir seu destino. Aliás, outros tantos para se escrever uma carta. Agora lembrei daquele filme. Em que ele escrevia a carta sobre as costas nuas de uma mulher. Para outra mulher. Tudo bem. A Idade não era Média. Nem as mulheres. Nem o escritor. Nem a idéia. Enfim. Isso é o de menos. Menos mediano. Ri. Ainda bem que agora existe outro tipo de mesinha. Com tanta rapidez atualmente iria faltar costas de mulher.  Isso sem falar na quantidade. De escritos.


Por isso também agora mudei de idéia. Nada de queixas ao Universo. À ordem de chegada.  Mudei radicalmente. Viva o século XXI. Nasci até adiantada. Vai ver que o XXII será ainda mais dirigida. A comunicação. Vai ver na base da transmigração. Metafísica palpável. Sabe-se lá. O futuro sempre comporta mais fantasia que a nossa vã realidade pode suportar.


Mas o século XXI já está bem animado.  Acho que num prazo mínimo de quinze dias me inclui. Numa família. Leram. Recomendaram. Comentaram. Me fizeram chorar. Me fizeram rir. Vale mesmo uma exclamação para cada um!!  Até porque irmão sempre tem que ter tudo igual. Desde pequenino. Ri. Só não sei se eles vão rir também.

Agora me sinto incluída.  Rapidamente.


Imagina na Idade Média. Até os irmãos serem localizados. Não devia ser fácil a numeração dos castelos. Vencer poços com jacarés. Sem falar na saúde dos cavalos. E dos seus cavaleiros. Vencer as doenças. Correr por tantas estradas. Atalhos. Cruzar rios. Tudo isso segurando os pontos de exclamação. Vai ver por isso havia tanta luta na Idade Média. As lanças atiradas de longe. As espadas arrancadas de pedra. As brumas. O cálice perdido. As maçãs flechadas em cabeça de filho. As florestas com os ardis. Tira-se de quem tem mais. Para se dar a quem tem menos. Ou o contrário. Vai lá saber. Cada um legislando os dotes. Muita confusão.


Quanto tempo duraria a entrega das exclamações. Quando chegassem ao destino já seriam interrogações. Ninguém mais se lembraria do que se tratava. Pior ainda. Os destinatários poderiam ter viajado. Mudado de castelo. E virariam reticências. E como reticências ficariam perdidas. Até que algum dia alguém desse a elas um ponto final. Sem nunca terem atingido seu objetivo. Com muita sorte virariam talvez um hífen desses, colocados de qualquer jeito para que figurassem em algum cartório. A serem estudados no século XXI. Numa tese francesa sobre O Desaparecimento das Exclamações na Idade Média.


Sempre ficaria em cada vírgula, uma dúvida. Desta agora gostei. Daria até uma frase do dia. Embora sempre justifique um ponto de seguimento. As frases do dia. Para que sigam mais frases no dia seguinte.


E nisso tudo ainda me preocupam. As exclamações. De que adiantaria uma mala cheia delas. Se nunca alcançariam seu destino. Se duas já seria complicado a entrega. Imagina a minha mala como ficaria. E naquela época também não era mala. É verdade. Eram baús. Procede. Agora entendi.


Que sorte a minha. Deixei o Universo sempre assustado. Com a queixa temporal. O Universo querendo que eu entendesse a escolha. O tempo. A distância. A rapidez. E eu reclamando. A minha avó já me alertava. Deixa de ser renitente, menina, deixa de ser renitente.Estava certa.


Ponto final. Curei.


Viva o século XXI e a entrega rápida das exclamações!!

 

 



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