Blog de Lêda Rezende

Dezembro 03 2009

 

Lá se iam encerrando - os dias plenos de escrita.

 

Ou para a escrita. Com feliz dedicação total. O tempo se esgotava. Retomaria a atividade da rotina – dia seguinte.

 

Ficara afastada por quinze dias. Acordava cedo. E já se transferia para o teclado.

 

Até sonhava com os textos. Podia falar dela. Ou dele. Ou daquele ato. Ou colorir aquele fato. Podia se sentir dentro do mundo. Mesmo estando isolada de tudo. Só. No quarto. Caberia até uma placa na porta da frente. Em recuperação.

 

De pele ao olhar – percorria os encobrimentos da memória. Muito a ser explorado. E - talvez - conquistado.

 

Desconsiderara Oceanos. Turbulências. Aderências. Convenções. Se sentiu como pisando em uvas. E vendo o sumo do vinho se fazer. Escutou música. Trocou mensagens. Relatos. Contou um pouco da vida. Acolheu dores distantes. Recebeu flores. Cores. Até amores.

 

Riu quando leu um recadinho. Ela escrevera. Aliás, pelo que escreve, parece que acontecem mais coisas na sua vida do que na vida dos outros! Ou você observa melhor! Assim. Com duas exclamações. Sentiu-se emocionada. Era um elogio e tanto.

 

Os motivos causais poderiam fazer temer. Mas as consequências foram só prazer. Eis uma rima que deu certo. E outra que se perdeu. Ainda bem. Dor rimou com nada. A dor ficou para trás. Vencida e sem par. E ela ficou com flor. Com cor. E com um doce sabor de calor.

 

Inegável. Foi uma beleza de hiato.

 

Lá se iam e vinham as ideias. Sem hora marcada. Sem pressa na construção. Corrigidas. Emendadas. Procriadas. Malcriadas. Educadas. Estava a viver o tal ócio que sempre ameaçara.

 

Mas fez uma pergunta. Talvez - tola. Onde estaria o ócio. Precisava de uma definição lógica. Sobre a exata localização do ócio. E pode rir de si mesma. Afinal – se nem tudo é perfeito, nem tudo também é o que parece.

 

Estava até dedicada aos provérbios. Lembrou de uma frase dele. Crescera com a frase envelhecendo junto com ela. Quem está perto do fogo é que se esquenta.

 

Optou por uma pausa nas frases.

 

Como dizia a avó de uma amiga. Não são frases que formam textos, menina, não são frases que formam textos. Procedia.

 

E nesse estado de letras – concluiu. Navegar é Preciso.

 

Restavam ainda algumas horas. Poucas. Mas seriam bem aproveitadas. Até a última badalada. E nada de perder sapatinhos. Ou alucinar abóbora. Ou brotar caninos. Esta é umas das possibilidades fantásticas da escrita. As horas avisam as badaladas. E não o contrário.

 

E quando o tempo é marcado – a espontaneidade se acelera. Corre. Percorre. Fica até tonta.

 

Mas ainda há tanto a fazer. Como assim. Já tem que sair. Que ligar o despertador. Que sentar sobre os trilhos. Que caminhar apressada em corredores.

 

Riu.

 

Apressada em corredores já denunciava. As ideias estavam assustadas. Como se arrancadas de um doce balançar de uma redinha. De súbito. E – afoitas – atropelavam os últimos retoques.

 

Assim se sentia. Deu uma rápida olhada em direção ao Universo. Olhou de forma circular. Se é que isso é possível. Fez um leve ar de birra. Quase perguntou se não compreendera. Mas achou inconveniente. Duplamente. E se controlou.

 

Desceu. Iniciou o processo da retomada. Qual uma obediente comandada. Organizou o material. Carimbo. Caneta. Os funcionais. Os profissionais. Incluiu os ocasionais. Nesse sobe e desce - recordou uma música antiga. Uma Viola. Enluarada. Assim estava se sentindo. Quase como uma despedida. Sempre dramática.

 

Mas seguiu o que tinha que ser seguido.

 

Houve uma simultaneidade. Assim. Sem mais nem por que.

 

O telefone tocou. Era ela. Com a voz suave e pontual - informava. Sua agenda de amanhã está completa. Bom retorno. E no mesmo instante um aviso. Chegou via tecnologia. Escrito na tela. Leremos na mesma Rádio. Mais uma história da sua autoria. Em tal hora. Em tal data.

 

Olhou para o Universo. Repetiu o olhar circular. Até ergueu as mãos. Sorriu. Desta vez lembrou a canção italiana, Ma che bello questo amore.

 

E retomou – tranqüila – a reorganização da rotina. Quem quer passar além do Bojador...

 

 


Outubro 19 2009

 

O dia não fora dos mais fáceis.

 

Tudo já começara de véspera. Mudança de horário. Troca de agendamento. Alteração no local. O simples transformado na contramão.

 

A ordem se oferecendo contra a lei. A lei se fazendo firme. Para recompor a ordem. Mais ou menos assim. Nada de filosófico. Uma organização de ritmo. Sem dança. Sem compasso. Apenas uma exaltação ao – impossível.

 

Durara um dia inteiro. A dissolução da linha entre o permitido e o pertinente. Até entre a consideração e a menos importância. E custara o pensamento da noite. Não diria uma noite em vão. Este termo só existe em notas de rodapé.

 

Lembro de uma frase da minha avó. É o escuro da noite que interrompe o sonho, menina, é o escuro da noite que interrompe o sonho. Estava certa.

 

Mas o dia veio - e a solução junto com ele. Enfim.

 

Foi nesse agenda-e-troca que o de repente se autorizou. Uma cena realmente inesperada. Pelo menos a parte que me coube na cena. E justo eu que tanto admiro as vozes. Fui perder logo a minha. E no momento que mais precisei dela.

 

O que saiu da minha garganta não podia jamais ser chamado de voz. Acho que nem a primeira sonorização da humanidade foi daquele jeito. Um gutural som estranho. E uma imensa alegria única. Vai ver é assim. A primeira parceira.

 

Eu olhava em busca de um presente. O livro que ela poderia gostar. Com a falta de horário livre lá se ia um mês de atraso. E ela sempre fora pontual nas comemorações. Resolvido o tal agendamento – melhor também resolver as pendências. Talvez uma opção para relaxar.

 

Estava diante das prateleiras. Tentava pegar um livro. Por sorte lá as prateleiras são fixas. Senão o mundo teria vindo abaixo.

 

Segurei o volume escolhido. Achei adequado a ela. Adora poesias.

 

Foi ai que notei alguém do meu lado. Ele me olhou atento. Perguntou. Se eu era eu. Assim. Falou meu nome com tranqüilidade. Até aí eu ainda possuía uma voz normal. E o cérebro ainda funcionava. Aparentemente – ao menos. Confirmei. Polidamente. E curiosamente.

 

Fez um cumprimento formal – mas sorridente.

 

E continuou. Reconheci pela foto. Leio seus textos. Admiro muito sua escrita. Que bom poder lhe dizer isso pessoalmente. Que coincidência lhe encontrar aqui. Diante de uma mesma estante. Quando este espaço é enorme. E só estantes.

 

Riu. E comentou sobre um ou outro texto que mais gostara. Riu de mais algum outro. Falou de um estilo diferenciado. Esta foi o último termo de que me lembro. Estilo diferenciado.

 

Quis responder. Quis relatar minha enorme alegria. Minha surpresa. E avisá-lo de que ele fora o primeiro a me reconhecer. Que eu nem sabia que era reconhecível. Nem poderia imaginar. Não faltaram ideias. Ou discursos. Ou metáforas.

 

Mas estava já na fase dois. Eu. Já não tinha um som adequado na voz. E acho que até o encéfalo ficou catatônico.

 

Nunca me acontecera algo sequer parecido. E nunca previ que pudesse me acontecer.

 

Ele continuou falando. Comentando. Fez até algumas sugestões. Exigiu uma maior exposição da minha parte. Fez gracinhas. Deveria ter uma seta indicando os meus caminhos. Algo por aí. Falou que eu estava escondida. Bastante desenvolto. E seguro da sua apreciação.

 

Fez uma observação sobre o livro que eu escolhera. Recomendou ficar atenta às sugestões dele. Respondi um - obrigada. Obrigada de novo.

 

Até me esforcei por um terceiro - obrigada. Mas a voz já em contraponto com o entusiasmo – se isolou. Belas companheiras. Cordas vocais tímidas. Não me faltava mais nada.

 

Ele saiu. Eu fiquei ali. Com o tal livro de poesias nas mãos. O presente dela atrasado. As palavras dele me circulando - a pele.

 

Olhei em volta. Parecia que de repente só eu estava ali. O lugar havia esvaziado. Deve ser assim nessas situações. Preciso saber de alguém experiente.

 

Coloquei o livro de volta na prateleira. Ela esperaria mais um dia. Aquele momento se tornara muito meu. Não tinha como dividir. Ou ser pragmática. Não sabia se tinha entrado numa bolha. Ou saído dela.

 

Voltei feliz para casa. Ri. Com a alma. Com as mãos. Eis enfim o terceiro – obrigada. Tomara que ele leia. E compreenda. A rouquidão - e a feliz emoção que causou.

 

A noite me pareceu tão clara.

 

 


Outubro 16 2009

 

É passional. Muito passional.

 

Sempre agiu assim. Já o conheci assim. Com o vermelho da emoção sobrecarregada – colorindo o rosto de linhas bem marcadas. Belo. Contrastando com o grisalho dos cabelos e o esverdeado do olhar. Um colorido explícito. Denunciava a alma – sem texto. Incrível. Foi a primeira palavra que me veio à mente.

 

Algumas vezes até o senso de justiça ficava um pouco de lado. Mas era atento. A injustiça lhe feria até a alma. Tentava sempre uma parceria. O passional com o racional. Nem sempre conseguia. Mas nunca desistia. E com o passar dos anos – foi ficando cada vez mais atento.

 

Tem um dom. Especial – como todo dom. Tem uma sensibilidade ímpar. Enxerga além do previsto. Ou até do malvisto. Mas só se expõe quando quer. Quando não – comporta-se como um trabalhador braçal. Enche-se de tarefas e silêncios. E age como se nada importasse. Assim se ampara. Assim se enfrenta.

 

Divide um estilo entre a timidez e a ousadia. Não sem alguma dificuldade na dosagem certa. A balança pode pender para um lado mais afoito. Ou menos objetivo. E – muitas vezes – o resultado foi negativo. Errou talvez mais do que acertou. Ou o contrário. Nunca se sabe mensurar com a certeza. Venceu grandes batalhas. Perdeu boas oportunidades. O tempo é autoritário.

 

Descobriu também depois. Mas aprendeu a conviver com o que não pode ser resgatado.

 

Este é mais um dos seus traços. Acata. Não se rebela se a luta é desleal. Lutar contra o Tempo – já se entra perdendo. Lutar contra as perdas – impede as novas conquistas. Nisso é um sábio. Nada de ficar correndo atrás de prejuízos. A vida caminha para frente.

 

Expõe a alegria pessoal com recato. Impõe solidão nos momentos de grande tristeza. Sobreviveu a dores e amores. Aos possíveis erros de avaliação. Às possíveis punições da credulidade da juventude. Agora – bem mais cuidadoso – se preserva. Melhor um pouco de charme bem dosado do que o coração aberto por inteiro.

 

Não perdeu um mínimo que fosse da característica sedutora. Ou da sensualidade. Sedução e sensualidade. Para ele – forças vitais.

 

Tem um olhar curioso sobre o Universo de uma forma geral. E um olhar disfarçado sobre as belas particularidades do mundo. Divide o que sente – com quem sabe escutar. Cala-se diante do desatento. Ou do seletivo. Não quer ser apenas instrutor. Quer mais. Quer talvez ser provocador. Provocar projetos. Provocar futuros.  

 

Tem ternura na alma. O desconforto do outro lhe causa dor. Enfim. É suave e forte. Como um poeta. Como um músico. Muito mais lhe importa a sonoridade das palavras. O brilho das cores. Ou o simbólico dos detalhes.

 

Aprendeu que nem tudo que é belo é real. E nem tudo que é triste é sofrimento.

 

E assim vai seguindo o caminho. Perseguindo os objetivos. Contornando as imperícias. Regozijando-se com as conquistas.

 

Foi o que pensei ao vê-lo hoje. Decidido. Já foi logo avisando. Desde cedo.

 

Não importa o Tempo. Muito menos a temperatura. Não importa se aquece. Não importa se esfria. Vou relaxar diante das águas. Vou ficar diante do vento. Vou buscar o equilíbrio. É só o que permite que se fique numa vertical. Assim. Entre o vento e a água. Vou dominar com os braços. Vou firmar com os pés.  Vou vencer sem contradizer. Vou entender a favor – estando contra. Ou vice-versa. Tanto faz. Vou aprender a ser. Muito mais do que a estar.

 

No começo pode-se cair. Músculos e pensamentos nem sempre andam de mãos dadas. Podem até se desentender. Mas assim é em qualquer aprendizado. Para cada código há uma leitura específica.

 

Por um segundo ainda olhou para trás. Ainda pensou em voltar. Mas este também não era o estilo dele. Uma vez diante de uma criação – seguia. Confirmava.

 

Quando uma ideia chegava de súbito – respeitava.

 

E esta viera assim. De repente. Num amanhecer cansado. Ou por um dormir angustiado. Vai lá saber. Mas viera. Isso o que importa. Iria sim. Buscaria os meios. Transformaria ideias em atitudes. Este outro dos seus traços.

 

E de traço em traço – como que deliberadamente – vai se compondo. Refinando a sinfonia interior. Tentando desenhar seu próprio destino. Cuidadoso. Como se utilizasse um pincel com um único pelinho. Pintando com delicadeza e sutileza. Mas com firmeza - e vontade própria - no risco.

Sempre fiel e leal – consigo mesmo. Com o vermelho no rosto. Ocasionalmente.

 

Inegável e proporcional. Além do sentimento afetuoso - o admiro tanto quanto o invejo.

 


Outubro 04 2009

 

Ela era desse jeito.

 

Um pensamento - cérebro a dentro  –  e o dia a fora a tentar  entender. O tal pensamento.

 

Tudo começara quando ela lhe disse uma frase. Talvez mais.

Quase um relato. Não justificável. Incoerente. Até desnecessária.

 

As horas passavam. Ela progredia com a rotina. Mas um intervalinho que surgisse lá vinha o pensamento invasor. Talvez até mais autoritário do que invasor. Não dava descanso enquanto não solucionava. Como um inseto em busca da luz. Até ria quando assim definia.

 

Mas se o pensamento era autoritário – obedecia. Submissão ao raciocínio sempre fora sua tendência. Não desprezava idéias formadas. Não cancelava observações afoitas. Creditava sabedoria ao que irrompia sem muita solicitação.

 

Mas manteve o bom humor. Cumpriu o estabelecido. Seriedade e risos adequados.

 

Foi nesse vai-e-vem de busca que voltou para casa.

 

No percurso discursou soluções. Abstraiu linhas divisórias. Contracenou consigo mesma. Usou de artilharia pesada. Fantasiou até estratégias de deserto. Mas dirigiu com tranqüilidade. Sem pressa.

 

Pressa mesmo quem teria que ter era as instâncias. Mentais. Ou emocionais.

 

Ela apenas dirigiu. E fez as suas suposições. Confiante que numa delas estaria o fio condutor. Não de um choque. Ou de um curto circuito. Mas de uma posição definida ao final da acareação.

 

Encontraria a solução conveniente. E seria claramente eficiente. Completou a sequência de ente - com consciente e inconsciente. O Mestre austríaco não escapou. Foi chamado ao banco de jurados. Ou de condenados. Nesse momento – riu. Eis um Lugar onde sempre o Mestre basculava.

 

Quase uma questão inglesa.

 

Chegou de volta em casa. O porteiro a aguardava.

Entregou-lhe um pacote. Pelo selo compreendeu - vinha de longe. Bem longe.

 

Ai tudo mudou.

 

Nada mais de pensamento. De fantasmas. Ou de mestres. A Áustria ficou em seu devido Lugar. Bem longe. O cérebro desconsiderou as buscas. Os ingleses ficaram para trás. Eles que resolvessem suas questões. Os tais entes sequenciais se retiraram. Fio condutor - só do elevador que a levou para dentro. Mais ou menos assim. Abrupta – eis a palavra perfeita.

 

Ele avisara. O livro lhe será enviado. Queria que ela opinasse. Opinasse. Incrível. Um poeta pedira opinião - dela. D’além mar. Enviou o endereço. Mas quase desacreditou na remessa.

 

A remessa existiu. Existia. Saíra da de lá. Fora empacotada. Selada. E assim atravessara o Oceano. E estava ali. Fazendo mais uma travessia. Das mãos do porteiro para as mãos dela.

 

Já foi entrando em casa e abrindo. A capa era bela. Objetiva.

 

Mas entendeu o autor no momento que viu a primeira página. Depois da capa. E a última página. Antes da contra capa.

Ali. Sem nada escrito - um papel de cor azul.  Antecipando e encerrando as letras.

 

O mesmo azul que ele relatara um dia. Sobre a cor dos papéis das cartas enviadas de avião. Há tantos anos. Escritas até o final de um papelzinho azul. Em meio às chamadas de combate. A guerra cortando as frases. O azul da letra viva numa situação de possibilidade de morte. No passado.

 

Aquele papel - na primeira e na última página. Simbólico. Silencioso. Colorindo um tempo. Qual uma tímida biografia.

 

A poesia já se expunha desde a página não escrita. Se fazia dona do texto em seu silêncio. Em sua cor. Sóbria. Discreta. Delicada. E os versos - acolhidos - dando relevo à emoção. Belíssimos.  

 

Tinha que ser um Poeta. Só um Poeta.

 

Lembrou do Santo filósofo. Ele afirmava. Não havia passado nem futuro. Só presente. Porque é no presente que se fala. Seja do passado ou do futuro. Trazendo-os no tempo. Para junto de si. Pela primeira vez ela entendeu completamente. O sentido. O significado. A idéia quase concreta do Tempo. Perfeito.

 

Dentro havia uma dedicatória.  No final ele acrescentou. Desejo muitas felicidades. E muita inspiração para escrever com o carinho e a inteligência com que o faz.

 

Lera o que ela escrevera. De lá. De tão longe. Comentara. Elogiara. Assim se identificara. E se aproximara.

 

Fez um brinde gestual ao Poeta distante.

 

Se sentiu presenteada – na acepção dupla do termo.

 

E prestigiada – na acepção egoica da palavra.

 

Obrigada.

 

 


Setembro 28 2009

 

Não esquecia um determinado comentário dela.

 

Escreveu dizendo. Achava muito bonito. Fazer uma festa apenas os seis. Tem quem discorde. Quem ache que festa tem que ter muito mais pessoas. Mais distantes. Ou mais sociais. Afins e sem fins. Elogiou isso. Fazer festa familiar. E ser tão divertido. Sempre.

 

Participara uma vez. De uma destas festas. Era o aniversário dela. Veio junto com a outra amiga para prestigiá-la. E se transformaram em oito. Foi muito bom. Não faltaram motivos para risos. A celebração se estendera pelo dia e entrara pela noite. Uma festa. Este o termo correto. E achara maravilhosa.

 

Códigos e referências sem explicações necessárias. Risos e dados rascunhados – passado a limpo. Sem aborrecimentos. Sem contratempos. Sem críticas maldosas. Sem mágoas.

 

Sim. Ela estava certa. Sempre era muito bom.

 

Nesta noite não foi diferente.

 

O convite partiu dele. O inverno chegou. Vamos celebrar antes que acabe. Com esta informação do aquecimento global nunca se sabe. Todos riram. Convite aceito.

 

A mesa estava em ordem. Tudo feito dentro do solicitado. Cada um poderia se servir diante da sua preferência. O frio circulava com tranqüilidade. Lá fora uma chuva leve dava um toque bucólico.

 

Ela riu. Sempre se divertiu com este termo.

 

A modernidade permitiu que fosse tudo feito à mesa. Com todos em volta. Como um banquete antigo diante das genialidades modernas. Não se precisou do ir e vir. Tudo ficou disposto e exposto. Aquecido. Aquecendo.

 

Não se fugiu à rotina. Como assim - acabou. Então substitui. Faz assim mesmo. Vai ficar bom. Ela não gosta de alho. Ela não come bem passada. Ela só quer mal passada.

 

Este queijo, não. Acha até bonito. Mas não gosta. Este sim. Sim. Deixa que sirvo. Ponha mais para cá. Agora ficou longe dela. Quase derramou. Não, não sujei nada.

 

Quem levantar vai ter que pegar também mais isso. A família denuncia de onde veio. Sim. Até ele. Veio do lado oposto. E já está igual. Ninguém quer levantar. Deixa - eu vou. Então ótimo.

 

O cheiro do queijo derretido se misturava aos cheiros dos molhos da carne e aos pães selecionados. O vinho circulava de mão em mão. Os lugares escolhidos indicavam as preferências de cada um.

 

Elas estavam lindas. Como sempre. Participativas. Integradas - muito mais do que integrantes.

 

Eles se compartilhavam e partilhavam da história de cada um - entrelaçada com a do outro.

 

A música escolhida fora nenhuma. A voz de cada um parecia fazer o coro perfeito. A batuta era erguida ao som de talheres e facas. Tudo em total harmonia com os estalinhos do óleo nos quadradinhos de carne.

 

O cheiro doce do chocolate veio fazer o contraponto. Deliciou. Acolheu. Fez o grand finale. Em alto estilo.

 

Foi ai que lembrou a observação dela. Da reunião a seis. Sem precisar de suportes para ter graça.

 

Olhando para eles – se sentiu orgulhosamente feliz. Muito feliz. E muito orgulhosa. De si mesma. Tivesse uma medalha por perto e já teria se atracado a ela. Assim estava se sentindo.

 

Orgulho. Eis mais um sentimento com múltiplas leituras. Não permite solidão. Ou isolamento. A vaidade até pode ser ato parcialmente isolado. Pode ser dividido apenas com o espelho. O orgulho, não. Em especial este tipo de orgulho. Sempre vem do outro. Ou pelo outro. Como um presente doado. Perseguido de forma direta, mas conquistado de forma indireta. Não vem de si para si.

 

Foi o que aprendeu naquele momento. Observando-os.

 

Sentindo a mistura de cheiros. Diante do riso festivo de cada um. Da intimidade positiva em volta de uma mesa. Onde o simbólico se fazia quase táctil de tão factual.

 

Compreendeu perfeitamente. A importância de códigos bem estabelecidos. Seja qual for a relação. Para que possam ser corretamente lidos. E espontaneamente respeitados.

 

Até lembrou a velha frase. In vino veritas. Podia ser. Mas era verdadeira a visão. A sensação. Não era fruto de uma embriaguês. Era fruto de uma realidade.

 

Eles eram adequados ao tempo e às funções. Felizes. Afetuosos. Éticos e bem sucedidos. Com a idéia coerente de ambiente. De presente.

 

Era uma noite fria de um sábado de inverno.

 

E o anunciado aquecimento global se fazia verdadeiro e instalado. Estava todo ali - na sala. Em volta da mesa.

 

Riu tranquilamente aquecida.

 

 


Setembro 20 2009

 

Impossível negar. Foi uma surpresa.

 

Daquelas que pode até provocar aceleração do coração. Descoramento súbito da face. Ou o oposto. Rubor facial intenso.

 

Aquele recadinho me tirou da rotina. Liberou pensamentos. Fiquei muito tempo pensando nos poderes. Em todos os poderes. Mas em especial no poder da letra. Isso sem deixar de destacar a rapidez da comunicação. Mas naquele momento me pareceu o de menos. O poder da letra sim. Este o maior dos poderes.

 

A viagem dos caracteres mundo a fora – mal – ou bem - saídos de uma idéia.

 

Não importa a história pessoal. De quem escreve – ou de quem lê. Não importa o conhecimento físico. De quem escreve – ou de quem lê.

 

Nenhuma real materialização se faz necessária. Este é o mais belo poder de uma letra. O seu percurso é mais solitário do que a sua função. Mas nem por isso menos acolhido. Ou menos considerado.

 

E desde sempre. Há escritores antigos que não se tem sequer uma descrição do seu rosto. Há textos saídos dos lugares mais esquecidos do mundo. Há frases célebres de autores anônimos.

 

Mas o contrário não existe. É pela letra – seja qual for a intenção por trás dela- que uma atemporalidade se torna possível. E a espacialidade. A ligação entre o autor e sua letra só se torna forte pelo crivo do outro. É o leitor que cinzela o que foi esboçado. Este sempre o poder da letra. Alheio ao seu causador.

 

Mudam os idiomas. Mudam as tradições.  Trocam-se os terrenos. Ideologias. Convenções. Estilos se multiplicam. Mas a letra circula exercendo sua função de percorrer. Livre do idealizador. Desgarrada do autor.  Mais ou menos por aí.

 

Até lembrei dela. Uma vez se irritou. E avisou. Não quero saber de interpretação com esta pergunta. Qual a idéia do autor. A idéia do autor é mistério que não interessa. Muitas vezes até para ele. É pela idéia do leitor que um texto desperta e respira. O texto nasce e cresce nas mãos de quem o lê. A partir da avaliação de quem o lê. Procede.

 

Foi entre estes pensamentos que fiquei surpresa diante do recadinho. Um recadinho. Uma sugestão. Um esclarecimento.

 

Vinha d’além mar. Alguém de tão longe se apresentava. Sou seu leitor. Pedia permissão para opinar. Incrível. Como um poema. Ou uma poesia. Assim me veio a sensação na solicitação. Na opinião. Na delicadeza incluída na mensagem.

 

Por que não tenta. Se não tentou já prolongar suas  pequenas fotografias que são verdadeiros instantâneos - e dar-lhes  consequência.  Desculpe minha pretensão e arrojo em lhe estar a sugerir isso,  mas acho que seria capaz de fazer algo muito bom.

 

Vinha de tão longe a sugestão. Acrescentara uma pequena identificação pessoal. Lutara na guerra da Guiné.

 

Contou sobre o tempo de soldado na Guiné. Escrevia uns chamados aerogramas. Eram uns simples papeis azuis. Levezinhos por causa do avião.

 

Escrevia duma ponta à outra nos momentos vagos da guerra. Depois recomeçava a luta e parava o aerograma. Por vezes andava uns dias a escrever o mesmo - antes de ir ao correio.

 

Ele não me conhecia. Eu não o conhecia.

 

Sabia do meu estilo. Opinava de forma filosófica. Como filosófica tem que ser qualquer decifração de códigos. Só assim uma leitura se faz - por si só – uma tradução. Onde o que menos importa - é o idioma.

 

Apresentou-se pela opinião. Continuou pelas desculpas. Encerrou o aperto de mão com um trecho da história pessoal.

 

O texto instantâneo se unia ao texto histórico. Um relato por sobre o conto. E o conto por sobre o relato.

 

Escrever em instantâneos. Fiquei pensando nisso. No instantâneo da escrita. Isso sem falar em tantas consequências possíveis - do prolongamento de um texto. Adorei.

 

Foi ai que veio a real surpresa. Da magia da letra.

 

A Guiné ficou quase na esquina. Dava até para ver o soldado escritor – a pegar seus papeizinhos azuis. Consegui até vê-lo lendo os meus textos. Agora já numa outra etapa de vida. Onde a guerra e os aerogramas são tácteis apenas na memória.

 

Obrigada. Pelo retorno. Por me fazer - realmente - existir. Agradeço muito. Vou tentar. Já estou tentando. Se conseguir lhe envio. Algum dia.

 

Se possível em papeis azuis.

 


Agosto 11 2009

 

Estou sempre lembrando os poetas.

 

Nunca estive tão à mercê deles como atualmente.

 

Hoje foi a vez dele - invadiu o meu pensamento. De repente veio assim. Uma poesia específica. Procede. Era sobre o dia dos anos dele. Como ele olhava para os anos passados. E como comemorava o ano presente.

 

Desconheço enredo mais belo.

 

Assim são os poetas. Não deixam que nada escape. E, a cada versinho, cada um se enlaça dentro da sua pessoal desorganização. Sim. Porque diante das organizações – a poesia escapa. Fica-se com as estatísticas. Ou com as listas. Ou até com as falsas verdades. Mas a poesia só denuncia a desorganização. Aprendi há tempo. Sem atalho e sem todo.

 

Brinca-se com as palavras. Como na arte da dobradura. Começa-se com um papelzinho sem marcas. Dobra-se daqui. Vira-se dali. E a figura que surge parece até espontânea. Mas não é. Palavra é escolhida a dedo. Mesmo que seja vinda de um ato falho. Ou de um ato perdido. Até de um ato esquecido.

 

Como as dobraduras – as palavras nos levam ao Lugar que manufaturamos. Disso ninguém escapa. Pode negar. Recusar. Mas não tem saída.

 

E lá estávamos nós. Há quatro dias. Diante de tudo que representava ato e fato. E até o contrário cabia. Festejo é sempre assim. Um não mais acabar de vice-versa.

 

Desta vez – mais uma refeição antes da partida. Reiteramos votos e afirmamos dúvidas eternas. Lógico. Não existe continuidade se não há as cultivadas dúvidas.

 

A minha avó estava certa. As certezas não constroem as grandes amizades, menina, as certezas não constroem as grandes amizades.

 

Foi pensando nisso que nos despedimos. Sob o som do zíper das malas sendo fechadas. Do barulhinho das rodinhas pelo piso. Do girar delicado da chave na porta.

 

Elas se foram. No final da tarde. Ou no final do dia. Não importa. Despedida não tem horário. Simplesmente é.

 

Saíram levando novos risos e novos códigos. Um pretenso caderninho com novas páginas escritas. Em meio às páginas amareladas dos velhos e recontados acontecimentos. Cada uma com seu olhar para o que viu. Para o que negou. Para o que descobriu. Até para o que esqueceu.

 

Quando saíram – sentei.

 

Olhei a mesa com a toalha branca ainda sobre ela. Caminhei com os dedos pelos bordadinhos. Uma manchinha vermelha me fez rir. Lembrei dela cobrindo com o guardanapo a pequena marca do desatento gestual. O cafezinho esvaziado em sua proposta marcava com fina textura a xícara deixada num cantinho da mesinha. As cadeiras desalinhadas denunciavam o senta-levanta. Nas pias alguns pratos se amontoavam certos da função bem aplaudida. Um papel colorido e brilhante num cantinho do sofá demonstrava os motivos do encontro. As flores coloridas erguiam-se alheias se idas ou vindas. Na bancada as fotos mexidas marcavam a dança da memória.

 

Um ventinho entrou por uma fresta da porta da varanda e percorreu o espaço como posseiro.

 

Em meio a esse amontoado de lembranças - o telefone tocou. Até dei um pulo da cadeira. A realidade se apresenta de todas as formas. Foi o que pensei. Procedia.

 

Do lado de lá alguém solicitava informações precisas. Práticas. Pragmáticas. Respondi o demandado. Sorri. Parecia que me acordavam. Que os acontecimentos giraram em torno de um cochilo. Uma piscadinha mais longa.  

 

A rotina re-estabelecia as suas metas. Não sei se com tranqüilidade – como pensei num primeiro momento. Mas por certo com determinação. Até acelerei os movimentos. E já fui olhando para o relógio. Só não olhei logo porque esqueci onde o havia colocado. Mania antiga. É sair da rotina – e o coitado do relógio vai para um canto qualquer. Mas – resgatado – voltou a dar as ordens.

 

E me pus de imediato a obedecê-las. Agora era só recolocar o que estava deslocado. Arquivar novos dados na memória. Voltar a prever o dia seguinte.

 

Guardar objetos em seu devido Lugar. Fazer o mesmo comigo. Retomar o meu tal devido Lugar.

 

Bem o contrário do que foi vivido. Pensei enquanto colocava os registros em ordem. Enquanto alinhava as fotos no balcão. Ou arquivava a poesia. Ou enrolava e dispensava o papelzinho colorido do presente. E o tempo se fez total. Sem fragmentações. Quase sem antes e depois.

 

Estávamos com os dias ao nosso redor. Agora era continuar ao redor dos nossos dias.

 

Tudo co-memorado na forma de-vida. Ri. Feliz.

 


Agosto 09 2009

 

A semana girara em torno da expectativa.

 

Até sorriu. Quando começou a entender. A expectativa em si – letra por letra – estava já sendo vivida. Já acontecia.  A existência do ato já era fato. É sempre assim. O difícil é enxergar. Vai lá saber por que. Quando uma programação se estabelece – já começa a ser vivida desde o primeiro passo.

 

E a rotina passa a ter outro colorido. Algo por aí.

 

Mas estava muito agitada para ser parcimoniosa. Com as idéias. Os pensamentos vinham desordenados. Não havia fila nem senha. Chegavam de qualquer jeito.

 

Sempre fora assim. Quando chegava esta época – ficava mais feliz. Muito mais feliz.

 

Quando criança – era o mês das reclamações.

 

As notas caiam. O boletim ia para o Departamento das Recuperações. O comportamento ficava um horror diante dos critérios aprovados. E lá se ia para o Departamento das Complicações. As queixas se sucediam.

 

Parecia que professores e coordenadores só sabiam o nome dela. Era o nome mais repetido do mês. Não se importava. Como se não lhe dissesse respeito. Muito menos autoria. Falava mais do que o costumeiro. Ria muito mais que já se conhecia.

 

Quando o mês acabava – voltava para o seu estado habitual.

 

Não que fosse de todo bem disciplinado – porém menos acelerado.

 

O tempo passou. Não tinha mais problemas de boletim. Nem de comportamento. Nem de coordenadores. Não frequentava mais os Departamentos. Mas continuava em seu festejo particular.

 

E desta vez não foi diferente.

 

Quando elas chegaram – todos já sabiam. Estava inaugurada a semana. Os festejos. As lembranças. As saudades. Os acertos. As surpresas. As noticias de todos os lados. As fotos antigas. O riso dela pelas fotos antigas. As escavações na memória. Estavam iniciadas as comemorações.

 

A mesa arrumada. A toalha branca. As flores. As cores da comida. A música bem escolhida. Elas vieram de lá. Saíram da rotina. Re-agendaram as tarefas. Para participar.

 

Eles passaram a semana tramando surpresas. Monitorando a organização. Para que nada faltasse. Para que tudo agradasse. A ela.    

 

Todos juntos. O espaço acolhia a todos. A casa parecia mais clara. Com mais luz.

 

Não faltavam abraços. Beijos. Piadinhas. As fotos assustadas. Agora não. Nem sorri. Apaga essa. Não fiquei bem. Essa - adorei. Me envia. Agora pode. Mais um pouco. Você fica aqui. O preferidinho é ele. Não. É ela. Ela faz assim. Eu que me desdobro. Sim. Ela sempre foi muito elegante. Não acredito. Mexendo com terra. Adora o sitio. Não o chalé. Certo. Cada um nomeia como quer. Mas ela mexendo com terra. Surpreendente. Quem diria. Então tudo bem. Luvas de borracha com grife. Agora a reconheço.

 

Falou sim. Falou que não estava bonita naquela festa. Eu escuto bem. Não faz mal. Eu me vingo. Ele também faz nesta época. Teremos que acertar tudo de novo. Sim. Diante do mar. Ia ser bom. Vamos organizar. Como assim eu quem decide. Sou submissa.

 

Estão rindo do que mesmo. Não entendi. De novo. Ela não esquece a tal Cidade Luz. Não tem assunto que não possa ser citada. Até unha encravada.

 

Sim. Outro brinde. Também achei. Delicioso. Que surpresa. É ela sim. Está ligando de lá. E no momento exato. Dos nossos brindes de aquém mar.

 

Que alegria. Você ligou para estar presente. Nem precisava. Você está presente esteja onde estiver. Além mar não é distância. É só localização. Sim. Todos também estamos sentindo sua falta. Que bom que ligou. Elas estão aqui sim. Haja ciúmes. Depois dizem que ciúme é bobagem. Sei.

 

Diante desse coral perfeito – ela parou. Sentou. Olhou para todos. Se sentiu a privilegiada. Repetiu uma frase costumeira. Bem baixinho. Alguém lá de Cima me adora. E balançou a cabeça. Grata. O prazer de estarem todos juntos era de uma obviedade que até emocionava.

 

E o dia exato ainda nem tinha chegado. E já tinha chegado. Lá se veio – de novo - a questão do tempo. Redundância perfeita. Mas ele proibiu. Não se pode dizer a palavra chave. Esta só no dia certo. Dá azar. E todos obedeceram a ele. Como sempre. Um avisou de lá. A Lei chegou. E todos riram. Obedientes. Lógico.

 

Agradeceu. A todos. A um por um. A elas que viajaram. A eles que se organizaram. E a ela - que mudou a rotina para contribuir com sua acertada arrumação.

 

Deu um beijo nele.

 

Concluiu. É o afeto que enlaça a alegria. E qualifica o Tempo certo.

 

O mais é calendário.

 


Agosto 06 2009

 

Eis a questão inicial. O tempo passa muito rápido. Não dava para acreditar.

 

Lembrei o poetinha favorito. De um versinho breve. Tão breve quanto a Vida. Algo sobre quem é aquele envelhecido ali que me olha. No espelho.

 

Pode-se até amor-daçar o desperta-dor. Pode-se esconder o objeto. Só o objeto. Por que o tempo fica ali. Servindo-se de si mesmo. E servindo-se do outro.

 

Impossível não pensar.

 

Como dizia a minha avó.  Sempre parece que foi ontem, menina, sempre parece que foi ontem.

 

Foi assim que me senti – de repente. A  serviço do tempo. Como uma habitante do seu cárcere privado. 

 

Mas os planejamentos já se iniciavam. Dava para ler nas entrelinhas das comunicações. Dos olhares. Das frases ditas com rapidez. Estilo ao bom entendedor. Cada ano vem com uma novidade. Uma orgia de criatividades.

Cada um expondo seus afetos de forma especial.

 

Lembro de uma vez. Quando cheguei de volta em casa. Ele havia iluminado a sala toda com pequeninas velas. Muitas. Nem dava para saber quantas.

 

Pareciam estrelinhas contratadas. Ali. Em cada lado que virasse – um pontinho de luz delicada. Da cozinha rescendia um odor quase onírico. A música fora escolhida com total adequação – havia sido a primeira música.

Lembro quando entrei na sala. E vi os brilhos no escuro. A música. O cheiro.

 

Passei um tempo em posição de surpresa. De pé. As duas mãos no rosto. Um riso assanhadinho entre as mãos. A mais pura expressão de prazer.

 

Lembro da pergunta dele. Não vai entrar. Na mesinha muitos pacotinhos enrolados com laços e papeis brilhantes. O vinho no balde. A mesa posta. O olhar dele. O riso. Uma festa. Entrei. Sentei. O difícil foi tirar as duas mãos do rosto. O riso foi fácil. Ficou para sempre.

 

Até hoje – quando lembro sinto o cheiro e vejo as cores.

 

Uma outra vez caiu num domingo.

 

Ele levantou antes. Desceu. Da cama escutei uns barulhinhos. Perguntei se estava tudo bem. Sim.

 

De repente muitos barulhinhos. E pés pela escada acima. Estavam todos lá. Ela também estava do lado de cá do mar. E ali. Dentro de casa. Todos. Risos e risos.

 

Me convidaram a descer. Estava lá uma festa. De flores. Um pacote enorme enrolado de branco com fita vermelha - descansava seu peso no sofá.

 

A mesa. A mesa estava linda. Toda arrumada. Com tudo que agradaria aos deuses gregos. E eles todos felizes. Ela só ria. E apontava a sua parte na composição. Para destacar o – lhe conheço bem.

 

Tantos anos que ela não participava deste festejo. A comemoração passou a ser múltipla. Não faltaram motivos. Desta vez a música era mais comunitária. Regida apenas por risos e vozinhas.

 

Naquele dia deu para entender o que falam sobre a magia do afeto.

 

Agora escuto os burburinhos. Vejo olhares enviezados. Desta vez ela não virá. O além mar está mais além. Mas hoje cedo já se fez presente.

 

Informou da celebração. Antecipadamente. Como contagem regressiva. Sempre atenta. E delicada. Já acordei rindo.

 

Foi aí que veio o tal de repente. Aliás veio duas vezes.  Sempre explico a ele porque gosto de ópera. Acho que ele já entendeu. Se não entendeu vai entender. Quando ler.

 

De repente o Tempo passa. E passa mesmo. Ciente da sua função. Com absoluto desprezo por reclamações. Vai lá fazendo um percurso que nem sequer é planejado. Lida com tudo com total despropósito. Este é o Tempo.

 

Mas de repente também o Tempo traz as respostas. Os retornos. Os possíveis merecimentos.

 

Entre esses dois de repente – discordei de mim mesma. Depois me convenci de mim mesma. Para depois entrar em estado de dialética.  

 

Diferente do meu poetinha querido, me reconheci.  E,feliz, dei um beijinho no espelho.

 

Não fiquei tão-somente a serviço do Tempo.

Também o fiz existir a meu serviço.

 


Julho 26 2009

 

Acordou com o dia já programado de véspera.


Adorava isso. A sua programação adiantada. Dormia sabendo o dia seguinte. Mais ou menos assim. Não era metódico. Nem obsessivo. Era programado. Palavras com sentido diverso. E funcionalidade ainda mais diversa.


E assim seguia seu estilo. Alguns até opinavam. Faziam elucubrações carregadas de teorias sobre o ato em si. Dava de ombros. Escutava mas não antagonizava.


Alguém um dia lá sugeriu. Vai ver é uma aposta na vida. No dia seguinte estará vivo. Vai ver é isso. Funciona como ordem prévia. De rotina a ser cumprida. Nada afastando a possibilidade da interrupção. Da já cuidada rotina. Desde a véspera.


Desta vez acatou. Não que estivesse em total acordo. Acordo era muito difícil de conseguir com ele. Sempre tinha um se ou um mas. Os mais próximos até se surpreenderam. Ela perguntou. Não vai falar que não. Riram. Ele não riu.


Ficou pensando. Não dizia refletindo porque cansara desta palavra. Deste verbo. Refletir passou a lhe sugerir uma observação superficial. Como uma leitura das primeiras linhas. Desconsiderando todo o parágrafo. Como uma alegoria. Sempre cabia mais imagem do que texto. Uma idéia particular. Mas não abria mão.


Assim fora mais aquela noite. A roupa da manhã já separada. A chave do carro sobre a mesa. O café da manhã já deliberado. E dormiu.


Pela manhã já se sentiu reconhecido. Tudo estava conforme o planejado. Logo era muito mais uma questão de reconhecimento. Do que de conhecimento. Assim acreditou. Tinha lá seus instantes de credulidade. Quase lúdica.


Saiu. Foi cumprir o já agendado.


Parece que alguém não entendeu muito bem. Ou se fez de desentendido.


Em meio ao rumo determinado – um susto.


Ela veio de lá. Desconsiderando listas. Projetos. Estilos. Ordens prévias. Obstáculos. Vai lá saber o que programara na véspera. Mas foi uma pancada só. E um estridente grito do metal com metal. Como uma cruel dor aguda e cortante.


Seu carro restava ali. Como diriam os poetas do além mar. E restava era a palavra mais correta. Uma parte se fora. E a que restara não se sustentava. Qual um doloroso divórcio. Onde um não sabia o que fazer sem o outro. Mas já se entendendo separados. As partes destacadas estavam bastante machucadas. Para fazer uma analogia - novamente - poética.


Olhou rapidamente para o relógio. Olhou com calma para si mesmo. A parte externa estava íntegra. Nada parecia ter sido perdido. De si mesmo.


Ela veio. Com um manual de explicações. Sim. Do jeito que falava parecia ler o Manual do Descontrole. Falava alto e ritmado. Fazia as pontuações de forma correta - mas desordenada. Explicava o por que do acidente.


Por um segundo o pensamento se deslocou. Achou maravilhoso. Que alguém soubesse explicar acidentes daquela forma.


Mas logo se recolocou. Respondeu com monossílabos. Objetivos. Claros. Talvez apenas não muito polidos. Mas para uma dama descontrolada – era o máximo que podia conter. Ela era a responsável por toda uma quebra. De metal a trato. Desconsiderando por total o dia seguinte - dele. 


Os meios de solução chegaram. Foi tudo resolvido protocolarmente. Protocolarmente.


Seguiu para a rotina. De taxi. Voltou para casa de noite. De taxi. Quando chegou informaram. Não tinha luz. Subiu as escadas. Muitas. Pela primeira vez se arrependeu. A vista era bela. Sim. Os braços abertos Dele pareciam mais próximos. E acolhedores.


Ficava mais lindo visto da sacada. Mas as escadas eram infinitas.


Superada mais esta etapa - entrou. Nada poderia mais ser feito. À falta da energia elétrica se agregaram muitas outras faltas.


Encontrou uma daquelas lanterninhas de página. Decidiu. Vou vencer mais este inesperado. Abriu um livro que recebera. Começou a ler. O texto falava sobre idéias num carro. Ou sobre a falta de micro num carro. Algo por aí. Na segunda palavra carro do texto – fechou o livro.


Precisava apenas repensar sobre o susto.  E todas as suas variantes. Sobre o evitável - previsto. Ou o inevitável - imprevisto. Ou o inevitável - previsto. Ou ainda sobre o evitável – imprevisto.


Riu. Concluiu. Foi tão somente uma discordância de tempo. Ou de espaço. Só isso. Nada tinha que ver com a véspera. Ou com o programado. Com a tal lanterninha – começou a organizar o dia seguinte. Agora com algumas novas adequações.


E foi dormir. Sem maiores nem menores - reflexões. 


 


Julho 23 2009

 

Acordou com uma nova sensação. Não diria estranha por que não temera. Mas diferente.

 

Nem bem abriu os olhos e já entendia o dia que se iniciava. Enxergou o dia muito mais que o dia já a enxergava. Ainda não se tinham olhado frente a frente. Estavam seguindo nos subterfúgios da noite disfarçada. Uma troca de faltas por excessos. Ou ao contrário. O dia requeria calma. Para ser vivido. Mas vai lá saber por que – já sabia disso antes.   

 

O brilho entrava por baixo de uma porta. E pelas frestas da outra porta. Compreendeu. O sol se fazia forte.

 

Junto com o despertar um súbito pensar. Duas palavras. E tudo isso antes de levantar. Antes de por o primeiro pé no chão. Antes sequer de imaginar colocar o segundo pé no chão. Ate riu quando pensou nisso. É verdade.

 

Começo é colocar os dois pés no chão. Parece um chiste á toa. Mas não é.

 

Condescendência amorosa. Estas eram as duas palavras. Sob a luz da manhã.

 

Lembrou da avó da amiga. Ela sempre avisava.  O sol sempre cria a possibilidade da sombra, menina, o sol sempre cria a possibilidade da sombra.

 

Entendeu bem a avó.

 

Mas coragem. Pôs os dois pés no chão.

 

Se sentiu como uma caricatura de si mesma. Ali. Ao lado da cama. Olhando a fresta da luz e de pé. Até olhou para os pés. Em outros tempos voltaria para a cama e começaria tudo de novo. Agora não. Enfrentou. Lá se foi com seu pé ordenando e obedecendo. A caminhada.

 

Saiu do quarto.

 

O céu estava de um tom de azul quase artificial. Intenso. Lindo. Um leve ventinho frio ainda se despedia da madrugada. O sol brilhava no alto. Foi até a varanda. Fez um gesto casual. Os passarinhos na sacada – saíram.

 

Casualidade permite leituras bem particulares.

 

As duas palavras não escapavam. Firmes. Condescendência amorosa.

 

Vai lá saber por que desceu as escadas correndo. Olhou o mundo em volta. E deu inicio ao programado. Pratinhos. Talheres. Toalhas. Bandejas. Até incenso. Foi fazendo na sequencia. Para que escapasse o mínimo. E todos se sentissem privilegiados. Dentro do seu estilo. Dentro do seu festejo.

 

Tudo marcado para o final da tarde. Para uma múltipla celebração. Todos felizes.
Ele com o sucesso já invadindo as portas recém abertas. Uma consequência do trabalho ético e árduo.
Ele tinha sido promovido na semana. Uma consequência da dedicação e responsabilidade.
E ele estava com os limites orgânicos se restabelecendo. Uma consequência da persistência e confiança.

 

E todos com um fio condutor em comum. A vida. Quase como uma poesia.

 

Se sentiu como numa platéia. Participante entusiasmada deste mundo em organização. Até se viu aplaudindo e dando vivas.

 

Telefonou para ele. Houve um pequeno mal entendido. Acertou meio que às pressas.
Telefonou para o outro. Novo pequeno mal entendido. Emendou o mais rápido que pode.

 

Riu. Até riu mesmo. Já estava tomando proporções maiores. Melhor não falar com o terceiro. A esta altura já se sentia numa maratona de palavras. E erradas - lógico. Como se em saltos com vara. Fora do risco permitido. Desistiu.

 

Achou melhor cuidar das tarefas braçais. Com dedicação. Com parcimônia. Com sobriedade. E dentro do que elas representavam. Sem buscas pela intelectualidade. Sem esforços analíticos. Sem digressão filosófica. Assim ela me disse. Assim ele falou. Assim você se comportou. Nada disso. Não era o momento.

 

Encerradas as tarefas – sentou. Sob o sol. Não viu a própria sombra. Nem tampouco procurou. Recostou numa cadeira. Com total tranquilidade.

 

Achou dentro de si o que procurava fora. Concluiu. É algo sempre solicitado. Mas pouco disponibilizado. E vira um-sem-fim-de-queixumes. Afastou esta frase inteira. Apagou hífens. Retirou as ligações. Os plurais. Os infinitesimais.

 

Deixou – simplesmente - que o sol esquentasse a pele. Sorriu. E aguardou. Aguardou a chegada deles. Para a celebração.

 

Estava feliz. Muito feliz.

 

Com toda a condescendência amorosa o vento balançava - com suavidade - a toalhinha branca sobre a mesa posta.

 

 


Julho 16 2009

 

Os anos passaram mesmo.

 

Ela nem se dera conta. Termo exato. Não contara o tempo. Os dias. As mudanças das estações. Não deu importância. Nem ao calendário lunar. Só ao que somasse ou multiplicasse. Esta uma forma segura. Ou uma tentativa bizarra. De não angustiar - pelo que não tem. Olhando apenas - para o que tem. Estava se sentindo adequada. Aprendera algo. Aprendera a seguir com os dias. Para a frente.

 

Se escolhera disfarçar a falta - nada melhor que viver de somar. E lá se ia.

 

Somava roteiros. Descobertas. Novidades. Até nomes de ruas.

Mas não é bem assim. Dias também se contam para trás. Porque são particulares. E cada um tem seu próprio calendário. Seu gregoriano de plantão. Como uma emergência providencial.

 

Ao abrir da porta - teve uma sensação estranha. Como se tivesse estado desmemoriada. Ou em estado de esquecimento. Durante muito tempo. Naquele momento se deu conta. Do tempo.

 

Estava bem mais atrás. Quando ela deu a ordem de saída. Seguiu a fila. Ainda no mesmo estado. Caminhava lenta. Compassada. Com olhar de rotina. Sem alardes. Sem manifestações. Não deu para negar um detalhe. Mínimo. Um súbito frio que escolhera o estômago. Dela. Como um posseiro. Impulsivo. Aqui vou estar.

 

Ela desconsiderou. Deveria ser o cansaço.

 

Chegou à porta. Diante da escada. Entendeu uma frase banal. Da tal luz no fim do túnel. Nunca viu tanta similaridade. E entendeu o tal friozinho posseiro.

 

Primeiro o cheiro.

 

O cheiro de mar. De maresia. De berço. De sereia. De fartura. Respirou forte. Como para despertar um sentido até já esquecido.

 

Naquele momento importava respirar. Respirar. Como o primeiro dos atos. Como o primeiro dos instintos. Lembrou de tudo. De tantos. De todos. De teorias. Isso numa única inspiração.

 

Até fechou os olhos. Os sentidos exigem – muitas vezes – privilégios. Concedeu.

 

Deu mais um passo. Sentiu a luz. Uma luz forte. Mas calma. Encheu todo o espaço. Os olhos não demoraram a se acostumar. Mas demoraram a acreditar. Como tinham conseguido compreender.  A distância da luz. E por tanto tempo.

 

Descendo a escada sentiu o calor. Na pele. Nos cabelos. Como um abraço. O calor contornava o corpo como uma manobra de revitalização. Emoldurando, despertava. Como uma aura festiva. Assim sentia.

 

Pareceu escutar um bem vinda.

 

Cercada pelo cheiro. Pela luz. Pelo calor. Decodificado todos os sinais. Na emoção. No corpo. Concluiu. Estou aqui. Como se a memória só naquele momento estivesse despertado. E aberto as suas gavetinhas. Expondo fotos. Marcas. Traços. A própria história. Desde sempre.

 

Obedeceu. Agradeceu.

 

Foi seguindo o percurso estabelecido. De vez em quando até fechava os olhos para sentir mais forte o cheiro. Depois abria os olhos com muito cuidado.

 

Como se assim pudesse separar cor por cor. Com lentidão. Para que nada escapasse. Ficara tomada de egoísmo. Egoísmo pelo puro prazer de quem retorna. Não sabia se havia esquecido aquela intensidade das cores. Ou se havia se defendido – acinzentando a tal intensidade daquelas cores. Tantas vezes o que parece - não é o que parece.

 

É muito mais fácil viver o prisma inteiro que um único ângulo.

 

Escutou sotaques. Regionalismos. Palavras que nunca mais dissera. Comportamentos que nunca mais tivera.

 

Recostou no carro. A cabeça um pouco para trás. E assim ficou. O tempo que o percurso durou. Virando com vagar para mais um detalhe. Ou para saber das ausências. Das mudanças. Das descrenças.

 

Foi retomando seu registro. Entendendo a própria presença. Se incluindo no estilo. Se re-compondo. Poderia sentir. Dizer. Repetir. Escutar. Sou daqui.

 

Olhou para todos os lados. Para todos os espaços. E respirou - tranqüila.

 

Por um período - estava de volta. Apertou forte a mão dele na dela. Sorriu.

 

 

 


Julho 03 2009


 

Nasci de frente pro mar
sigo as marés
altos baixos
perigo risco
barulho viração
eterno movimento
sem esperar
procuro alcançar
como as ondas
a areia
construo destruo
altero renovo
anuncio denuncio

exponho.


Quem sabe
tivesse eu nascido
de frente pro lago
seria calma serena
silenciosa
a esperar alguém afoito
uma pedrinha jogar
para me mover
em círculos lentos
até suavemente sumirem
e voltar a ser parada
cercada imóvel
plana
espelho
só refletir o que está fora
esconder o que está dentro.

 

 


Blog de Crônicas - situações do cotidiano vistas pelo olhar crítico, mas relatadas com toda a emoção que o cotidiano - disfarçadamente - injeta em cada um de nós.
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