A semana fora toda complicada. Aguardava o resultado. Não conseguia se concentrar.
E o que mais queria era se concentrar. Para esquecer que aguardava o resultado. Mas não havia jeito. Nem bem dava uma pequena tarefa por encerrada e lá vinha o pensamento. Melhor dizendo – uma cachoeira de pensamentos. Lembrou até do nome daquele filme. Sim. Uma torrente.
Mil teorias. Mil planos. Mil contradições. Não faltou o inevitável por que eu.
Entre raiva e condescendência. De si. Dos outros. Lembrou do russo. Mas não cometera crime algum. Mas também sabia. Crime nem sempre tem objeto e objetivo explícito. Em geral é implícito mesmo. E mesmo assim é crime. Se irritou com o russo.
Nunca imaginara. Que uma resposta provocasse tanta aflição. Aliás - não a resposta. A falta dela. Estava difícil conviver com a falta dela. Da resposta.
Queria comiseração.
Nem bem formulou este pensamento e já o retirou da lista. Nada mais triste que um olhar de comiseração. Receber esse olhar. Ler no outro a sua situação. Esse olhar só é maravilhoso quando não se precisa dele. Ai sim. É perfeito. Dá até para inclinar a cabeça. Uma quedinha para afagos. Fazer ar de mais comiseração.
Com motivo, não. É diferente. E divergente. Fica-se ainda mais destituída. Mais desorientada. Empobrecida de valor próprio. Doeria muito mais. Não brincaria com isso. Até se sentiu desanimada.
Ainda tinha uma outra questão. Quem iria buscar. O resultado. Ela sozinha. Ou solicitaria companhia. Mas quem escolheria. Ele ficaria muito tenso. E nem contara a ele. Como poderia falar assim. Vamos lá. Vamos juntos. Ele nada sabia. Não seria saudável. Detestou esta palavra. Ela era amiga, mas muito delicada. Ela também era muito ansiosa. E ela própria não gostava de se expor. Entendia que exposição só quando se está sob controle. Caso contrário dá mesmo é em muito caso contrário.
Ótimo. Grande idéia. Mandaria um moto boy. Do moto boy até riu.
Imaginou ele chegando. Trazendo o envelope. Ela já até derrubando o coitado. O capacete caindo. A moto despencada no chão. Ela arrancando o envelope das mãos dele. Ela abrindo. Se agarrando no pescoço dele.
Parava ai o pensamento. Se agarrando por que. Por que dera negativo. Ou porque dera positivo. E lá voltava ao pensamento número um.
Pior é não poder mandar acelerar o resultado. Quer dizer. Poder - podia.
Poderia se lamentar. Falar do excesso de angústia. Esbravejar. Falar alto. Chorar baixinho. Fazer uma verdadeira cena convincente. Mas onde se escondera a coragem. Ao menos isso aprendera. Coragem era algo evanescente. Aparecia e sumia numa rapidez além das medidas. Nem bem se sentia a presença, e ela já ia se ausentando.
Continuou trabalhando. Achava incrível ninguém perceber como ela estava agindo. Mudara alguns hábitos. Era um tal de água e cafezinho que pensou em pedir aumento – para pagar a conta da cantina. Só a mocinha da cantina deveria estar feliz. Nunca vendera tanto. Em tão pouco tempo. Enfim alguém estava feliz. Viva a mocinha da cantina.
Quase engasgou. Com o cafezinho. Notou que estava bebendo um gole de cada alternado. Café quente e água gelada. Viu isso pelo olhar da mocinha. Que discreta virou de lado. Foi mudar o canal da televisão. Procede.
O celular tocou. Escorregou da mão dela e caiu na latinha do lixo.
A colega olhou para ela e riu. Solta. Leve. Olhou o riso dela e pensou.
Suspendeu o pensamento. Melhor deixar assim. Sem pensamentos. Achou o celular entre os papeis. Ainda tocava.
Atendeu. Era de lá.
Pode vir buscar o resultado do exame, senhora. Claro, Já está pronto. Ele achou que quanto mais rápido melhor. Não, senhora. Não abro exames. Desculpe. Também não perguntei. A senhora virá buscar hoje ainda. Certo. Estarei aqui sim.
Vou sozinha. Pronto.
Decidiu pelo elevador. Era só uma escada. Mas achou que o elevador seria melhor. Teria companhia. Escada é solitária. Cada um sobe e desce e nem se olha. Só se afasta. Num elevador ninguém se afasta e se olha.
Achou que estava grave. Deveria já estar disseminado. E já no cérebro. Ninguém pensa tanta bobagem - tão rápido. Sorriu para a mocinha do elevador. Sorriu para todos no elevador.
Desceu. Entrou na sala. Disse o nome. Foram pegar o exame. Recebeu. Agradeceu.
Pelo jeito que falou até achou que falara em outro idioma. Um dialeto talvez. Nem ela mesma entendera o que dissera à mocinha. Sem importância. Ela lhe dera as costas. Atendia já outra pessoa.
Não abriu. Saiu. Optou pela escada. Não queria que ninguém a olhasse. E queria que se afastassem.
Era um momento daqueles de extrema solidão.
Abriu o resultado. No último degrau da escada. Já perto da saída. Estava escrito. Negativo. Negativo. Negativo.
Subiu a escada de volta. Desceu pelo elevador.
Queria agora que todos a olhassem. E não se afastassem.
Nunca mais se descuidaria por tanto tempo. Fez as pazes com o russo.
Nunca mais. Falou isso para a mocinha do elevador. Que a olhou sem nada entender. Mas sorriu.