Blog de Lêda Rezende

Janeiro 07 2010


A decisão foi ótima.

 

Sim. Café da manhã ao estilo oriental. Nada do habitual ocidental. Sem horários e sem tarefas. Maravilhoso. Um contraponto à realidade da rotina. Com o passaporte imaginário de turistas. Pelo menos esta a intenção.

 

Perfeito. Viva a Liberdade. E com a cidade esvaziada. Tudo bem mais fácil e bizarro. Como uma excursão dentro de casa. Mais ou menos assim. Vamos ver os contornos como dificilmente o fazemos. Rimos. A Filosofia realmente é dependente do nada-braçal. Assim ele arrematou o discurso.

 

Já acordamos comemorando a temperatura. Sem mangas compridas. Sem botas. Sem casacos. Uma verdadeira libertação. Ao menos de braços e pernas. Rimos e saímos.

 

Já na descida sentimos o ambiente modificado. A ladeira vazia. Só um ou outro passinho provocava eco. Muitas lojinhas abertas. Poucos visitantes lá dentro.

 

Descemos para o nosso percurso sobre trilhos.

 

Desta vez não estava lotado. Assentos vazios se dispunham como ofertas simbólicas. Em todos os espaços. Era um final de feriado prolongado. Por certo muitos haviam saído da cidade. Trocas se fizeram. Lotaram as estradas. Os aeroportos. Os caminhos de subida e descida. E deixaram os da rotina esvaziados. Procede.

 

Tudo se passou com a rapidez de um virar de cabeça. E invejei ferozmente os artistas plásticos. Um mínimo de dom. E poderia repassar toda uma emoção.

 

Por que aquela composição merecia uma tela.  Até um óleo sobre tela.

 

Ela parecia bem envelhecida. Muito mais que a cronologia. Sentada - diante de si mesma. Uma sacola preta – parecendo pesada - estava aos pés dela.

Talvez amparando mais do que amparada. Usava óculos de lentes mais espessas. Os cabelos iam até os ombros. Lisos. Desalinhados. Fios brancos cruzavam através de fios tingidos. Sem maquillage. Não parecia sofrer deste dito grande problema. A mal falada vaidade.

 

Vez ou outra arrumava a bolsa preta - também envelhecida – no colo.

 

Desconfiada talvez do clima - portava um cachecol. Leve no tecido - mas pesado na cor. Azul escuro. Caia sobre uma blusa branca com botões pretos. A saia preta se unia ao preto gasto dos sapatos. Assim estava ela. Sentada.  

A expressão era misteriosa. Não sei se feliz. Se preocupada. Ou se até ausente em pensamento. Apenas estava sentada. E cuidava dos poucos pertences. Mas também de forma algo displicente. Não parecia cuidadosa. Nem consigo mesma. Nem com os objetos.

 

Ele estava sentadinho ao lado dela. Deveria ter talvez oito anos. Magrinho. Cabelos castanhos cortado bem curtinhos. Mas que não impedia que uma franjinha de raros fios lhe caísse pela testa. Talvez ainda não conhecesse a prudência da desconfiança. Estava com uma bermudinha vermelha. Uma camisetinha de mangas curtas branca. Um tênis. Meias curtas branquinhas.

 

Foi um instante especial.

 

Ele olhava em frente. Caladinho. Mas notei que ergueu um pouco os olhinhos. Como se uma lembrança boa o tivesse visitado. Um possível pensamento surpresa. Naquele especial instante.

 

Abriu mais os olhos. Acomodou-se melhor no assento. Virou-se para ela. Que continuava olhando para frente. Mesmo que na frente nada pudesse ver. Só uma janelinha que passeava pelo percurso escuro.

 

Mas ele a olhou. Deu um sorriso leve. Sorriso de criança. Feliz.

 

Passou o braço por dentro do braço dela. Se amparou um pouco. Fez uma expressão especial. Um sorriso. Um meio sorriso. Não sei. Como se a proteção do mundo estivesse definida. Ali. Com seu pequeno bracinho por entre o braço dela. Com a cabeça encostada nela. Numa diagonal de afeto encontrado.

 

De repente foi como se o mundo tivesse uma nova rotação. De paz. De tranqüilidade absoluta. De segurança. Impossível descrever em palavras uma emoção. Lembrei até o poeta. Ele estava certo. As verdadeiras emoções ocorrem em um terreno onde uma palavra jamais pisou.

 

Não sei se a palavra foi antes. Ou se viria depois. Ou se poderia ser dispensada. Nem importa.

 

Mas não lembro ter visto nada parecido. Com a expressão dele. Com o gesto do abraço lateral. Confiante no ombro certo. Sim. Tudo ali parecia certo. Perfeitamente certo.

 

E se há uma avaliação isenta de erros – é a avaliação da infância. Ao menos enquanto a infância é infância.

 

Ela parecia ter voltado. Olhou para ele. Deu um sorriso leve enquanto cedia o braço. E também se aconchegou. Já não dava mais para saber quem se sentia seguro com quem. De onde vinha o amparo.

 

Nossa parada chegou.  Antes da deles. Mas não resisti. Olhei para trás. Ela parecia rejuvenescida de repente. A atitude descuidada se modificara. Estava agora em parceria. Talvez assim reconhecida.

 

Sorri para ele. Que me devolveu o riso. Olhou mais uma vez para ela.

Apertou mais ainda o braço. Parecia orgulhoso. E ela parecia feliz.

 

Desci dispensando o tal passaporte imaginário de turista. 

 

 


Dezembro 27 2009

 

Já estava pronta para sair.

 

De repente notou uma luzinha vermelha. Piscando. Pela fresta da bolsa. Por certo um recadinho. Resolveu ler de uma vez.

 

Estava lá. Escrito. Hoje foi suspenso o atendimento. Teve um problema com os computadores. Uma falha técnica mais complicada. Outro com a luz. Não precisa vir. Será feito um re-agendamento parcializado.

 

Atendimento suspenso. Re-agendamento parcializado.  Achou o máximo.

 

Comparou a uma figura de linguagem. Ou a uma obra literária.

 

Mas quase pulou. Primeiro de susto. Era a primeira vez na vida que fazia um pedido e acontecia. Literalmente. Inacreditável.

 

Acordara com sono. Como sempre. Daí pensou. Bem que hoje podia ser cancelado o atendimento.  E eu poderia dormir mais um pouco. Mas imagina. Se me aconteceria uma maravilha desta. Nunca. Acelerou e foi cuidar de obedecer as ordens do relógio. Cruel objeto. Pensou entre os dentes. Mas prosseguiu.

 

Mal acabou de ler o recadinho - se auto-conferiu.

 

Checou – estava viva.  Correu para um espelho. Deveria estar iluminada. Não estava. O espelho mostrou o habitual. Optou por reler o recadinho. Vai ver fora uma alucinação. Não foi. Lá estava.

 

Que belo recadinho. Que lindíssimo texto. Desdenhou dos poetas. Nenhum faria uma composição tão emocionante quanto aquela. Riu. Riu de novo.

 

Tudo bem. Pediu perdão aos poetas. Por precaução. Vai ver que os deuses que cuidem deles poderia se aborrecer. Não queria mais surpresas. Aquela estava já perfeita.

 

Pensou. Fosse a Idade Média e já sabia onde iria parar. Mas não era. Pelo menos a da cronologia da Humanidade. Idade Média só a dela. Particular. Riu dessa bobagem também.

 

Se primeiro quase pulou de susto – de segundo pulou de alegria.

 

Olhou para a bolsa com o material. Para os papéis. Para a roupa que vestia. Em especial para o relógio no braço. E se despediu. Deles. De todos estes – adereços.

 

Mas se o pedido foi atendido – a vontade vinculada foi descartada.

 

Que dormir que nada. O sono foi-se como mágica. Deveria ser isso. Era o Dia da Magia. Ela que não tinha conhecimento. Riu de si mesma de novo. Estava se sentindo já uma humorista. De primeira categoria.

 

Mas enfim – dormir seria desdenhar do pedido inicial. Jamais faria isso. Poderia ser visto como um menosprezo. Estava com muito zelo em relação aos deuses amigos. Mais uma vez riu.

 

Despiu-se da proposta inicial e vestiu-se da adquirida. Sim. Iria à praia. Desceria a serra. E iria ver o mar.

 

Perfeito. Idéia de gênio. Foi mais uma vez se olhar no espelho. Deveria estar iluminada mesmo. Riu para o refletido. Que devolveu à altura.

 

Quando se compreendeu – já estava lá.

 

Em pé na areia. Diante do seu tão amado mar. Pontinhos prateados aqui e ali brilhavam na água docemente salgada. Faziam quase um cortejo de pequenas luzes. Lindo.

 

Algumas mesinhas de cimento ficavam na areia. Com banquinhos em volta. Escolheu um deles e sentou. Para uma alegria tão grande - alguns rituais.

 

Ficou um tempo apenas olhando. Brincava com a chave do carro entre os dedos. Deixou que o sol escolhesse os pontos da pele que iria tocar.

 

Depois com muita calma foi em direção à água. Estava morna. Pequenas ondinhas deixavam a espuma branquinha na borda. Que sumiam com delicadeza.

 

Mergulhou. Pulou. Brincou. Jogou água para cima. Para baixo. Riu. Viva o Dia da Magia.

 

Lembrou o tempo em que seguia as definições do mestre austríaco. Mas desta vez se colocou mais à parte. Nada de passagem ao ato. Como o mestre definia atitudes intempestivas.

 

Fez o habitual brinde e – rindo - informou. Para o Universo. Que me perdoe o Mestre. Mas este foi Além do Princípio do Prazer. E muito além dos Atos Falhos. Sem Homem dos Lobos.  Sem Totem ou Tabu. E principalmente sem Perturbações Psicogênicas da Visão.

 

Este foi um verdadeiro Ato de Passagem. Passagem feliz. Até o mar. Diante do mar. Num dia em que um erro da tecnologia cedeu espaço à realização plena de uma fantasia.

 

Foi a vez do impossível vencer o possível. E mergulhou – mais uma vez.

 

Voltou no começo da tarde - muito feliz. 

 

Amanhã retomarei a tal agenda parcializada. Perfeito. 

 

 


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