Blog de Lêda Rezende

Janeiro 16 2010

 

Tomei a decisão de uma sentada só. Vou sim. Vou fazer uma reforma radical. Facial.

 

Indicaram um cirurgião, daqueles que só se vê em cinema, quero dizer, que são para as atrizes de cinema. Famoso. Excelente. Respeitado. Acho que até condecorado. 

Coragem. Agendei.


Lá estava eu sentadinha na sala de espera. Tinha planejado ir bem arrumada, salto alto, blazer, tudo que dá o toque mágico e acesso direto para sentar num lugar daqueles.


Não deu certo. O trânsito emperrou, o tempo voou e lá se fui do jeito que estava trabalhando. Com a realidade explicitamente estampada na face e na roupa.


Após me identificar arrumei um lugarzinho mais discreto a aguardar o chamado.

Já me senti - de imediato - diante de um possível chamado divino. era de maravilhar a imponência do lugar. Melhor até dizer Lugar. Ali nada cabia em minúscula. E quase ri quando pensei nisso.


De repente - em minha direção - veio uma mulher alta. Formas voluptuosas - como diriam os italianos caso a vissem. Usava uma calça justa preta. Botas de salto alto. Blusa também preta e curta - com um decote que ratificava a correção do meu pensamento anterior. Nada ali era para ser citado em minúsculo.


Olhei para ela enquanto ela escolhia um lugar, digo, Lugar. E escolheu bem ao meu lado.

 

Pensei cá comigo: mas com tanto espaço por que eu teria que servir de contraste. Mas tudo bem . Passou. Foi só um pensamento fugidio.


Aliás - eu deveria ter agido igual ao pensamento e ser eu a fugidia. Muito mais me esperava.

 

Ao meu lado sentou-se a enfim a tal mulher alta. Os cabelos longos eram enfeitados com alguns fios cobre. Uma farta franja recobria-lhe a testa.

 

Mas - eis que mudou de idéia. Levantou-se e foi até uma maquina de cafezinho. Não - foi engano. Voltou.

 

Era um novo tipo de mulher. Mulher atual. Lábios grossos – preenchidos. Glúteos erguidos – reforçados. Peitos mais erguidos ainda – complementados. Pele facial hirta – paralisada.


Atendeu o celular. Notei que havia um esgar lateral mais forte do lado direito. Ela se esforçava - acho eu - na adaptação do novo e provavelmente invejado preenchimento labial.

 

Fosse a minha avó viva chamaria logo de beiçola e estava resolvido o assunto. Mas esta palavra também não cabia num Lugar como aquele.


Percebi que ela me olhou e olhou para o outro lado dela. Daí notei que tinha uma outra mulher sentada. Esta sim - com proporções bem expansivas. Sem nenhuma avareza em termos de dobras por sobre a calça que usava. Tentava disfarçar com uma blusa preta e mais solta. Mas o tecido foi mais avaro que as formas - e muito ficou exposto.

 

Parecia um pouco tranqüila. Até quando olhou para a mulher de cabelos com fios de cobre e em maiúsculas distribuidas pelo corpo. Dai modificou a expressão. E tentou se acomodar melhor na cadeira. Me pareceu que queria sumir. Difícil.

 

A mulher dos cabelos de cobre que minha avó teria praticado a desfeita terminológica, após olhar para um lado e outro, (entenda-se a moça das sobras de um lado e eu que era só faltas do outro) deu um sorriso tranqüilo e feliz. Estava maravilhosa.

 

Sentada - com a coluna ereta - desconsiderou um encosto bem acolchoado do sofá de couro e abriu um livro. Vi o titulo. Procedia.

 

Olhei para a minha frente. Lá estava sentada uma outra moça magrinha. Tinha o rosto recoberto por uma pasta branca. Pensei. Esta será responsável por muitas noites minhas de insônia. Me auto-recriminei. Não se faz assim com quem está muito mais disposto que exposto. Ou vice-versa.


Escutei meu nome.


Era chegada a minha vez. Uma mocinha sorridente me orientava o caminho. Lembrei da letra de uma música antiga. Algo como “talvez a derradeira noite de luar”. Pensei tudo isso em segundos. Subi as escadas e fui atender ao tal chamado divino que até meu nome já sabia.

 

Diante deste novo Deus, que modifica o que o outro insistiu em fazer, e que recria sem quebrar costelas nem multiplicar pães, me sentei. Falei o que me incomodava.

 

Modesta eu.


Porque ele foi rápido. E apontou - olhando o meu rosto. E com a avidez de um tomógrafo. E parecendo pasmo com a minha modéstia foi perguntando. E ali, e lá e mais aquilo e mais isso não lhe incomodam.

 

Me vi diante de um rosto que não podia ser o meu. Não me vi diante porque sequer me arrisquei a me olhar. Melhor dizer que me imaginei.

 

Levantou. Eu o segui com o olhar. Era alto, elegante. Mas o que mais me chamou a atenção foram os sapatos. Belos. Só me distrai dos sapatos porque notei a testa. Fronte lisa. Como se diria isso em latim - pensei. Porque a testa dele merecia uma citação em Latim. Ou Grego. Na impossibilidade desta tradução me contive e me detive. Ou me abstive de qualquer comentário.

 

Não importa. Importa que - apenas com o olhar - ele já havia me desfeito e me refeito. E eu mal me sentara diante dele.

 

Foi incisivo. Nada de cosméticos mais resolveria. Ousei citar um outro método também utilizado. Quase riu.

 

De nada adiantaria. Era cirúrgica a questão. E nada de poupar áreas. Todas estavam comprometidas. E muito. A gravidade cumprira muito bem seu propósito. Teria salvação. Mas só com a reconstrução.


Pegou um papel, fez contas. Anotou números. E me entregou. E me deu um conselho. Passe a noite olhando para o seu rosto.


Olhei para o dele. Olhei para os olhos. Para a testa sem citação em Latim nem Grego. Para os sapatos dei só uma passadinha de leve. E respondi.

Se passar noite olhando para o meu rosto - pela manhã troco de especialista. Procuro um psiquiatra.


Agradeci. Sorri. Desci. Olhei a sala. Os pacientes.


Era um novo planeta. Um novo Deus. Criador e criaturas ao alcance de um papel com números.

 

Este dava um papelzinho com números. O Outro podia até ter errado - mas ao menos não me deu um papelzinho. Talvez mais sábio. Vai lá saber o que pode fazer um insatisfeito.


Decidi. Ainda não. Por enquanto vou ficar no mesmo planeta. Vou recorrer as alternativas. Lembrei da amiga que me disse um dia que eu adoro alternativas. Estava certa. Está certa.


Quem sabe daqui a alguns anos - se a gravidade me permitir ao menos enxergar.

 

Sorri.


Joguei o papel fora e voltei para casa.

 

Não sei se triste, resignada ou feliz. É preciso um tempo maior que uma noite para se saber. Mas - pelo menos - voltei sem a tal aconselhada tarefa noturna.


Brindei às habituais.

 

 

publicado por Lêda Rezende às 10:23

Dezembro 25 2009

 

Não há um só dia que não nos encontremos.

 

Os cumprimentos são rápidos e risonhos. Assim. De forma despretensiosa. E superficial. Ele sempre apressado. Eu sempre apressada. São muitos os horários a serem cumpridos. E muito mais agendas a serem atendidas.

 

Ele com um caminhar mais pesado. Mas sempre uma expressão alegre. O riso fácil emoldura os fortes traços orientais. Um sotaque marcado ainda denuncia a imigração não muito longínqua. 

 

Assim nos falávamos. Entre uma subida ou descida de escada. Os elevadores demoram muito. O jeito é caminhar. Ele sempre acrescentava. Faz bem à saúde. Este o máximo de diálogo.

 

Mas nesse dia falamos mais um pouco. Além das escadas. E dos cumprimentos superficiais.

 

Surgiu uma oportunidade. Um mesmo percurso. E lá fomos contando um pouco dos pontos biográficos. Ao menos os que pareciam mais destacados.  

 

Viera de muito longe. De uma travessia quase igual ao sol.

 

Começou pelo avô. O avô era como um personagem de um livro. Era o sábio da aldeia. Respeitado e reverenciado. Jovens e idosos de todas as idades o consultavam. Indicava poções ou dava conselhos.

 

Era um velhinho calmo. De olhar tranquilo. Mas de profundo conhecimento dos riscos do corpo mal compreendido – sob o peso da alma mal entendida. Enxergava a possibilidade da cura como uma exclusiva ação de equilíbrio entre os dois.   

 

Observara o avô - por toda a infância. Morara lá até os doze anos de idade.

 

Um dia o pai o avisara. Vamos nos mudar. Para lá. Será melhor para todos nós. Vou primeiro. Depois mando buscá-los.

 

Um ano depois estava se despedindo. Do avô. Deu-lhe - triste - o que seria de fato o último abraço. Dos amigos. Dos hábitos. Dos cheiros. Da terra. Até dos risos.

 

A mãe embalara o que tinha de importante. Privilegiou fotos e quadrinhos da casa. Entre roupas e sapatos abrigou o mais que pode da própria história.

 

Lembra dela entregando a chave da casa a um novo proprietário. Mas trancando ela mesma a porta – antes de entregar. Notou um tremor discreto das mãos dela.

 

Ele veio tão assustado que lembra a dor que sentia ao respirar. Nunca escutara falar deste país. Nem sabia em que lado da Geografia deveria olhar.

 

E nem olhou.

 

Aprendeu logo depois que as distâncias não são bem explicadas nos mapas.   

 

Nesta parte do relato riu. Um riso triste. No terceiro dia que aqui chegou – estava matriculado e frequentando uma escola pública.

 

Não sabia o idioma. Não entendia as brincadeiras dos colegas. Não compreendia as ordens dadas. Entrou em uma fase de silêncio profundo.

 

Talvez gestante de si mesmo. Nem em casa falava. E durante esse período teve um aprendizado especial.  Aprendeu a ler as expressões. Podia não entender o que falavam. Ou os chistes em volta dele. Mas já sabia ler muito bem as pequenas maldades e criticas negativas. Pela forma do olhar – sabia o pensamento de cada um.

 

Até hoje é grato a ela - uma professora. Talvez o tenha ajudado a nascer de si mesmo. Ficava com ele após as aulas. Todos os dias. Tentava ensinar um pouco mais. Os sons das letras. A forma de melhorar o sotaque. As rotinas da cidade. A compreensão de fusos e latitudes.

 

Não tinha o avô sábio por perto. Mas tinha uma sábia professora ao lado. Se sentiu mais tranqüilo.

 

Trinta e cinco anos se passaram. Desde aquele terceiro dia de imigrante. E primeiro dia de aula.

 

Em meio a esse tempo um diploma lhe foi entregue. Contou-me que escolheu esta especialidade por um motivo simples. A forma de se referir por si só já é bela. Dar a luz. A maioria vai até lá feliz. E de lá sai mais feliz ainda.

 

Até hoje se emociona com os nascimentos. E se encanta diante do tal milagre da vida. Quando dá algum conselho – lembra do avô. E se esforça para ensinar o equilíbrio.

 

Mas fez uma espécie de aspas na conversa.

 

Contou. Logo que se graduou – fez questão de retornar. Passaria lá um mês. Entre os seus de origem. Reconheceria o que deixara para trás. Apertaria as mãos dos amigos. Resgataria os hábitos. Sentiria os cheiros. Tocaria na terra. Esbanjaria os risos. Reveria os códigos.

 

Foi assim que aprendeu que as distâncias não são bem explicadas - nos mapas.

 

Viu-se estrangeiro. De lá. Concluiu com certa nostalgia. Ali não mais pertencia. Era um visitante – em desacordo. Voltou - sete quilos mais magro. Doente e em desequilíbrio - a alma e o corpo.

 

Entrou em sua casa do lado de cá. Sentou-se na primeira cadeira que encontrou. Deitou as malas no chão. Olhou em volta. Mais do que a captura de si mesmo - estava feito a sua re-integração. Talvez pela primeira vez na vida tenha compreendido as palavras do avô.

 

Recuperou rápido peso e saúde. E desta vez não esperou o terceiro dia. No dia seguinte já estava exercendo a sua função escolhida. Sorridente. Adequado. Com sotaque ainda marcado - mas com chistes compartilhados.

 

Nos despedimos com um até breve.

 

Entendi um pouco mais - o amplo milagre da Vida. Desde um avô que nunca conheci aos riscos no mapa - aprendi que uma história se compõe sempre além de si mesma.

 

Lembrei da frase. E a palavra uma vez lançada voa irrevogável.         

 

Procede.

 



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