Trabalhar em Hospital como Pediatra da Emergência nos abre um mundo onde todas as possibilidades são viáveis.
Todos os pensamentos, por mais absurdos e sonhadores que possam parecer, sempre acabam minimizados diante da realidade criativa de um paciente ou de acompanhantes de paciente de Pronto Socorro!
Num plantão de 12 horas, que começa das 7h da manhã e vai até as 7h da noite, ao final do dia não tem médico que já não esteja esgotado e torcendo para que nada de mais grave dê entrada pela porta de vai-e-vem que dá acesso à sala de emergência.
Mas ...qual o que! É justamente no final do dia que tudo se avoluma. E a tal porta nem bem vai, já vem!
É sempre nos últimos minutos do segundo tempo, como diria um bom apreciador dos esportes, que lá se vem a porta.
E eis uma família composta por pai e mãe, uma ajudante babá, e um bebê de 2 aninhos de idade.
Todos reswidentes numa casa de dois andares comunicados através de uma escada que desemboca, digamos assim, na sala de estar.
Os adultos - auxiliados por um decorador - decidem fazer uma decoração extravagante em sua sala de estar.
Na lateral da escada colocam uma enorme pedra, sabe-se lá com que intuito decorativo. Talvez fingir que se vive numa montanha? Fingir que é a Idade da Pedra? Afastar maus olhados? Desconfortar visitantes indesejados sugerindo que nela – na pedra – se acomodem? Difícil saber a intenção.
Ou teria ele – o decorador - o nome de Herodes e estava praticando sua atividade profissional disfarçadamente?
Enfim, não se sabe nem se soube ao certo. O fato é que o bebê decide ele mesmo, por sua conta e autoria, descer as escadas sozinho. Sozinho no ato como o foi na decisão de descer.
E desce. Quase conseguindo quando, de repente, escorrega nos três últimos degraus. E cai. E bate a cabecinha onde? Na pedra. Sim, não tinha uma almofada. Ali, tinha uma pedra!
Um objeto inanimado de decoração. Aliás, um duro objeto inanimado de decoração.
E lá se pôs o bebê a chorar, expondo assim a sua dor, como protesto indignado do propósito desconhecido do tal decorador.
Cena seguinte: bem no final do plantão médico de 12 horas.
Todos da família da pedra, aflitos, invadem como avalanche a porta de vai-e-vem, se esbarrando na que vem e recebendo de volta a que vai. Atrapalhados a correr e a pedir ajuda.
O bebê, sacudido na correria, carregado de qualquer jeito, apenas observa.
Em meio ao “vôo com turbulência” que faz do colo do pai para o colo da mãe, ele mexe os olhinhos – tranqüilo. Talvez numa tentativa de decorar, não a sala da casa como os adultos já o fizeram, mas decorar na memória todos os cenários e falas à sua volta.
Os adultos tentam explicar o que aconteceu. Tentam explicar a pedra. A escada. O susto. A decisão mal informada do bebê. Tentam explicar.
Não conseguem se dar conta do inexplicável de um acidente evitável.
Com seu pequeno “galinho” na testa, já sem choro e sem grito, ele, o portador efetivo do trauma decorativo, observa este mundo tão cheio de atrativos e emoções dos adultos.
Desprotegido por certo pelo decorador, mas protegido com certeza absoluta pelos Anjos, ele tenta entender se aquilo é um festejo ou um desespero.
Aprende bem cedo que entre um e outro a linha é bem tênue. E quando vai fazer os exames específicos para resguardá-lo de algum risco, ri. Ri. Dobra a risadinha.
E todos acabam rindo também. Uns de alívio. Outros de cansaço. E ele, provavelmente e piedosamente, de todos.
Eram 7h da noite, fim de plantão da equipe do dia na Emergência Pediátrica.
Quem eram as crianças?