Blog de Lêda Rezende

Novembro 14 2009

 

Por muito tempo na Vida fingiu que não via.

 

Assim era ela. Sempre dava um jeito de escapar. Parecia uma sábia diante dos impedimentos. Se fosse para cortar o prazer – agia com rapidez. Não faltavam críticas. Sobravam observações. Análises. Sugestões. Tinha uma auto-referência. Era pragmática. Nada de muitos rodeios. Direto ao assunto era seu estilo mais suave.

 

Recobria-se de marcas. Incrível. A roupa tinha nome e sobrenome. As bolsas e relógios também. Todos com registro em cartório. Não usava um brinco que não portasse uma assinatura. Recobria-se de nomes. E escondia-se em meio deles. Às vezes parecia que a própria nomeação não a sustentava. Mas enfim.

 

Assim seguia seu caminho. Talvez fosse mais um atalho. Uma trilha. Não é tarefa fácil entender as esquinas escolhidas. E a cada virada- nem sempre é possível esquecer o rastro. De onde se saiu. Ao menos é o que parece. Ou parecia.

 

Vai lá saber por que nesse dia me fez tanto relato. Cedo. Bem cedo. Já foi encontrando e dizendo bom dia. E sem esperar a contra proposta – desatou a falar.

 

Chegara a uma conclusão. Não importa se as fantasias se excedem. Fantasias são feitas justamente para os excessos. Seja de credulidade, de ingenuidade, de credibilidade, de eternidade. Não importa. Como um perfume. A intensidade é forte - mas tem prazo.

 

De realidade passamos toda a vida. A somar. A prever. A desistir. A ocultar. A permitir. A ceder. Ocupa tanto tempo da vida útil e muitas vezes só se percebe isso muito tarde. Foi o que entendi esta semana. Até de amar também se pode brincar. Assim falou.

 

Sentei. Estava com a agenda completa. Mas decidi escutá-la um pouco mais.

 

Concordei. E fiz um breve comentário. Bem breve. Ela preferia falar a escutar. E foi para isso que me sentei. Para deixá-la falar. E escutá-la contar.

 

Mas optei pelo breve comentário. E disse. Tudo se pode – quando há o amplo entendimento da solidão que uma fantasia expõe. Só isso.

 

Ela fez uma expressão facial que eu chamaria de interessante. Este me parece um termo que melhor esclarece. O que em absoluto se entendeu.

 

Fez a tal expressão e desconsiderou o comentário. Continuou falando. A fantasia deixa de fora um detalhe – o compromisso com a veracidade. Não envolve maiores nem menores riscos. Não assusta. Nada exige. Só fica ali. Fazendo seu percurso mágico por entre sonhos, estrelas, mares jardins, luares.

 

Levantei. Não era tema para escutar com o olhar no relógio. Era intenso. Longo. Um possível tratado estava sendo construído. Ficou até complicado entender. Onde estavam as diferenças. Ou as semelhanças.

 

De repente sorriu e disse. Ele a nomeara de heroína. Desta vez interpretei a surpresa. Então tem um ele. Mais uma vez desconsiderou. Ele a nomeara de heroína por ser tão responsável pelo dia-a-dia. Somente as heroínas se preocupam com a rotina. Assim ele falou.

 

E ela não só adorou – como incorporou de imediato a personagem sugerida. Já foi logo se sentindo mártir. Faltou fogueira e forca para tanta bravura assimilada.

 

O denominou de – meu ópio. Quando o encontrava ficava viajando nas palavras dele.

 

Impossível perder a oportunidade. Eis uma bela e bizarra dupla. Heroína e ópio.

 

Surgiu aquele silêncio. Um hiato. Onde o riso ficou pendente.  Até se dar conta do chiste. E rir. Muito. Ficou quase entorpecida. Mais um pouco e se faria realidade.

 

Começava a apreender os efeitos que as palavras podem causar.

 

O momento se fez delicado. Parecia feliz. Não sei se plena de fantasia. Ou plena de realidade. Estava numa espécie de completude. Principalmente com ela mesma.

 

Nunca a escutara falar daquele jeito. Nunca exaltara uma parceria. Sempre vivera em torno de si e dos próprios fantasmas. Estes sim. Sabiam acatar as ordens. E a estes ela privilegiava autoridade.

 

Rimos. Respondi que precisava de um tempo para pensar. Para reconhecê-la.

 

Desta vez ela que interpretou a surpresa. Mas sou a mesma. Fantasias existem para que se permaneça do mesmo jeito. Fantasia é terreno fértil – para se ficar inalterado.

 

Nos despedimos. Antes de subir as escadas vi que fez o gesto habitual. Com os dedos – colocou os cabelos por trás da orelha.

 

Voltamos à rotina. Ela – a heroína. Eu – a desavisada.

 

E ambas – atrasadas.

 

 


Abril 08 2009

Desisti de evitar sustos. Nada resolve. Susto é parte integrante da vida. Só não toma quem já não faz mais parte dela. Ou o faz em outro nível. Mas nunca soube de algum relato. Se lá também se toma susto. Enfim. Susto é vida. Nada mais a acrescentar. Diriam os pragmáticos.

 

Fiquei assustada com a Palavra. Assim. Sem mais nem menos. Descobri o quanto a Palavra assusta. A congelada. A pretenciosa. A despretenciosa. A que tem entonação. Esta principalmente. Porque a entonação real é de quem escuta. De quem lê. Jamais de quem fala. Ou de quem escreve. Quem fala ou escreve está sempre do outro lado. Não sei qual. Mas de um outro lado.

 

Agora me lembrei dele. Tinha razão. Nada de colocar exclamação em poesia. Isso o outro quem faz. Correto. Corretíssimo. Quem escreve o faz à mercê. De quem lê. Isso faz da Palavra um objeto duplo. De desejo e de temor.  De quem gosta e de quem não gosta. Pode-se dar qualquer entonação. Pode-se até sentir proprietário da tal entonação. Mas nada. É coisa de locação. É dono só pela metade. Pela emissão.  A posse é realmente do outro. Pela omissão.

 

Há um poder em uma Palavra e em sua entonação. No ouvido alheio. Na estrutura alheia. Nas mágoas alheias. Pode dar em sim. Pode dar em não.  Pode até justificar um nunca pensei. Nem acreditei. Um apavoramento - estou pasma. Um extremo - estou saindo. Um chorado - adeus. Um aliviado - nunca mais. Um sorridente – adorei. Toda uma situação nova pode ser construída e reconstruída. E até muitos divãs preenchidos. De entonações. Se sobrepondo. Cada um jurando. Temendo. Se desculpando. Acusando.  Até sofrendo. Mas afirmando. O erro é do outro. A Palavra foi dita assim. E defender em causa própria. Não existe isso nas Palavras. Não existe causa própria.

 

Falam. Gritam. Num festival de entonações. Ninguém mais sabe quem falou.  Ou quem gritou. Nem por que. E acabam por desviar a atenção. Do objeto inicial. Como se a vida também corresse desta forma. Num estilo comissários-passageiros. No ar. Todos sempre tentando tirar um cinto da segurança. Para que possam correr atrás da Palavra sem segurança. Procede. É pela Palavra que surge a insegurança. Mas é nela que todos se seguram. Para se defender. Paradoxal e cruel.

 

Assim é a Língua. Feita para construir. Para compartilhar. Mas sempre presa naquela praga. Da torre mítica.

 

Nada a fazer. Com a Palavra mal soada. Ouvidos são – sempre -  egóicos.

 

Chorar não dá ritmo. Rir não dá bemol. Desconsiderar sim, pode dar em orquestra. Cada um e seu tom. Usando o seu instrumento da forma aprendida. Ensinada. Seguindo a sequência. Mas vai sempre acontecer um desafino. Um destoado. Mesmo que muito se ensaie. Nada poupa a Palavra dita. Não tem batuta que a oriente nas partituras da emoção. Nem dó de peito. Nem peito com dó. Cada um vai ter seu mestre. Sua maestria. Sua singularidade. Depositário das suas queixas. Das suas dores. Dos seus preconceitos. Das suas lembranças.

 

Lembro da minha avó. Não havia um dia que não repetisse. Pensa mais e fala menos, menina, pensa mais e fala menos. Sábia. Porque não há saída.

 

 A Palavra fica ali. Na ilusão de cada um. Do que foi claro - explícito. Do que restou dúvida – implícito.  Como se algo pudesse ser evitado. Se não hoje, se não amanhã. Dentro da complexa realização do que se diz. No até que a morte separe. Ou no que disse está dito. No eu falei primeiro. O que não faltam são frases falso-elucidativas. Palavra de honra.  Escreva o que digo.

 

Sem esquecer os mais crédulos. Avisam com voz segura. Entonação de força. Assino embaixo do que falou.

 

Nesta roda de letras se diferenciam homens e animais. Na natureza. Um tem a Palavra. Outro tem o instinto. Um a buscar “insatisfazer” as demandas. O outro a atender as necessidades. E cada um girando em volta da sobrevivência. Com ou sem Palavras. Como num grito de vôo com provérbios.

 

A Palavra sob Palavra. Como um pudor às avessas. E às pressas. Arriscada. Desafiada. Tentada. Com toda uma ética envolvida e constantemente burlada. Com gramática e sintaxe. Acentos e fórmulas. Por tudo isso – e para tudo isso - sempre surpreendente. Cercada de sustos e incoerências.

 

 


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