É uma época de riscos. E de perdas.
Isso sem dúvida. As noticias tristes se sucedem. Não adianta fingir que não está acontecendo. Está. É. Cada um com seu temor. Cada um se ausentando de uma socialização. Férias se prolongando. As ordens são de privacidade.
Que os grupos sociais se preservem – se dissolvendo. Esta a tentativa de evitar a propagação.
Fosse vivo o mestre surrealista – até ele se assustaria. A Idade Média contracenando com a Idade Contemporânea.
Ele chegou. Impossível passar despercebido.
Lindo. Cabelinho no corte moderno. Os fios na contradição da Gravidade. A queda da maçã em desafio por um punhadinho de gel. E ele todo orgulhoso da imagem. Perfeito.
A mãe segurava-lhe a mãozinha. Ele caminhava confiante. Pequenino – mas confiante. Tinha um jeitinho de feliz. Olhava com atenção em volta. Caminhava entre apressado e contido. Uma tossezinha atrapalhava os comentários que fazia. O vermelhinho do rosto denunciava uma temperatura fora do padrão. Mas parecia desconsiderar.
Ela veio. Conferiu a rotina da chegada. Escutou a história. A queixa da mãe. Os sintomas dele. Ele ficou sentadinho. Talvez esperando que o chamassem. Ou só exibidinho em sua arrumação. Vez por outra tocava nos cabelinhos eriçados. Verificava se a desordem estava em ordem. E abaixava as mãos - mais tranqüilo. Como se os próprios dedos valessem por um espelho. Mais uma vez - perfeito. Sábio até.
Ela veio. Sorriu para ele. Fez um comentário para a mãe. Colocou os dois sentados juntos no final da sala. Na última filinha de cadeiras. Só eles.
Fez para ele um gracejo. Depois foi colocando uma máscara. No rosto dele.
Informava com segurança na voz. Isso não dói. E - objetiva - amarrou os lacinhos da máscara por trás da cabecinha dele.
Foi um ato e um gritinho. Assim. Dupla geminada. Sincronismo absoluto.
Ele chorou.
Ela – surpresa - se assustou. Até se afastou um pouco. Demorou a entender.
Quando a dor não é física – fica-se com uma dificuldade maior ainda de mensuração. Ou de compreensão.
Mas ele continuou com seu protesto. Chorou alto. E disse com a voz filtrada pelo material sintético. Estou com medo disso. Desta máscara. Não quero. Quero ir embora. A mãe o acarinhou.
Alguém veio em direção a ele. Com voz calma. Explicou. Você agora é o super herói. Por isso está de máscara. Eles todos usam também. Está tão bonito assim. E nem sabemos mais quem é você agora. Igual a um super herói. Ninguém sabe quem é ele e nem o nome dele.
Falou nem tão perto – nem tão longe. Poderia dizer – reservada. Mas tentou assim consolar.
Esta foi uma das cenas que não se esquece.
Ele parou de chorar. Dava para ver os olhinhos dividindo o espaço com o tecido verde da máscara. Por cima do nariz. A sobrancelha erguidinha. Virou o rosto semi -coberto. E disse. Mesmo com a voz entrecortada. Não sou super herói. Mentira. Ela disse que estou doente. Por isso estou de máscara. Para que ninguém mais fique doente. Super herói não fica doente.
Alguns que escutaram – riram.
Lembrei do filósofo estudioso do riso. Tem razão. Só é cômico o que excede o trágico. Aquela cena era trágica. Pior ainda. Era também um paradoxo. Não tinha como ser resolvida. Tinha como ser acatada. São ordens. Foi o que ela falou. São cuidados necessários. Completou alguém duas filas à frente.
Falou ainda chorando. Manda pararem de me olhar.
Submetia-se a uma súbita exclusão. Cuidou da imagem antes de sair de casa. E justamente a imagem – o primeiro item a ser ocultado. Sugeriam ser um super herói. Mas o colocaram sentadinho - distante. Parecia ter um objeto que o escondia – mais se destacava exposto.
O olhar do outro que autoriza. Ou desautoriza. E isso ele sabia ler muito bem. Melhor que qualquer um. Escrevia seu texto como se a folha em branco só a ele pertencesse.
Só não sei se pior - ou melhor - do que o espelho.
Quando o chamaram pelo nome - olhou para a mãe. Ajustou melhor a máscara. Não passou a mão mais nos cabelinhos.
Com voz conformada perguntou: sou eu?