Olhei o relógio.
Pela diferença de fuso já é aniversário dela. Lá. Além mar.
Fiquei pensando o que dizer a ela. Como explicar em palavras escritas - toda a nossa cumplicidade. Como dar entonação à letra. Todos esses anos que participamos de nossos aniversários. E os outros tantos que deixamos de compartilhar a data.
Desde que ela se mudou para lá. Há muitos anos. Nunca mais parabéns para você de pertinho. Cantado. Abraçado. E que agora estou eu aqui. Lembrando. Saudando. Num silêncio de um teclado. Ou - na musicalidade que o teclado também permite. Como uma sinfonia particular. Onde o ritmo acelera ou acalma – de acordo com a emoção a ser descrita.Um Allegro e um pianissimo simultâneos.
Ultimamente está virando rotina. Comemorando de cá. E os aniversariantes de lá.
Ri. Impossível conter o riso. Festejo é assim. Sempre um riso vem conjugado. Um pretérito perfeito.
Lembrei a última vez. Ela estava aqui. Morávamos perto. A casa dela se preencheu de amigos. Ninguém sabe organizar uma festa do jeito dela. Prática. E linda. A festa. Ela também. Lógico.
E as comidas. Maravilhosas. Descobri que manga em cubinhos entrelaçada com couve refogada em tirinhas é quase um símbolo. Ou uma natureza bem viva. De prazerosa refeição. Nacionalista. Ingredientes combinados. Adequados ao paladar e à digestão. Perfeito.
E o bacalhau. A linha entre o espiritual e o material fica tão apagada.
E as sobremesas. Inesquecíveis.
Às vezes disfarçava. Burlava a confiabilidade alheia. Tudo que ela fazia era perfeito. Portanto podia transgredir. De vez em quando falsificava. E - de um bolo qualquer comprado – uma obra de arte surgia. E negava a receita. Coisas da minha mãe. Ela quem me ensinou. E ria da própria transgressão.
A mesa impecável. Toalhas lindas recebiam a louça delicada. Compunham uma vista alegre. As taças. Os vinhos. O champagne. Um banquete para os amigos queridos. E a energia afetiva a fazia parecer descansada. Como se num SPA estivesse toda a tarde. Para receber os convidados na noite.
E o riso - sempre feliz. E os braços - sempre acolhedores.
Lembro de uma vez em especial. Logo que vim morar aqui. Ela tranquila me apresentava. Aos mais supostamente esquecidos. E desconsiderava perguntas indelicadas. Ou impedia que chegassem até a mim. Não queria saber de constrangimentos. O período era difícil. Ela sabia. Não possibilitaria mais dor. Ou invasões de privacidade.
Sempre respeitou. Nunca questionou. Não iria permitir o contrário. Fosse de quem fosse.
E todos acatavam. E acataram. Sempre. Até que desistiram de questionamentos.
E o tempo passou.
O último aniversário dela aqui.
Sabíamos que seria um longo tempo assim. Ela além mar. E nós todos aqui. Comemorando o dia dela – sem ela.
Mas deixou para nós muita sabedoria.
Na delicadeza do trato. Na organização de uma reunião informal. Na formalidade de afetos. Na disposição emocional de acarinhar. Premiava a cada um com seu sabor preferido. Separava até os lugares. Sabia onde cada um gostava de sentar. E deixava o espaço já quase que nomeado. Deixa para ela este cantinho. É mais tímida. Ela não gosta de calor. Deixa perto da janela. E por ai seguia.
Ensinou que as festas são para os amigos. Importa o que eles gostam. Não entendia festa com egoísmo. Festa não é para o dono da casa. É para os convidados.
Hoje. Não estou lá. Mas sei exatamente como está seguindo. A programação. O festejo. O cardápio. As flores. O cheiro percorrendo a sala.
E mesmo com muitas pontinhas de inveja – fico feliz por todos eles.
Estão diante dela. Podendo conviver na rotina. Cantando os votos da data querida de lá. Que são diferentes dos cantados de cá. Mas com a mesma intenção. Por certo. Ora, pois.
E adivinho o riso dela. Os agradecimentos.
O olharzinho sorrateiro de vez em quando esticado - em direção a todos nós. Que aqui estamos. Deste lado de cá do descobrimento. Celebrando e cantando de dentro do nosso coração. Enviando para alguma estrelinha que passe. Para que ela receba de lá.
Parabéns - Lia querida. Muitas saudades. Muitas felicidades.