Blog de Lêda Rezende

Outubro 10 2009

 

Certo. Bom humor é fundamental.

 

Aceitar o inevitável é sinal de sabedoria. Concluir que sabe que não sabe é uma conclusão amadurecedora.  Quase heróica. Grega. Conselhos de avó nem se comenta. A perfeição das perfeições.

 

Podem ser seguidos com toda a obediência. Tudo procede. Confere. Ganha até aquele ok ao lado de cada frase. Ou de cada pensamento.

 

Assim estava. Tentando ser parcimoniosa. Prudente. Até polida – poder-se-ia dizer. Falar que estava com postura amadurecida - já beirava a redundância.

 

Tudo bem que um bom observador teria ficado mais cuidadoso. Ela estava com aquele olhar fininho. E isso sempre foi um indicativo de alerta. Aos próximos e distantes.

 

Mas impossível não reagir.

 

Acordara bem disposta. Iria continuar com seu pacote de feriados. Já o segundo dia.

 

Estabelecera até um agendamento. Bem à moda antiga. Escreveu num papelzinho. Item por item. Adaptando inclusive horários e atitudes.  Uma maravilha. Uma sequência quase divina. Devia mesmo estar numa fase grega. Isso – lógico - bem antes do olhar nipônico.

 

O papelzinho com a listinha. Este sim um fato novo. Podia até programar. Mas daquele jeito – nunca. Nem lembrava mais o dia que escrevera itens ordenados. Devia ter sido em algum momento de vida escolar. Talvez com algum desespero. Por agradar a professora. Por certo por alguma daquelas pequenas faltas.

 

Na infância as faltas e erros parecem tão tridimensionados. A altura física na infância sempre é inversamente proporcional à altura da visão dos problemas.

 

Deve ter sido numa visão assim. Exagerada. Por isso escrevera os tais itens.

 

Mas enfim. Fora isso – nunca. Ia fazendo dentro do seu ritmo. Mental.

 

Desta vez até prometera não fazer programações. Ou qualificações. Mas não resistiu ao doce sabor de uma exibição. E ainda antes de dormir pegou o tal papelzinho. E escreveu a sua programação do dia seguinte. Até numerada foi. Releu. Concordou. Acrescentou só mais um – no final. E foi dormir tranqüila. Estilo – então estamos combinados.

 

Já começou a sentir o frio no primeiro abrir de olhos.
Até pensou em verificar a própria temperatura.
Vai ver estava com febre. Mas não parecia.

Olhou em volta. O quarto estava bem escuro.
Deveria ser cedo.
Vai ver acordara no hábito dos dias ditos úteis. Olhou para o relógio. Negativo. A manhã já estava explicita.

 

De repente se deu conta. Um barulho mais insistente. Ritmado. Permanente. Nem diminuía. Nem aumentava. Aliás - já era alto o suficiente.

Somou as conclusões. Frio. Escuro. Barulho. De água

Levantou. Abriu as portas.

 

Sim. Chovia como se fosse a primeira chuva do mundo.

 

Como talvez só no tempo da criação. Muita chuva. O céu cinza forte – não possibilitava fantasias contrárias. O frio estava  contundente. Abraçou-se a uma manta - desprezada desde a véspera - no sofá.

 

Foi naquele momento – abraçada na tal manta – que o olhar nipônico se fez com toda a sua força. Nem todo ninja. Ou nem toda naja. Valia o trocadilho. Mas não riu. Sequer um esboço de riso.

 

Voltou para o quarto. Pegou o papelzinho.

 

No item um constava – sol sem moderação. Tinha até uma carinha de risinho ao lado desse item.  E continuava.  Esquecer o carro. Caminhar no Parque. Ir à Livraria. Comprar o presente dela. Caminhar na Avenida. Tomar aquele sorvete maravilhoso que só vende lá. Sim. Ir até lá.

 

O olho quase se fechou. Nem todo nipônico. Lembrou. Tinha avisado a ele desde a véspera. Sim. Poderia colocar o carro na revisão.

 

Estava sem carro. Absolutamente sem carro. Sem sol. Sem caminhadas. Sem sorvete. Com chuva. Com frio.   

 

Só uma palavra lhe vinha à mente. E nunca pensara nesta palavra.

 

Reticências. Só esta se repetia. Por certo uma palavra encobridora. Era uma moça educada. Também repetiu isso alto – como que provocando uma eficiente auto-escuta.

 

Amassou o papelzinho. Jogou na cestinha do lixo a seu lado. Olhou para ele - o papelzinho - como se olha numa despedida.

 

Sentou no sofá abraçando afetuosamente a manta. E lá ficou por algum tempo. Ela. O sofá. A manta. Três pontinhos. Olhando a chuva bater na vidraça.

 

Mas – resignou-se. Ainda teria mais dois dias.

 

E - desta vez - sem agendamentos. Prometeu a si mesma. E até sorriu. Com olhos já bem abertos.

 

 


Outubro 08 2009

 

O dia amanheceu lindo. Só cores.

 

Céu azul. Brilhante. Desta vez nem era o habitual azul turquesa. Era azul brilhante. Intenso. Acolhedor. Ficou ali. Olhando e buscando adjetivos. Fazia tempo que não amanhecia assim. Ou vai ver ela que não amanhecia assim.

 

Aberta para o colorido do mundo. Enfim.

 

Debruçou-se na murada. E ficou em silêncio. Olhou para cima. Teve aquela boa impressão. O céu estava perto. Sentiu-se assim. Perto do céu. Até sorriu. Vai ver era assim no verão. Mas já não tinha certeza.

 

Quase concordou com a amiga que falou sobre o esquecimento do corpo. É verdade. O corpo vai se habituando. E passa a entender cada estação como única. Como se nunca tivesse conhecido outras. Incrível. Por isso de repente – o susto.

 

E diante do susto - fez o indicado. Vestiu o verão.

 

Deitou-se na cadeira. Deixou o sol aquecer a pele. Os cabelos soltos voavam com leveza. Estava sem compromisso nem temor.  Um calor calmo invadiu até os pensamentos. Mal respirou. Não queria que nada afugentasse aquele prazer. Ou se fosse um sonho – nada que causasse o despertar.

 

Bendisse o inverno. Pela amnésia. O inverno se esqueceu de lá naquele dia. E deixou que as cores do verão enfeitassem um pouco a cidade. O verde das árvores em frente ficou mais verde. O amarelo de alguns prédios- mais amarelos.

 

Tudo ia assim. Muito prosaico. Poético.

 

Ela teve uma idéia. Contaria a ele. Ele que vivia sob o sol. Que morava lá de onde ela viera. Que não sabia de cor cinza. Nem de casacos pretos. Nem de meias grossas. Contaria a ele. Mas de uma forma especial.

 

Avisou.

 

Hoje o dia aqui não parece inverno. Estou no terraço. Tomando sol. E decidi até fazer algo que nunca faço.

 

Decidi tomar uma cervezza. O zol eztá tão bonito. Eztá um dia de verão. E tive ezza ideia. Uma cervezza. Nunca bebo liquidoz com álcool. Hoje dezidi exxperimentar. E vozê não zabe o que acontezeu. Os Aztroz vieram pazzear aqui. Em meu terrazzo. Todos elez.

 

Vai ver devo beber líquidoz com álcool. Nunca havia vizto os aztroz. E eztão bem aqui. E não param de girar. É verdade. Como giram. Que aztros mais felizez. Tomara que não ze ezbarrem unz noz outroz. Seria uma tragédia cózmica. Ze forem dezastradoz.  Dezculpa. Interrompi o recado para rir. Aztro dezastrado é perfeito.

 

Ele de lá respondeu. Surpreso. Rindo. Assustado. Como assim. Deu conselhos. Informou dos riscos. Ordenou limites. Relembrou a ela – quem ela era.

 

Ela continuou. Um rezidente de Zaturno acabou de perguntar por vozê. Rezpondi que tudo bem. Que vozê eztá ótimo. Ze quizer alguma menzagem – aproveita que ainda eztão aqui. Não pararam de girar. Maz não zairam daqui do terrazzo. Imagina ze aquele fizico zoubezze dizzo.

 

E assim ficou nesse vai. Vem. Vai.

 

Enviou o último. Ele quer que eu deza para almozar. Falou que não quer converzar com o povo de Zaturno. Vou dezer. Até maiz.

 

Parou o recadinho. Encerrou a lista de z.

 

Sentada em sua cadeira. Olhou para o céu. Para aquele lindo céu azul brilhante. Tranqüilo. O terraço sem astros. E por um tempo ficou ali. Bem sentadinha. Bem longe das cervejas. Diante do sol.

 

Fez assim sua mais nova descoberta. E teve uma sensação maravilhosa.

 

Entendeu a muitos. E a si mesma. Ou vai ver sempre soube. Só não formalizara. Não importava. Não há lógica nas sensações. Nem ordem classificatória. Sensação procede - da desordem. Ainda bem.

 

Compreendeu as infinitas possibilidades da letra. Os surpreendentes caminhos das palavras. A magia de uma construção literária.

 

Pode-se ser o que quiser. Pode-se viajar por lugares nunca dantes imaginados. Pode-se ser quem escolher ser. A liberdade é irrestrita. Não tem um dono. Ou um tutor. Ou mentor. Também não importa.

 

Há o escrito. Há o leitor. Isso importa.

 

Lembrou-se daquele filme. Falava de escafandros e borboletas. E imobilizado – ele pensava. Não existe solidão para quem tem memória.

 

E ela ali. Sentadinha em seu terraço. Diante do sol. Sob o céu azul brilhante – concluiu.

 

A melhor embriaguês – é a composição de um texto.

 

 


Setembro 28 2009

 

Não esquecia um determinado comentário dela.

 

Escreveu dizendo. Achava muito bonito. Fazer uma festa apenas os seis. Tem quem discorde. Quem ache que festa tem que ter muito mais pessoas. Mais distantes. Ou mais sociais. Afins e sem fins. Elogiou isso. Fazer festa familiar. E ser tão divertido. Sempre.

 

Participara uma vez. De uma destas festas. Era o aniversário dela. Veio junto com a outra amiga para prestigiá-la. E se transformaram em oito. Foi muito bom. Não faltaram motivos para risos. A celebração se estendera pelo dia e entrara pela noite. Uma festa. Este o termo correto. E achara maravilhosa.

 

Códigos e referências sem explicações necessárias. Risos e dados rascunhados – passado a limpo. Sem aborrecimentos. Sem contratempos. Sem críticas maldosas. Sem mágoas.

 

Sim. Ela estava certa. Sempre era muito bom.

 

Nesta noite não foi diferente.

 

O convite partiu dele. O inverno chegou. Vamos celebrar antes que acabe. Com esta informação do aquecimento global nunca se sabe. Todos riram. Convite aceito.

 

A mesa estava em ordem. Tudo feito dentro do solicitado. Cada um poderia se servir diante da sua preferência. O frio circulava com tranqüilidade. Lá fora uma chuva leve dava um toque bucólico.

 

Ela riu. Sempre se divertiu com este termo.

 

A modernidade permitiu que fosse tudo feito à mesa. Com todos em volta. Como um banquete antigo diante das genialidades modernas. Não se precisou do ir e vir. Tudo ficou disposto e exposto. Aquecido. Aquecendo.

 

Não se fugiu à rotina. Como assim - acabou. Então substitui. Faz assim mesmo. Vai ficar bom. Ela não gosta de alho. Ela não come bem passada. Ela só quer mal passada.

 

Este queijo, não. Acha até bonito. Mas não gosta. Este sim. Sim. Deixa que sirvo. Ponha mais para cá. Agora ficou longe dela. Quase derramou. Não, não sujei nada.

 

Quem levantar vai ter que pegar também mais isso. A família denuncia de onde veio. Sim. Até ele. Veio do lado oposto. E já está igual. Ninguém quer levantar. Deixa - eu vou. Então ótimo.

 

O cheiro do queijo derretido se misturava aos cheiros dos molhos da carne e aos pães selecionados. O vinho circulava de mão em mão. Os lugares escolhidos indicavam as preferências de cada um.

 

Elas estavam lindas. Como sempre. Participativas. Integradas - muito mais do que integrantes.

 

Eles se compartilhavam e partilhavam da história de cada um - entrelaçada com a do outro.

 

A música escolhida fora nenhuma. A voz de cada um parecia fazer o coro perfeito. A batuta era erguida ao som de talheres e facas. Tudo em total harmonia com os estalinhos do óleo nos quadradinhos de carne.

 

O cheiro doce do chocolate veio fazer o contraponto. Deliciou. Acolheu. Fez o grand finale. Em alto estilo.

 

Foi ai que lembrou a observação dela. Da reunião a seis. Sem precisar de suportes para ter graça.

 

Olhando para eles – se sentiu orgulhosamente feliz. Muito feliz. E muito orgulhosa. De si mesma. Tivesse uma medalha por perto e já teria se atracado a ela. Assim estava se sentindo.

 

Orgulho. Eis mais um sentimento com múltiplas leituras. Não permite solidão. Ou isolamento. A vaidade até pode ser ato parcialmente isolado. Pode ser dividido apenas com o espelho. O orgulho, não. Em especial este tipo de orgulho. Sempre vem do outro. Ou pelo outro. Como um presente doado. Perseguido de forma direta, mas conquistado de forma indireta. Não vem de si para si.

 

Foi o que aprendeu naquele momento. Observando-os.

 

Sentindo a mistura de cheiros. Diante do riso festivo de cada um. Da intimidade positiva em volta de uma mesa. Onde o simbólico se fazia quase táctil de tão factual.

 

Compreendeu perfeitamente. A importância de códigos bem estabelecidos. Seja qual for a relação. Para que possam ser corretamente lidos. E espontaneamente respeitados.

 

Até lembrou a velha frase. In vino veritas. Podia ser. Mas era verdadeira a visão. A sensação. Não era fruto de uma embriaguês. Era fruto de uma realidade.

 

Eles eram adequados ao tempo e às funções. Felizes. Afetuosos. Éticos e bem sucedidos. Com a idéia coerente de ambiente. De presente.

 

Era uma noite fria de um sábado de inverno.

 

E o anunciado aquecimento global se fazia verdadeiro e instalado. Estava todo ali - na sala. Em volta da mesa.

 

Riu tranquilamente aquecida.

 

 


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