Certo. Bom humor é fundamental.
Aceitar o inevitável é sinal de sabedoria. Concluir que sabe que não sabe é uma conclusão amadurecedora. Quase heróica. Grega. Conselhos de avó nem se comenta. A perfeição das perfeições.
Podem ser seguidos com toda a obediência. Tudo procede. Confere. Ganha até aquele ok ao lado de cada frase. Ou de cada pensamento.
Assim estava. Tentando ser parcimoniosa. Prudente. Até polida – poder-se-ia dizer. Falar que estava com postura amadurecida - já beirava a redundância.
Tudo bem que um bom observador teria ficado mais cuidadoso. Ela estava com aquele olhar fininho. E isso sempre foi um indicativo de alerta. Aos próximos e distantes.
Mas impossível não reagir.
Acordara bem disposta. Iria continuar com seu pacote de feriados. Já o segundo dia.
Estabelecera até um agendamento. Bem à moda antiga. Escreveu num papelzinho. Item por item. Adaptando inclusive horários e atitudes. Uma maravilha. Uma sequência quase divina. Devia mesmo estar numa fase grega. Isso – lógico - bem antes do olhar nipônico.
O papelzinho com a listinha. Este sim um fato novo. Podia até programar. Mas daquele jeito – nunca. Nem lembrava mais o dia que escrevera itens ordenados. Devia ter sido em algum momento de vida escolar. Talvez com algum desespero. Por agradar a professora. Por certo por alguma daquelas pequenas faltas.
Na infância as faltas e erros parecem tão tridimensionados. A altura física na infância sempre é inversamente proporcional à altura da visão dos problemas.
Deve ter sido numa visão assim. Exagerada. Por isso escrevera os tais itens.
Mas enfim. Fora isso – nunca. Ia fazendo dentro do seu ritmo. Mental.
Desta vez até prometera não fazer programações. Ou qualificações. Mas não resistiu ao doce sabor de uma exibição. E ainda antes de dormir pegou o tal papelzinho. E escreveu a sua programação do dia seguinte. Até numerada foi. Releu. Concordou. Acrescentou só mais um – no final. E foi dormir tranqüila. Estilo – então estamos combinados.
Já começou a sentir o frio no primeiro abrir de olhos.
Até pensou em verificar a própria temperatura.
Vai ver estava com febre. Mas não parecia.
Olhou em volta. O quarto estava bem escuro.
Deveria ser cedo.
Vai ver acordara no hábito dos dias ditos úteis. Olhou para o relógio. Negativo. A manhã já estava explicita.
De repente se deu conta. Um barulho mais insistente. Ritmado. Permanente. Nem diminuía. Nem aumentava. Aliás - já era alto o suficiente.
Somou as conclusões. Frio. Escuro. Barulho. De água
Levantou. Abriu as portas.
Sim. Chovia como se fosse a primeira chuva do mundo.
Como talvez só no tempo da criação. Muita chuva. O céu cinza forte – não possibilitava fantasias contrárias. O frio estava contundente. Abraçou-se a uma manta - desprezada desde a véspera - no sofá.
Foi naquele momento – abraçada na tal manta – que o olhar nipônico se fez com toda a sua força. Nem todo ninja. Ou nem toda naja. Valia o trocadilho. Mas não riu. Sequer um esboço de riso.
Voltou para o quarto. Pegou o papelzinho.
No item um constava – sol sem moderação. Tinha até uma carinha de risinho ao lado desse item. E continuava. Esquecer o carro. Caminhar no Parque. Ir à Livraria. Comprar o presente dela. Caminhar na Avenida. Tomar aquele sorvete maravilhoso que só vende lá. Sim. Ir até lá.
O olho quase se fechou. Nem todo nipônico. Lembrou. Tinha avisado a ele desde a véspera. Sim. Poderia colocar o carro na revisão.
Estava sem carro. Absolutamente sem carro. Sem sol. Sem caminhadas. Sem sorvete. Com chuva. Com frio.
Só uma palavra lhe vinha à mente. E nunca pensara nesta palavra.
Reticências. Só esta se repetia. Por certo uma palavra encobridora. Era uma moça educada. Também repetiu isso alto – como que provocando uma eficiente auto-escuta.
Amassou o papelzinho. Jogou na cestinha do lixo a seu lado. Olhou para ele - o papelzinho - como se olha numa despedida.
Sentou no sofá abraçando afetuosamente a manta. E lá ficou por algum tempo. Ela. O sofá. A manta. Três pontinhos. Olhando a chuva bater na vidraça.
Mas – resignou-se. Ainda teria mais dois dias.
E - desta vez - sem agendamentos. Prometeu a si mesma. E até sorriu. Com olhos já bem abertos.