O cenário era o mais - .
Parou na palavra mais. Faltou palavra. Sobrou questão. Faltou frase. Sobrou pontuação.
Assim. Como uma poesia invertida. Lembrou até do dramaturgo Frances. Ele estava correto. E atual. Era verdadeiro o teatro do absurdo.
A caminhada era em direção à música. A um concerto. Conhecia a orquestra. Conhecia o local. Garantia de prazer com certeza absoluta.
Lembrei dela. Íamos muito. A última vez foi com ela. Ainda não tinha optado pelo teatro do além mar. Já acordei enviando recadinhos. Malvada - escrevi rindo. Adivinha para onde vou hoje.
O dia estava frio. O céu de um belo azul turquesa. Um ventinho tranqüilo percorria as pessoas e as árvores. Em volta do Teatro - prédios antigos restaurados davam um quase sofisticado toque de elegância - ao antes envelhecido e descuidado. Poucas pessoas passavam caminhando. Só um ou outro que parara o carro mais distante do local do concerto.
Foi nesse percurso que surgiu uma esquina.
A caminho do concerto. E foi na virada da esquina que pareceu virar o mundo. Ao avesso. Ou ao direito. Isso nunca se sabe mesmo. Mas parecia que tinha virado. Talvez até coubesse um túnel. O do tempo. Tudo isso me veio à mente. Aos borbotões. Pode até ter faltado palavra ou frase. Para completar o mais. Porém não faltaram - mais.
Ali poderia caber tudo. O começo. O meio. Até o fim. Do mundo. Parecia que espaço e tempo tinham se desordenado de repente. Onde era para ser centro – se transformara no final. Onde era para ser contemporâneo - se transformara em medieval. Mais ou menos assim.
Passível de se dizer - assombroso. Ou pavoroso. Ou deprimente. Ou assustador. Ou melancólico. Tudo com um mais na frente de cada adjetivo.
Ela vinha. Caminhava seminua. Devagar. Parecia completamente à vontade. Aliás. Termo realmente adequado. Não ria alto. Não chorava.
Tinha o sorriso mais tranqüilo – outro mais – que se poderia supor. A roupa suja e rasgada cobria-lhe as partes escolhidas pelo tecido. Não por ela. O que expunha e o que ocultava era um mero detalhe aleatório. Onde não tivesse furos ou faltas – estava coberto o corpo.
Olhou para mim. Com aquele mesmo sorriso-tranquilo-social. Fez um aceno com a cabeça.
Lembrei do ar sofisticado dos prédios envelhecidos. Só que ao contrário deles - não fora restaurada. Muito menos acolhida. Morava onde deitasse. E sua casa era uma sacola que segurava com a mesma tranqüilidade que sorria.
Era jovem. Deveria nem ter chegado à terceira década.
Alguns ainda dormiam pelas calçadas. Outros comiam. Outros simplesmente restavam ali. Não olhavam nem para ela - nem entre si.
Estanques no particular de cada história. De cada destino.
Depois do aceno que me fez, virou-se para o céu. Olhou. Conferiu. Não sei bem o que. Mas pareceu encontrar o que buscava. Fez uma volta sobre si mesma – sentou num degrau da calçada. Displicente com as roupas e seus rasgados permissivos – abriu a sacola. E se concentrou.
Quem sabe - uma Pandora de si mesma. Moderna portadora das aflições antigas. Ou o contrário.
Mas esta não é uma avaliação fácil - nem confiável.
Na esquina seguinte - outro cenário. Surpreendente - não fosse a certeza do procurado.
Mudava tudo. Desde cores a cheiros. Desde passantes a ocupantes. Dava até para uma confusão mental. Como se os atores desta peça urbana e a construção apropriada para a encenação - estivessem em desencontro.
Lá estava o belo Teatro. Suntuoso. Imponente. E com a fachada em restauração. Incrível.
Até olhei para trás. Ela não estava. Esta não era a esquina dela. Ou ela não era desta esquina.
Nas escadarias as pessoas aguardavam. Excessos de tecidos cobriam os corpos. Meias e botas. Sorridentes e falantes – muitos aguardavam a abertura. O dia frio convidava a agasalhos coloridos. E era um –mais – de delicada sobriedade. Quase uma celebração.
Veio o primeiro aviso. O segundo. A orquestra começou.
O regente ergueu a batuta. Excessos e faltas se igualaram e se diferenciaram. A música preencheu espaços. Enfiou-se em cantinhos. Aguçou sentidos. Liberou emoções. Como se despisse a cada um por inteiro. E cobrisse a cada um por partes.
Na saída voltei pelo mesmo caminho. A Pandora de si mesma e a sua caixa - dormiam aconchegadas.
Estava assim – mais - marcado o domingo.