Blog de Lêda Rezende

Dezembro 27 2009

 

Já estava pronta para sair.

 

De repente notou uma luzinha vermelha. Piscando. Pela fresta da bolsa. Por certo um recadinho. Resolveu ler de uma vez.

 

Estava lá. Escrito. Hoje foi suspenso o atendimento. Teve um problema com os computadores. Uma falha técnica mais complicada. Outro com a luz. Não precisa vir. Será feito um re-agendamento parcializado.

 

Atendimento suspenso. Re-agendamento parcializado.  Achou o máximo.

 

Comparou a uma figura de linguagem. Ou a uma obra literária.

 

Mas quase pulou. Primeiro de susto. Era a primeira vez na vida que fazia um pedido e acontecia. Literalmente. Inacreditável.

 

Acordara com sono. Como sempre. Daí pensou. Bem que hoje podia ser cancelado o atendimento.  E eu poderia dormir mais um pouco. Mas imagina. Se me aconteceria uma maravilha desta. Nunca. Acelerou e foi cuidar de obedecer as ordens do relógio. Cruel objeto. Pensou entre os dentes. Mas prosseguiu.

 

Mal acabou de ler o recadinho - se auto-conferiu.

 

Checou – estava viva.  Correu para um espelho. Deveria estar iluminada. Não estava. O espelho mostrou o habitual. Optou por reler o recadinho. Vai ver fora uma alucinação. Não foi. Lá estava.

 

Que belo recadinho. Que lindíssimo texto. Desdenhou dos poetas. Nenhum faria uma composição tão emocionante quanto aquela. Riu. Riu de novo.

 

Tudo bem. Pediu perdão aos poetas. Por precaução. Vai ver que os deuses que cuidem deles poderia se aborrecer. Não queria mais surpresas. Aquela estava já perfeita.

 

Pensou. Fosse a Idade Média e já sabia onde iria parar. Mas não era. Pelo menos a da cronologia da Humanidade. Idade Média só a dela. Particular. Riu dessa bobagem também.

 

Se primeiro quase pulou de susto – de segundo pulou de alegria.

 

Olhou para a bolsa com o material. Para os papéis. Para a roupa que vestia. Em especial para o relógio no braço. E se despediu. Deles. De todos estes – adereços.

 

Mas se o pedido foi atendido – a vontade vinculada foi descartada.

 

Que dormir que nada. O sono foi-se como mágica. Deveria ser isso. Era o Dia da Magia. Ela que não tinha conhecimento. Riu de si mesma de novo. Estava se sentindo já uma humorista. De primeira categoria.

 

Mas enfim – dormir seria desdenhar do pedido inicial. Jamais faria isso. Poderia ser visto como um menosprezo. Estava com muito zelo em relação aos deuses amigos. Mais uma vez riu.

 

Despiu-se da proposta inicial e vestiu-se da adquirida. Sim. Iria à praia. Desceria a serra. E iria ver o mar.

 

Perfeito. Idéia de gênio. Foi mais uma vez se olhar no espelho. Deveria estar iluminada mesmo. Riu para o refletido. Que devolveu à altura.

 

Quando se compreendeu – já estava lá.

 

Em pé na areia. Diante do seu tão amado mar. Pontinhos prateados aqui e ali brilhavam na água docemente salgada. Faziam quase um cortejo de pequenas luzes. Lindo.

 

Algumas mesinhas de cimento ficavam na areia. Com banquinhos em volta. Escolheu um deles e sentou. Para uma alegria tão grande - alguns rituais.

 

Ficou um tempo apenas olhando. Brincava com a chave do carro entre os dedos. Deixou que o sol escolhesse os pontos da pele que iria tocar.

 

Depois com muita calma foi em direção à água. Estava morna. Pequenas ondinhas deixavam a espuma branquinha na borda. Que sumiam com delicadeza.

 

Mergulhou. Pulou. Brincou. Jogou água para cima. Para baixo. Riu. Viva o Dia da Magia.

 

Lembrou o tempo em que seguia as definições do mestre austríaco. Mas desta vez se colocou mais à parte. Nada de passagem ao ato. Como o mestre definia atitudes intempestivas.

 

Fez o habitual brinde e – rindo - informou. Para o Universo. Que me perdoe o Mestre. Mas este foi Além do Princípio do Prazer. E muito além dos Atos Falhos. Sem Homem dos Lobos.  Sem Totem ou Tabu. E principalmente sem Perturbações Psicogênicas da Visão.

 

Este foi um verdadeiro Ato de Passagem. Passagem feliz. Até o mar. Diante do mar. Num dia em que um erro da tecnologia cedeu espaço à realização plena de uma fantasia.

 

Foi a vez do impossível vencer o possível. E mergulhou – mais uma vez.

 

Voltou no começo da tarde - muito feliz. 

 

Amanhã retomarei a tal agenda parcializada. Perfeito. 

 

 


Dezembro 21 2009

 

 

E lá estávamos a caminho do mar.  

 

Eles nos levaram. Também iriam para uma outra viagem. Seria a chance de desejar - mais uma vez - mais felicidades. Para o Novo que ia começar.   


Últimos atos – corretos. Horário - correto. Local – correto. Documentos – correto. Todos os corretos em ordem correta de aprovação.

 

Feito a parte protocolar. Com toda a calma. Direto para um cafezinho. Nada como um pouco de cafeína. Em cima da adrenalina. Rimos. Deliciosa aquela doce sensação. Do pré-embarque. Já superada a fase de preparatória. Agora já estávamos dentro. Do campo. Perfeito. 

 

Enquanto caminhava lembrei dela. Me avisou que iria para o mesmo lugar. Ver os fogos na praia. Ver a virada no mar. Sentir os grãos da areia na pele. A água espumante tocar a alma. Até imaginou se nos encontraríamos. Concluímos que seria não muito fácil.  

 

Ficaríamos em lados opostos. Da agulha da bússola. Até ri quando lembrei do chiste. Entre a mutante a a imitante. Muitas palavras se construíram.   

 

Lembrei da minha avó. Muitas vezes lembramos do que está bem perto, menina, muitas vezes lembramos do que está bem perto.  

 

Foi assim. Lembrei dela. Lembrei a minha avó. Virei e ela estava lá. Não a minha avó. Ela. Inacreditável.

 

Os mais místicos diriam – procede. Os mais incrédulos diriam – viável. Os mais tendenciosos diriam – possível. Os mais céticos diriam – invenção. Os mais alheios diriam – combinado. 

 

Não importa. Ela estava lá. Pela segunda vez. Ela sozinha. E nós ali. Como que para acolhê-la.  

 

Nos conhecemos num cenário parecido. Todos viajando. Também pelo ar. Um vôo dentro e fora de nós mesmos. Nas idéias. Pelas idéias. Na tecnologia. Da possibilidade virtual para quase impossibilidade de um real. Todos se identificando. Tímidos. Mas conscientes. Dos limites e da falta deles. Afinal há um mundo onde só idéias dominam.  

 

Em volta de um outro onde as imagens limitam. Assim foi nossa apresentação. Ela sozinha - a amiga faltara. Solitária em meio aos participantes. Não os conhecia. Juntou-se a nós. Aí começaram as surpresas. Descobrimos tantos amigos em comum. E tão queridos. Também em comum. Ele também se apresentou. Tinha vindo de longe. Também tímido. Eles dois ainda estavam juntos. Foi uma noite de solicitação.  

 

De um para outro. De todos para um. Até de um para todos. Embora nem nos déssemos conta disso na hora. Quase sempre é assim. Primeiro solicitamos. Depois nos apresentamos. Tolice pensar que é o inverso.  

 

Agora estava ali. No cafezinho. No lugar da tal cafeína por cima da adrenalina. Quando escutou seu nome levantou a cabeça. Quando nos viu, gritou. Abriu a boca. Abriu os olhos. Rimos. Nos abraçamos. Em meio aquela multidão. Aqueles inúmeros possíveis traslados. Estávamos na mesma hora. No mesmo lugar. Indo para o mesmo destino.  

 

Ela sozinha. A amiga estava em outro local. A mesma amiga da outra vez. A que faltou. Havia um chiste. Sensação mística pode dar em consulta. Com o psiquiatra. Rimos. Lembramos da consulta. Deveria ser agendada. O mais rápido possível. Rimos mais. De repente, a pergunta básica. Um pouco temerosa. Pela resposta. E a resposta veio certa. Certeira, como diriam de onde ele veio. Os mesmos números. Sequenciais. De assento. Vizinhos de assento. Quase ligamos para o psiquiatra ali mesmo. De imediato. Consulta de emergência. Antes da virada. Sem fogos. Sem ondas. Nada de alma resfriada. Rimos.   

 

Ela tranquila - questionava. Ele solidário - registrava. Eu atenta - aguardava. E nós todos  compreendemos. Assim são os permeios da vida. Lá um dia nos vemos diante de uma nova situação. De uma nova coincidência. Que não sabemos os motivos. Mas entendemos a  mensagem.  

 

E essa é a magia da vida. A magia que rege o Universo.   

 

Conversamos durante a travessia. Pela primeira vez todos nós falamos. De nós mesmos. De nossas histórias. Uma sinopse. De nossas vidas pessoais. Mas nem por isso menos particularizada. Das necessidades de mudanças. Das certezas dos pedidos. Da torcida pelo atendimento. Ela enfática. Iria fazer uma lista. De tudo que planejava. E ia seguir. À risca. Com ou sem risco. Rimos mais uma vez. Só não perguntei se tinha lembrado. Da tal agendinha. E do lápis.  

 

O tempo cumpriu seu prazo. Sentimos a terra firme. Seguimos as  nossas bússolas.  

Ou – vai lá saber - as nossas bússolas nos seguiram.

 


Dezembro 07 2009

 

Cedo já fui cuidar das organizações.

 

Mas antes o cuidado de conferir. Temperatura e chuva. Nada de alarmante. E hoje então. É a data de início da nova estação. Do ano. Esta sim. Desde ontem já bastante festejada.

 

Não pude deixar de lembrar a minha avó. Trate a véspera sempre como véspera, menina, trate a véspera sempre como véspera.

 

Afoita – fui logo festejando. Descrevendo. Nomeando. Vai lá mais saber o que. Passei a véspera adiantando o dia. Mais ou menos assim. Talvez um velho hábito. Ou uma tola pressa em viver. Mas só agora me apercebo deste meu estilo. Vai ver ofendi uma florzinha aqui ou ali. Enfim. O que está feito está feito.

 

Agora vou ficar mais atenta. Acho. Talvez.

 

Subimos juntos na ladeira. Os meus espirros e eu. Uma sociedade imbatível. Solidária. Nem sei quem era mais fielmente parceiro. Os espirros comigo. Ou eu com eles.

 

Sim. Lá vinha outra gripe com força total. Daquelas que já pulou a classificação 1. Já deve estar na 3.

 

Um horror. Ossinhos rebeldes. Nariz que humilharia qualquer plantador de tomate. Olhos piores do que a recomendação do colírio. Ou dos óculos escuros. Um pisar especialmente criado para a ocasião.

 

Lembrava um daqueles filmes onde a roda da carruagem girava em sentido contrário à direção que segue. Sim. Efeito caleidoscópico. Eis uma descrição verdadeira.  

 

E viva a segunda feira. Nada de reclamar.

 

Mas não encerrava aí. A chuva se fez presente. Uma chuva forte. Objetiva.

 

Se é para inundar – pode deixar comigo. Inundou. A temperatura caiu. O frio veio rápido fazer seu papel de figurante. E estava assim instalado o Teatro do Possível.

 

Tudo estava lento. As paradas se sucediam. O fino deslizar do freio sobre os trilhos dava arrepios intermináveis. Mal acabava um ramo dos arrepios – outro já se iniciava. Melhor ficar logo arrepiada de uma vez. Pensei num milésimo de aborrecimento.

 

Mas continuei. E o dia se fez dentro do mais ou menos programado. Entre espirros e tosses. Mas também não foi assim tão monótono. Teve febre. É preciso sempre acrescentar. Nada de minimizar.  

 

Incrível. Não podia ser diferente. Na saída. Ao termino da atividade – mais chuva. E o frio já se fez mais. Virou protagonista. O ventinho vinha certeiro cortando e atravessando a pele. Nunca tinha escutado sobre arrepio de ossos.

 

Mas existe. Vai ver não prestei atenção.

 

Mas estava na hora de por um fim. Resignada – vim feliz para casa. A cada pensamento – em pouco tempo já estarei aquecida - vinha um contraponto. A porta abria. E o frio entrava direto para me cumprimentar. Ou aos meus espirros. Enfim. Para evitar mais os tais contrapontos – parei de pensar. Pensando ou não – estaria em casa logo.

 

E assim aconteceu. Não sem tomar a minha dose correta de chuva.

 

Com a gripe fazendo um percurso nada sorrateiro – decidi por um chá quente. Um daqueles maravilhosos concentrados de chá verde. Um presente para um dia de transtorno. E completei com um banho fervente.

 

Água. Devo ter algum problema grave com água. E sobre isso nunca a minha avó falou. Lembrei do dia da banheira. Hoje foi o dia do chuveiro.

Até quis pesquisar. Quem inventou o chuveiro. Um gênio. Aquela água quente a descer pelo corpo - maravilhoso. Fiquei um pouco mais. Sai. Do Box.

 

Pisei. Na água. De novo – pensei.  Acho que já vivi isto antes. Não dá para rir no Teatro da Repetição.

 

Todo o banheiro estava inundado. A água saiu do chuveiro e aceitou o ralinho interno. Mas vai lá saber por que - desdenhou o ralo externo. E - farta de si mesma - transbordou.

 

Vi que nadava um desavisado fiozinho de cabelo. Um desgarrado. Merecido pensei. Alguém tinha que ser punido. Melhor punir o tal fio desgarrado. Quem mandou cair.

 

De repente - me preocupei. Estava eu ali espirrando e em meio a uma enchente doméstica – a brigar com um fiozinho de cabelo. E com o dedo em riste.

 

Dei ordem de calma. A mim mesma. E me obedeci. Desde o dia da banheira nasceu um aprendizado. O pescoço é giratório. Foi um presente anatômico divino. Pode-se sempre olhar em outra direção.

 

Foi o que fiz. Deixei fiozinho, tapetes e sandálias à própria sorte. Não sou Comandante. Ou Almirante. Posso – com tranqüilidade - ser a primeira a abandonar o navio.

 

E assim fiz. E me deitei. Optei por prestigiar meus espirros. Estes sim – não me deixaram nem um segundo.

 

Melhor dormir. E ceder ao Teatro do Onírico.

 

Amanhã tem mais.

 

 


Dezembro 05 2009


Acordou no horário adequado. O dia da retomada chegara.

 

Parecia título de filme de guerra. Até riu. Nem sabia de onde tirara a ideia. Mas já que veio – permaneceu. Esta nova fase obediente estava já cronificando. Mas enfim. Quem sabe será uma etapa valorosa. Confiava nos pequenos revezes. Pequenos – olhou de soslaio em sinal de advertência – ao Universo.

 

Eis aí. Já batendo na porta. O Dia da Retomada. Não tinha montes. Nem castelos. Nem barricadas. Nem arco. Nem flecha. Nem espada transfixada em pedra.

 

Era apenas o reinício. Continuaria exatamente de onde tinha parado.

 

Cedo desceu. Com calma. Sem atropelos. Ainda estava convalescendo. Um passo errado e lá se ia tudo a perder. Nem pensar. Ainda estava bem na borda da memória tudo que sentira. As dores. Os desconfortos. De perfeito só a nevasca no sétimo andar. Doce e suave fruto de uma simples e objetiva medicação. No mais - a realidade não poupou sinais de efetiva presença.

 

Mas corajosa – enfrentara. Este mérito não permitia avareza. Principalmente de si mesma. Sobrava ego. Elogiava-se. Congratulava-se. Mais um pouco e se medalhava.

 

Diante de tanto - ele ria. Divertido. Já afeito ao estilo dela – concluiu. Está melhorando rápido. Esta já é quase ela. Sábio.

 

Mas acabou. Agora era tratar de possibilitar a rotina. Axioma imediato. Nada existe no mundo que seja mais apressado do que a rotina. Em se restabelecer. Quando avisada – já tem que ser. Um verdadeiro e perfeito instantâneo. Nem bem se pensa e já está lá. Cumprindo as funções. É tão acelerado o processo que demora a compreensão exata do tempo.

 

Enfim.

 

Obedeceu. Lembrou até da música. Como era de costume. Não era. Mas estava. Por um tempo recente. Só não garantia a durabilidade do estilo subserviente. Vai lá saber quando tudo muda.

 

Mas se deu um direito. Pensar e refletir. Mesmo esta palavra que sempre rejeitou. Refletir. Mas não lhe ocorreu outra no momento. Ficou com esta mesmo.

 

Rotina deveria ter um significado especial no Dicionário. Lembrou uma definição que lera há pouco tempo. Num dia de provável muito ócio – e nenhuma criatividade.

 

Pesquisara esta palavra. Rotina.

 

E lá encontrara.  Num dos mais conceituados. Caminho habitualmente seguido ou trilhado; caminho já sabido.  Hábito de fazer as coisas sempre da mesma maneira, maquinal  ou inconscientemente, pela prática, imitação. Hábito inveterado que se opõe a inovações ou progresso. Feitio e espírito conservador. Relutância contra o que é novo. Costume antigo.

 

Deu vontade de escrever para o autor. Pode até ser o que eles definem. Não iria discordar de tamanho estudo. Ou conclusão. Mas podia ao menos reclamar. Avisar. Vai ver não notaram. Ou então não vivem uma - Rotina.

 

Informaria. Com delicadeza. Mas com absoluta firmeza. Falta completar. Rotina é praticamente um ser. Um ser objetivo e de pouca conversa. É autoritária. Impiedosa. Demandante. Qual uma retórica de si mesma. Algo por aí. Mas nada fez. Devia ainda ser o efeito da nevasca. A tal do sétimo andar. Riu.

 

Todo este complicado processo durou o tempo de lá chegar. O percurso. Tanta exacerbação neuronal num trajeto. Quase riu. E com tantos cuidados no caminho. Tinha que estar atenta. Afinal – era uma convalescente ainda. Perfeito.

 

Chegou. Tudo estava tão igual. Em tão curta ausência - tão longo afastamento.

 

Sentiu-se um pouco alheia. E um pouco participante. Sensação estranha. Voltar e retomar pareciam mais simples vistos de casa. Ou - durante a discussão. Com o inocente autor de dicionário.

 

Subiu. Abriu a porta da sala. Ela cuidadosa – já deixara o protocolo em local habitual. Esperou que chegasse - com beijos e abraços. Tudo estava arrumado. O material específico na pasta preta. A listagem da agenda na posição correta da chamada. Tudo disposto do jeito que ela gostava. Até a cortina já estava aberta.  

 

Nova e deliciosa descoberta. Simples. Mas prazerosa. Tinha retomado. Reiniciado. Recuperado.

 

Rotina – também - é Vida. Sorriu feliz.  

 

Chamou o primeiro atendimento.

 

 

 


Novembro 19 2009

 

Não podia ser denominada de decisão. Talvez nem de escolha.

 

Mas não. Discordava de si mesma. Foi uma escolha. Sim. E uma decisão. Sim. Era só uma questão de ordenação. E isso não é lá muito fácil. Enfim. Estava já ali. Deitada. Aguardando.

 

Procedimentos são assim. Uma vez deflagrados - seguem seus ritmos. E se tornam libertos. Independentes das vontades. Pelo menos das dela. Se de um lado sobrava autoridade - do outro sobrava – obediência.

 

Agora não era momento de rebeldia. Conclusão que a acalmou. Incrível. Mesmo sendo ela.

 

Lembrou da avó de uma amiga. Às vezes é preciso ceder para acceder, menina, às vezes é preciso ceder para acceder.

 

Não entendera esta frase antes. Naquele momento menos ainda. Sentia-se um pouco confusa. E o Tempo parecia se misturar. Mas apenas lembrou. E deixou lá. Estava realmente obediente.

 

Agora era enfrentar. E eis algo que sempre fez. Enfrentar. Poucos sabiam dos medos.

 

Muito se espantou quando ela comentou. Eu sei que você é frágil. E que tem pequenos e grandes medos.  Mas sei que finge bem – para muitos. E riu ao falar isso.  E com total e absoluta desenvoltura. Bem ao estilo. Sem preocupações eufêmicas.

 

Deve ter feito aqueles olhos de desenho animado. Devem ter saltado longe das órbitas. Se surpreendeu. Desde quando ficara transparente. Até se aconchegou com os cobertores. Assim. Como um reflexo medular. Mas não discordou. Ela a conhecia bem. Seria perda de tempo. E já estava com bastante problema de mistura de Tempos. Era suficiente.

 

Ela entrou. Foi avisando. Ordenando. Vai sim. Vai subir após este procedimento. São orientações a serem seguidas. Não um tema em discussão.

 

Aplicaram. Intramuscular. Doeu. Muito. Puxou para si o tal lençol branco. Avisou que ia ceder rápido. Sedada cedente. Este o último chiste. Para ele que a olhava – amorosamente - pálido. Muito pálido. E muito amorosamente.

 

Sentiu a mão dele - apertar a dela. Pensou no milésimo de segundo que restou. Há um especial “apiedamento” enlaçado com o amor. Ou o contrário.

 

Olhou para o lado. Tudo mudara.

 

Que terrível engano. Estava nos Alpes. O branquinho era da neve. Não tinha lençol. Que confusão que fizera. Deveria ser por causa da altitude.

Olhou para os pés. Os sapatos eram de solado grosso. Uma segurança. Evitaria que caísse. Estava com meias grossas. Sentia isso entre os dedos.

Olhou para baixo. Subira a três mil metros de altura.

E olhava o mundo do alto - envolta em silêncio. Absoluto. Sentiu uma paz enorme.

 

Quase reclamou. Foi um barulho forte.

 

Ali também se corrompia o silêncio. Surgiu um teleférico. Procurava ver de onde saíra. Mas não dava. Era longo. Percorria uma trilha estreita. A altitude tinha mesmo mexido com ela.

 

Agora estava dentro do teleférico. A cabine era ocupada por seis pessoas. Seis. Contou e recontou. Mas não sentavam. Ficavam de pé. Ela não conseguia ficar de pé. Somente ela. Obedeceu. A paisagem era linda.

 

Havia uma luz forte. Diante dela. A cada espaço branco – surgia um amontoado verde. As árvores brincavam na neve.

 

Estava há quatro mil metros. Mesmo não entendendo de números – sabia que estava muito distante. Do chão. Do lá embaixo. Mas se segurou numa gradinha. Como fora esquecer as luvas. A gradinha estava tão fria.

 

Sentiu um abalo. Alguém informou. Vai mudar de cabine. Não entendeu bem. Ia dizer que não queria. Sentiu que a mudaram. Ninguém parecia se importar com o querer dela. Enfim. Deve ser o estilo Alpino. Tentou rir.

 

Seu próximo texto seria sobre a altitude. Nunca imaginara sentir algo assim. E ainda disseram que era normal. Não sabia mais quem dissera. Mas registrara o comentário. E buscava entender o tal normal avisado.

 

Quase deu um pulo. O celular caiu. E junto com ele a câmera fotográfica. Que pena. Foi só o que pensou. Não teria como demonstrar. Não teria prova documental. Só das palavras.

 

Notou uma placa de cor marrom num ponto alto da montanha. Leu o que estava lá escrito. Este teleférico foi construído há cinqüenta anos. Alguém acrescentou - numa plaquinha ao lado. Em cinqüenta anos – apenas um acidente. Fatal. Para todos. Mais outro aviso. Este local está a quatro mil metros do nível do mar.

 

Ficou tentando compreender. Que mar. De que mar as pessoas falavam.

 

Sentiu um frio súbito. Escutou algumas vozes. Não compreendeu o que falavam. Devia ser algum idioma codificado. Coisas das alturas. Tentou rir. Ou riu. Não tinha certeza.

 

Viu que ele vinha de lá. Caminhando em direção a ela. E sorria - um riso solidário.Tentava lhe dar a mão mais uma vez. 

 

De repente - abriu os olhos. O lençol branco a envolvia. Ele a olhava - corado. E rindo.

 

Ela perguntou. Há quantos mil metros de altitude nós estamos.

 

Ele riu. Estamos no sétimo andar. Deixa de ser exagerada.

 

Deu-lhe um beijo. Ele disse. Com expressão de alívio conquistado. Ou Bem recebido. Felizmente acabou.

 

E aconchegou-lhe a mão – ainda um pouco fria – com carinho.

 

Ela nada contou. Ainda estava com muito sono. Mas sorriu ao ver um floquinho de neve passar - disfarçado - janela abaixo.

 


Novembro 17 2009

 

Quase não acreditei.

 

Abri a porta do quarto. E fui em direção às escadas. Assim. Com a sequência reconhecida. No habitual da rotina. O ato em si. Mas desta vez fugia ao destino.

 

Desta vez um rumo novo. Uma direção escolhida. Uma data festiva a ser comemorada. E tinha hora certa para dar inicio. A hora da partida sendo a mesma do inicio. Perfeito.

 

Lembrei logo da minha avó. Ela afirmava com propriedade. Entre o que começa e o que termina não tem sequer uma linha, menina, entre o que começa e o que termina não tem sequer uma linha.

 

Foi pensando nisso que sai do quarto. Entre a alegria da novidade. E o pensamento já antigo.

 

Primeiro o susto.

 

Estava tudo branco. Não via a paisagem. Só a cor branca se fazia plena. Muitos pensamentos se enfileiraram. Talvez em auxilio. Lembrei do Ensaio. Lembrei do Disco. Fiquei tentando adivinhar as cores. Compreender o excesso. Parada. Antes mesmo de descer as escadas tudo já havia ocorrido.

 

Não faltaram ideias. Ou recordações. E tudo diante do branco de uma paisagem ocultada. Enfim.

 

Depois a decisão.

 

Desci as escadas. Do lado de dentro - sala estava envolta no branco. Do terraço não se via nem o gradil. Como se houvesse nada além da imensidão branca. Ocupando todo o espaço. Apagando obstáculos. Limites. Acessos. Coerente com o incompreensível.

 

Mas lá me fui dar conta do planejado. Sem filosofias. Sem construções literárias. Tinha que prosseguir em tempo. Pelo tempo. Dentro do tempo. Que o branco lá ficasse.

 

Pragmatismo em ação. Tudo resolvido.

 

O que sobrou em branco - sobrou em falta. Faltava teto. Esta a explicação lógica. Sem teto – sem pouso. Sem pouso – sem decolagem. Simples assim.

 

Podia-se olhar o branco pelo tempo que agradasse. Mas do solo. Só isso. Enfim. Várias parcerias se estabeleceram. E lá ficamos a aguardar que pelo menos uma delas se dissolvesse. Para que o projeto continuasse dentro de uma possível execução.

 

Quando o Disco iniciou sua decomposição – o azul foi se aproximando. Enfim.

 

Cores e nuances iniciaram as suas tarefas. Com o mundo colorido – voltou-se ao propósito inicial.

 

Já não era sem tempo - disseram alguns. Olha o tempo que perdi – comentaram outros. Agora não chegarei mais a tempo – falou alguém com tristeza na voz.

 

Alguns se olharam. Outros ficaram dentro dos seus pensamentos. Talvez nem tão brancos como antes a paisagem. As expressões eram bem tensas. Talvez estivessem no oposto do Disco. Vai lá saber as conseqüência de uma total brancura. E alheia a qualquer avanço tecnológico. Uma brancura por si só.

 

Uma cor – é uma cor. Apenas isso.

 

Quando todos se acomodaram – os avisos começaram.

 

Orientações sobre segurança. O que é proibido. O que é permitido. O que é impossível de ser transgredido. Seguidos de explicações. Situações independentes da nossa vontade. Assim explicavam. Como uma valiosa informação prestada.

 

Sentados e acalmados – houve uma sensação de tranqüilidade. Como se já afivelados – o tempo voltasse ao controle. Cada um com sua solução. Ou sua dificuldade. Mas com absoluta expectativa de aceitação.

 

Olhei para o infinito. Para os muitos tons de azul até o rosa. Mas abaixo se via um branco denso.

 

Optei por escutar uma música. Coloquei os fones. Foi instantâneo. Uma outra viagem se fez. Isolada da formal. Descompromissada com as técnicas. Ou com as coincidências. Quase deu uma confusão mental.

 

Ri. Tocava uma marcha. Nupcial. Uma bela orquestração. Belíssima. E no momento da subida do vôo. Assim. Como se uma regência de fora se fizesse presente. Como uma necessidade.

 

Acordei no branco. Sentei diante do azul. Em proximidade total com o Universo. Se assim se pode dizer.  Um casamento realmente se fazia.

 

O plano da partida e a vontade da chegada. O azul e o branco. As nuvens e o metálico do progresso. O plano e o ato. O gesto e o fato. O riso e a festa.

 

Não sei se foi um recadinho. Uma desculpa. Um sinal. Isso não se sabe jamais. Não tem provas. Nem documentos. E cabe a cada um fazer e desfazer os códigos. Muito mais internos do que externos. E conforme se apresentam.

 

Conclui. Perfeito. Assim devem ser as comemorações.

 

Olhei para ele. Apertei a mão. Sorri.

 

 


Novembro 02 2009

 

Ele veio de lá. Feliz.

 

Fazia já alguns anos que não nos víamos. Trabalhamos juntos por muito tempo. Saíra de repente. Mal nos despedimos. Questões burocrático-egóicas. Algo por aí.

Estas são sempre as grandes questões. Sempre nascem desta dupla. Mal explicada. Mal conjugada. Ou muito mal dissociada.  Mas imperiosa.

 

Quando sobra hífen - não há o corte no momento certo. E apagam um espaço. Mais ou menos assim.

 

Minha avó nunca deixou de avisar. Muito eu é sinal de pouco meu, menina, muito eu é sinal de pouco meu.

 

Acho que só hoje entendi o que ela falava. Foi preciso anos e anos para assimilar. A linha quase transparente entre o eu e o meu. Sábia - sempre.

Mas desci. Direto para o local indicado.

Tinha uns exames a fazer. Estava entre corajosa e temerosa. Exames nunca são da ordem do conforto. Ou da diversão.

Mesmo que alguns estudiosos digam o contrário. Ou os seguidores do Marquês. Não faltam teorias. Apologias. Tratados. Mestres de todo o mundo. Austríacos. Franceses. Portugueses. Italianos.

 

O mundo girando em volta de uma dolorosa teoria. Sobre dor e alegria. Sobre sofrimento e satisfação. O homem sendo apto para a dor. Muito mais do que para prazer. Até os poetas se manifestam - sofrer por amor.

 

Nem sei quem são esses. Os estudados.  Os aptos para a dor. Eu não. Detesto dor.

Foi assim que desci. Com este pensamento tentando ocupar o outro.  O dos exames. Brigar com estudiosos de nada resolve. Mas ocupa o espaço do medo. Para isso resolve. E muito.

 

Afinal nesses tempos de tantas contínuas e perigosas mutações – exame é indício de risco. Ou de contaminação.

Não era a situação do momento. Mas não tinha escolha. Era fazer os exames.  Anuais. Rotineiros. Necessários. Procede. Obrigatórios. E pronto. E assim continuei.  Me repetindo – para me ordenar. Obedeça. E pensar que sempre fui rebelde. Nada de temer agulhas. Onde já se viu.

 

Tudo bem. Obedeci.

Foi em meio ao local do exame que o avistei. Eu entrando na sala dos exames. Ele na sala do atendimento. Em frente.

Vi que abriu os olhos. E sem metáfora. Abriu mesmo. Se surpreendeu. Veio em minha direção. Passos apressados.  Com um sorriso. Expressão de confraternização. Desconsiderou as limitações.

 

Foi logo avisando. Em pé diante de mim. Voltei.

 

Como se a materialização não fosse confiável. Apenas suposta. Respondi com um chiste. O bom filho à casa torna.

E fiquei observando.

 

Por que – voltar - se transforma em ato. Muito mais do que em fato. Precisa de desculpas. Sempre. 

 

Cada um com suas demandas. E espelhos.

 

Informou. Esta é a primeira vez. Nunca voltei de onde sai. Repetiu muitas vezes. Esta é a primeira vez. Continuou se explicando. Devia ser importante para ele. Se sentir convidado. Ou aceito. Ou vai lá saber o que.

 

Eu até ri. E falei. De onde saiu – ou para onde saiu. Desconsiderou. Fez bem. 

E continuou desconsiderando. Estes exames vão resultar todos normais. Você está ótima. Agradeci. Um lorde em termos de gentileza.

 

Vamos lá. Tomar um cafezinho. E você me conta desse longo tempo - que você continuou aqui. E eu lhe conto do meu - que fiquei tão distante daqui.

 

Ela. Convidei mas não quis voltar. Casou. Neste último verão. Está feliz. Ele. Sim. Desde que saiu também está em outra Instituição. Ele. Não está bem. Acho que precisa voltar. Ele. Também não se acertou. Quem sabe também volta. Ele. Está feliz com o novo cargo.

Falamos em poucos minutos. Mas acho que nunca falamos tanto. Soubemos dos amigos. Contamos de nós mesmos. Rimos das consequências  - e até das causas.

 

Voltamos rápido para as nossas atividades. A rotina – digamos assim - estava lotada.

 

Olhamos um para o outro. De repente. Com expressão de susto-risonho.

 

Esquecemos o cafezinho. Intacto. Em cima da mesa. Rimos.

 

Não importa. Tem café em todas as estações do ano. E em todos os horários. Até qualquer outro intervalo. Qualquer dia.

 

Foi a primeira vez que voltei de onde sai. Repetiu. E completou. Mas estou feliz por isso.

Ri. Viva a sexta-feira.

 


Outubro 17 2009

 

O almoço fora programado com antecedência.

 

Os convites distribuídos em tempo dito hábil.  As agendas adequando-se a uma quebra da rotina.

 

Assim foi durante a semana. A comemoração antecipada visava uma homenagem. Aos que lá trabalham. Cumprindo suas funções. Minimizando dores. Provocando risos. Acalmando angústias. Acolhendo aflições.

 

Sejam quais forem as incertezas. Partindo de onde partirem. Há toda uma metodologia para diminuir ou impedir sofrimentos.

 

Um almoço comemorativo. Assim ficou acertado. Em tal dia. Em tal hora.

 

O salão foi aberto pontualmente. Como deve ser. Uma disciplina é sempre requerida. Seja no festejo. Seja no cotidiano. Não importa. Disciplina também é uma das formas de expor respeito. E dispor hierarquia. Enfim. Na hora exata - abriram o salão.

 

As mesas estavam lindas. Toalhas vermelhas sobre forro branco davam um brilho de alegria. As taças avisavam cores e sabores. Os mais próximos se agrupavam em volta de lugares escolhidos. O riso e o murmurinho lembravam que nem só de pão.

 

A camerata se postava em frente. E ao suave e doce som dos acordes – foi iniciado o ato festivo. E daqui e de lá se escutavam cumprimentos e confraternizações.

 

Convidado – ele subiu para o pronunciamento.

 

Lembrei dos milhares de discursos que já escutei. Das inúmeras falsas analogias e eufemismos que sempre os discursos carregam. E das muitas e muitas delongas que tanto desconfortam.

 

Mas não desta vez.

 

Assim começou. Com citação em Latim. Primo non nocere. Primeiro não prejudicar. Primeiro não ferir. A frase atribuída ao primeiro de todos – foi repetida diante de todos nós. Seguidores no juramento e no trabalho.

 

Foi um belo discurso. Adequado ao fato. Identificado com o ato. Qual um recordatório. Mas sem demandas.

 

Fiquei pensando na frase de abertura.

 

Nos que ali estavam. Ocupando e agilizando o próprio Lugar. E nos que já se foram. Mas que de vazio deixaram apenas o espaço. A memória preenche muitas falas. Como disse o poeta. Ressuscitar começa pela palavra – do outro. E ao escutar os nomes dos que se foram – senti uma presença não da matéria. Essa já não importa. Mas do contexto. Do trabalho exercido. Sem a nítida separação de dia e noite. De casa e trabalho. De segunda ou feriado.

 

Convocados em seus nomes – deixavam a força do seu profissionalismo exposto. Perfeito.   

 

Enfim. Passeei pelos caminhos das escolhas. Olhei para ela que estava ao meu lado. Vi que – emocionada com a escuta- disfarçava uma lágrima afoita.

 

As expressões mudavam. Cada um convivendo com o próprio registro.  Com a vocação descoberta sabe-se lá como. Por isso mesmo - misteriosa. Não há resposta satisfatória para quando alguém requer uma explicação objetiva. Um porque.

 

Não se sabe exatamente a época. Não se entende perfeitamente os motivos. Vai muito além do pragmático. E de repente a decisão surge. E uma elaboração prossegue. E todo um novo equilíbrio se faz necessário. Desde a primeira aula. Desde o primeiro aviso. Desde o primeiro morto que ensina.

 

E uma vez diante de quem pede alívio – nunca mais se desprende do ato em si.  

 

Lembrei de um comentário que ele me fez. Há muitos anos. Num daqueles dias de final exaustivo de trabalho que se ameaça um – para mim chega. Ri. Ele me viu organizando um jantar. Um simples jantar.

 

Olhou para mim. E muito sério falou. Ou, melhor, fez uma observação. Com tom de voz calma. Uma vez pertencente a esta categoria – jamais se libera. Você está arrumando um jantar. Mas não apenas organizando pratos e talheres. Você está organizando como quem cuida. É isso que faz de você – a sua escolha.

 

Lembro que fiquei em silêncio. Uma espécie de siga a seta. Mas me senti acalmada. E feliz.

 

Primeiro não ferir. Primeiro não prejudicar. Seja no que for. Seja da forma que for. Mas é preciso estar em estado de - para entender. Para introjetar. E acatar. Há todo um sentimento não esclarecido. Mas nem por isso menos estabelecido.

 

Aplaudi a fala do colega que discursou – com batimentos felizes de aurículas e ventrículos. E sinceras sístoles e diástoles.

 

Voltei na hora certa para cuidar da agenda. Subi rindo as escadas. Foi uma bela comemoração.

 

 


Outubro 10 2009

 

Certo. Bom humor é fundamental.

 

Aceitar o inevitável é sinal de sabedoria. Concluir que sabe que não sabe é uma conclusão amadurecedora.  Quase heróica. Grega. Conselhos de avó nem se comenta. A perfeição das perfeições.

 

Podem ser seguidos com toda a obediência. Tudo procede. Confere. Ganha até aquele ok ao lado de cada frase. Ou de cada pensamento.

 

Assim estava. Tentando ser parcimoniosa. Prudente. Até polida – poder-se-ia dizer. Falar que estava com postura amadurecida - já beirava a redundância.

 

Tudo bem que um bom observador teria ficado mais cuidadoso. Ela estava com aquele olhar fininho. E isso sempre foi um indicativo de alerta. Aos próximos e distantes.

 

Mas impossível não reagir.

 

Acordara bem disposta. Iria continuar com seu pacote de feriados. Já o segundo dia.

 

Estabelecera até um agendamento. Bem à moda antiga. Escreveu num papelzinho. Item por item. Adaptando inclusive horários e atitudes.  Uma maravilha. Uma sequência quase divina. Devia mesmo estar numa fase grega. Isso – lógico - bem antes do olhar nipônico.

 

O papelzinho com a listinha. Este sim um fato novo. Podia até programar. Mas daquele jeito – nunca. Nem lembrava mais o dia que escrevera itens ordenados. Devia ter sido em algum momento de vida escolar. Talvez com algum desespero. Por agradar a professora. Por certo por alguma daquelas pequenas faltas.

 

Na infância as faltas e erros parecem tão tridimensionados. A altura física na infância sempre é inversamente proporcional à altura da visão dos problemas.

 

Deve ter sido numa visão assim. Exagerada. Por isso escrevera os tais itens.

 

Mas enfim. Fora isso – nunca. Ia fazendo dentro do seu ritmo. Mental.

 

Desta vez até prometera não fazer programações. Ou qualificações. Mas não resistiu ao doce sabor de uma exibição. E ainda antes de dormir pegou o tal papelzinho. E escreveu a sua programação do dia seguinte. Até numerada foi. Releu. Concordou. Acrescentou só mais um – no final. E foi dormir tranqüila. Estilo – então estamos combinados.

 

Já começou a sentir o frio no primeiro abrir de olhos.
Até pensou em verificar a própria temperatura.
Vai ver estava com febre. Mas não parecia.

Olhou em volta. O quarto estava bem escuro.
Deveria ser cedo.
Vai ver acordara no hábito dos dias ditos úteis. Olhou para o relógio. Negativo. A manhã já estava explicita.

 

De repente se deu conta. Um barulho mais insistente. Ritmado. Permanente. Nem diminuía. Nem aumentava. Aliás - já era alto o suficiente.

Somou as conclusões. Frio. Escuro. Barulho. De água

Levantou. Abriu as portas.

 

Sim. Chovia como se fosse a primeira chuva do mundo.

 

Como talvez só no tempo da criação. Muita chuva. O céu cinza forte – não possibilitava fantasias contrárias. O frio estava  contundente. Abraçou-se a uma manta - desprezada desde a véspera - no sofá.

 

Foi naquele momento – abraçada na tal manta – que o olhar nipônico se fez com toda a sua força. Nem todo ninja. Ou nem toda naja. Valia o trocadilho. Mas não riu. Sequer um esboço de riso.

 

Voltou para o quarto. Pegou o papelzinho.

 

No item um constava – sol sem moderação. Tinha até uma carinha de risinho ao lado desse item.  E continuava.  Esquecer o carro. Caminhar no Parque. Ir à Livraria. Comprar o presente dela. Caminhar na Avenida. Tomar aquele sorvete maravilhoso que só vende lá. Sim. Ir até lá.

 

O olho quase se fechou. Nem todo nipônico. Lembrou. Tinha avisado a ele desde a véspera. Sim. Poderia colocar o carro na revisão.

 

Estava sem carro. Absolutamente sem carro. Sem sol. Sem caminhadas. Sem sorvete. Com chuva. Com frio.   

 

Só uma palavra lhe vinha à mente. E nunca pensara nesta palavra.

 

Reticências. Só esta se repetia. Por certo uma palavra encobridora. Era uma moça educada. Também repetiu isso alto – como que provocando uma eficiente auto-escuta.

 

Amassou o papelzinho. Jogou na cestinha do lixo a seu lado. Olhou para ele - o papelzinho - como se olha numa despedida.

 

Sentou no sofá abraçando afetuosamente a manta. E lá ficou por algum tempo. Ela. O sofá. A manta. Três pontinhos. Olhando a chuva bater na vidraça.

 

Mas – resignou-se. Ainda teria mais dois dias.

 

E - desta vez - sem agendamentos. Prometeu a si mesma. E até sorriu. Com olhos já bem abertos.

 

 


Outubro 07 2009

 

O ambiente estava tranquilo.

 

Uma ou outra mesinha ocupada. As pessoas conversavam com suavidade.

A Cafeteria ficava num falso subsolo. Dentro de um local de salas de cinema. Reservada e cultural. 

 

Uma parede de vidro ficava quase ao nível da calçada da Avenida. De um lado – as mesas dispostas para refeições maiores. Do outro lado – a Cafeteria. Um clima de acolhimento percorria com delicadeza o ambiente. O cheiro de café dava um toque de serenidade.

 

Pelo vidro se via o movimento da Avenida. Intenso. Uns passavam carregando agasalhos. Outros os tinham dobrados nos braços. Outros ainda, incautos ou incrédulos, tremiam diante do desacreditado.

 

Mas uma similaridade era geral. Social. Poderia até dizer - democrática.

 

Todos caminhavam apressados. Passadas firmes - e fortes.

 

Não se viravam para a vitrine. Não encaravam as pessoas. Só se desviavam e continuavam. Olhavam para frente. Objetivos.  

 

Lembro que foi uma das primeiras observações que fiz quando me mudei. Completamente imigrante – me sentava solitária em algum Café. Em geral numa específica esquina. Sempre levava um livro. Jamais era aberto. O livro dinâmico passava e virava as páginas ora com rapidez. Ora lentamente. Mas deixando um fio de continuidade implícito.

 

Nunca se sabe o caminho de uma metáfora. Enfim.

 

Eu observava. Sentada e presente. Mesmo despercebida - como se ausente. O ir e vir. Os casais. O comportamento dos casais. O exposto dos solitários. A forma como as pessoas caminhavam nas ruas. Como se dirigiam às mesas. Como percorriam corredores. Não importava a estação do ano. Não importava a roupa ou sapatos que portassem. O pisar era o mesmo. Forte. Decidido. Como uma marcha sem banda. Mas ritmada.

 

Impossível não lembrar aquele autor.

 

Ele dizia que se conhece a cidade onde se está pelo caminhar das pessoas. O caminhar do Homem. Como uma Qualidade. Ou uma falta dela. Sim. O autor conhecia realmente as cidades. E muito mais ainda - conhecia as pessoas.

 

Mas – escolhida a mesinha - sentamos.

 

Começamos a nos decodificar. Desfolhamos as idéias. Desvinculamos os roteiros. Desentendemos as formalidades. Rimos das dificuldades.

 

Enquanto ele também não chegava – fomos quase refazendo o percurso da Vida. De cada um. E de cada par.

 

De repente começou a falar das filhas. Duas. Pequenas. Bem pequenas. Cada uma com seu estilo. Com suas pequenas birrinhas. Com suas personalidades se compondo.

 

Nunca pensara em filhos por preferências. Meninos ou meninas. Era abrangente. Queria ser pai.

 

Estava esclarecida assim a sua posição diante do mundo. E se via agora pai de duas meninas. Falou os nomes. Falou dos tons de pele. Das nuances dos diálogos. Dos momentos de reflexões. Delas. Da importância dos limites. Da complicada dosagem equilibrada de limitar os limites. Do unificar - sem desvalorizar - sabedoria e autoridade.

 

Foi aí que compreendi. O que dizia o mestre Frances. Muito mais que um pai da realidade. Só funciona o pai real.

 

Tão de repente quanto começou a falar - fez um gesto. Brusco.

Virou a cabeça numa rapidez que nunca vi igual. Podia até ter problemas no joelho – como referiu. Mas o pescoço estava em absoluta ordem. Assim.

 

Virou. De uma vez. Como que procurando.

 

Olhou para o lado - como que tocado por um chamado.

 

Não da Avenida. Ou das pessoas que passavam apressadas. Ou do pisar forte de alguém apressado. Ou muito menos atraído pelo cheiro do café delicioso. Que desfilava numa bandeja esfumaçando a salinha. Nada disso.

 

Na mesa ao lado sentava numa cadeirinha uma menina. Bem pequena.

 

Enfeitava a sonoridade do local com sua vozinha suave. Cabelinhos pretinhos. Franjinha. Vestidinha de inverno. Sorridente. Foi sentando e falando. Ele foi escutando e virando. Assim. Sincrônico. Simultâneo.

 

Resgatado - continuou de onde tinha parado.

 

Mas comentou. Discreto. Saudoso. Parecia a voz da minha filha.

 

Talvez não fosse de expor as emoções. Vai ver por isso gostava de poesias. Poesia é o Lugar certo de disfarçar. É expondo versos que melhor se ocultam as sutilezas ou as certezas. Da alma. Nisso também os poetas são sábios. Quanto mais os identificamos, mais os perdemos de vista. Procede.

 

Mas enfim. Até me desconcentrei um pouco da conversa.

 

Pensei no virar brusco. Na lembrança da voz da filha. Que estava em outra cidade.

 

Pode ser esta - também - uma das formas de definir um pai. Uma definição possível. Ou – melhor ainda - uma tradução possível.

 

Assim. Sem frases de efeito. Sem frases sem efeito. Sem alegorias na Avenida. Pela certeza do Lugar - simplesmente e assumidamente - de pai.



Setembro 26 2009

 

Fiquei pensando de que ângulo se vê melhor.

 

Ângulo é sempre da ordem da intenção. Muito mais que da extensão.

O dia tinha sido especial desde o começo.

 

Começou com um susto. Vi a luz do dia clara. Invasiva. Definindo o espaço. Sem constrangimentos. Ou meias sombras. Assim. Explicita. E eu com os olhos esbugalhados. Boca aberta. Raciocínio arrancado às pressas. Do onírico ao real em tempo recorde.

 

Esqueci de ligar o despertador.

 

Como farei agora. Assim. Perguntava a mim mesma. Aflita. E não conseguia me responder. Só fiquei ali. Apavorada – diria. Agenda lotada. E essa agora. Perdi a hora.

 

Quase perdi mesmo foi o equilíbrio. Mental. Mas tão rápido quanto - quase – perdi, recuperei.

 

Era um sábado. Um sábado. O tal sonhado sábado chegara – e eu duvidava.

 

Vai lá saber por que. Confundi os dias. Ou fiquei presa na véspera. Prisioneira do despertar anterior. Nem conseguia festejá-lo. Fiquei ali catatônica. Assustada. Querendo descer escada abaixo. E diante de um dia de folga. Da tão sonhada folga. Cinco dias a esperar este dia chegar. E este desatino. Incrível.

 

Ainda bem que as pernas foram mais sábias. Vai ver entendem melhor de calendário do que se imagina. Ou não se aceitam submissas com facilidade. Ou – melhor ainda - não saem por ai a correr desatinadas. Aceitando qualquer ordem. Primeiro aguardam. Para depois agir.

 

Algum dia - escreverei sobre isso. A apologia das pernas decididas. Mas enfim. De onde estavam – não saíram. Não se moveram. Continuaram na cama. Bem esticadinhas. Aguardando a consciência tomar um rumo adequado.

 

Deixei passar o susto. E iniciei a rotina da folga.

 

Não sem uma decisão. Já que eu desautorizei o sábado – melhor deixar que ele me autorize. E deixei o dia se organizar. Por conta própria. Lembrei do poetinha. Ele sim. Entendia de sábado como ninguém. Saravá.

 

Foi uma surpresa atrás da outra.

 

Então é assim. Nem sempre sabemos. Ou impomos. As horas podem também fazer isso por nós. Este sim. Um susto agradável

 

O lugar ele escolheu. Uma surpresa. Desceu e avisou. Convidou. Vamos até lá. Um lugar ao ar livre. Um espaço aberto. Vamos sim.

 

Lindo. Nunca antes havia estado ali. A água doce e calma. A luz mais calma ainda - se espalhava pelo espelho d´água. Era um dia de delicado sol de inverno.  A mata em volta esbanjava contraste.  Garças brincavam nas bordas. Desimpedidas de compromissos. Ágeis em sua proposta.  Bicando felizes - o almoço interminável.  

 

As mesas ficavam dispostas próximas da borda.

 

Veleiros cruzavam solenes. Motores ocasionais passavam e cortavam a água. Com barulho. Placas convidavam a passeios. Uma revoada de pássaros proprietários expunha a autoridade. Uma pontezinha de madeira avançava água adentro. Oferecia e gemia a cada passada. Mas avançava com confiança.

 

Mais uma surpresa apontava saudades. A música. Falava da tarde naquela praia. Tão longe. Mas que- de repente - pareceu tão perto. Não resisti. Entrei no pequeno restaurante e aplaudi o cantor. Sorridente – agradeceu.

 

Ficamos horas caminhando diante da água doce. Impregnados do cheiro doce da água. Invadindo a pontezinha gemente. 

 

Sentamos. Observadores cuidadosos do tempo - a seguir seu ritmo.

 

Ali. Com nossas pernas – mais uma vez – esticadinhas. Só que desta vez – ao menos as minhas - confortáveis. Em acordo com o pensar.

 

A tarde foi caindo. As garças caminhando lentas para fora da água. As luzes se acendendo. Um ventinho mais frio marcava a estação. E avisava da hora.

 

Quando saímos – olhei para trás.

 

Foi aí que fiquei pensando no tal ângulo. Em todos os possíveis ângulos. Para se conviver com os dias. Com as noites. Com os erros. Com os acertos. Com os sustos. Como se fosse sempre assim. Donos disfarçados do próprio destino.

 

Comentei com ele. Adorei. Sequenciei - obrigada. Cada vez que me perguntar onde quero ir – direi aqui. Ele riu.

 

A urbanidade também tem seus misteriosos ângulos. E as suas – doces – surpresas.

 

Pensei. A Vida sabe privilegiar os dias. Sorri. Feliz.

 

 


Setembro 18 2009

 

Chegou com aquele jeitinho dela.

 

Tranqüilo. Poderia até se dizer - sorrateira. Era sempre assim. Caminhava como se deslizasse. Nada fazia com rapidez. Ou esbarrões. Dava conta do assumido. Mas sempre do jeito mais suave. Era assim o estilo dela. E sempre bem humorada. Agradável. Decidida.

 

Não havia dia que atrasasse. Jamais. Nem na entrada nem na saída. Era a pontualidade e seus efeitos obsessivos. Detestava mudança na rotina. Até obedecia – mas reclamava. Resmungava. Falava do mesmo jeito que caminhava – como se em respeito a um especial  silêncio.

 

Se lhe era solicitada uma solução – encontrava. Se lhe era encaminhada uma tarefa – cumpria. E tudo sem comentários. Sem questionamentos. Era para fazer – fazia. Simples assim. Mas sempre dentro da própria metodologia. Disso não abria mão. Nem ninguém a convencia. De qualquer contrário.

 

Primeiro escutei o pisar leve nos degraus da escada.

 

Em geral não subia se me visse ocupada. Ou concentrada. Deveria ter um nobre motivo. Dentro da qualificação que ela mesma estabelecia. Depois vi que trazia um envelope nas mãos. E segurava com muita delicadeza.

 

Interrompi o que fazia e me virei de frente para ela.

 

Entregou-me o envelope. Amassadinho. Foi avisando. Estava no depósito. Deve ter sido na mudança. Ficou por lá. Hoje mexendo em busca de alguns documentos solicitados – as encontrei. Acho conveniente comprar mais porta-retratos.

 

Eram as fotos.

 

Não sabia que estavam lá. Havia procurado muito. Por muito tempo. Agora estava ela a me entregar. Num envelope meio amarrotadinho. Mas envolto num saco plástico. Como embalagem sem data de validade.

 

A mesa estava tão bonita. A toalha de renda branca sofisticava a arrumação de talheres e pratos. O arranjo de rosas vermelhas expunha a emoção forte da decisão.

 

As taças estavam dispostas na mesa quase em fileira dupla. Próximas à borda da mesa. As cadeiras estavam afastadas para possibilitar uma melhor circulação. Até ri. Nem lembrava que tinha feito esta organização.

 

Elas estavam sentadinhas juntas. Talvez um pouco tímidas – pela posição que colocavam as mãos.

 

Eles estavam lindos. Lindos. Lembro que chegaram mais cedo. Queriam prestigiar com toda a solenidade necessária. Consideravam importante - para eles – se era importante para mim. Sempre solidários.

 

Ele estava de branco. Deixara a barba espessa - crescer. Eu estava de branco. Deixara os cabelos longos – soltos.

 

Ri de novo. Também não lembrava que tinha fotografado os pés. A sandália vermelha dava seu toque mundano. Mas – sem dúvida - elegante.

 

Ela olhou. Uma por uma. Fez algumas observações sobre quem me ajudara. Depois desceu. Com o pisar suave de sempre. De volta para suas tarefas. Não podia se atrasar. Concordei. 

 

Fiquei sentada ali – sozinha.

 

Com as fotos nas mãos. E com um sorriso invasor que denunciava as boas lembranças. Assim. Entre o presente e o não presente. Passando e Repassando. Como se num ato de efeito atualizante.

 

Muitas das pessoas – das fotos - não via mais. Saíram do registro do cotidiano. Trocaram de rumo. Ou de atalho. Ou criaram novos caminhos. Não devem ter marcado o chão. Nunca mais voltaram.  

 

Os objetos permaneceram. A mesa. A toalha de renda. As taças. A sandália.

Acho que a vi dia desses numa arrumação - por busca e apreensão. Quase ri.

 

Pensando bem. Não só os objetos ficaram. Os risos ficaram. Os mesmos risos. A mesma alegria. A constante celebração por nos mantermos sempre unidos. Ligados.

 

No tempo das fotos – nem adivinhávamos que eles iriam casar. Que ela viria se integrar. Que mudaríamos para cá. O tempo fez suas gracinhas espaciais e afetuosas. Mas preservou tudo de melhor. Houve sustos. Choro. Tensões. Até abalos de saúde. Mas todas as etapas bem vencidas.

 

Na minha frente tinha um calendário. Estava circulada a data – dia dez.

 

O dia da festa das fotos. Quase nove anos. E era hoje - dia dez. Ele já me acordara - cedo -  com um beijo de comemoração.

 

Desta vez ri. Podia-se até estar amarrotadinhos - mais do que há quase nove anos. Ele tirou a barba. Cortei os cabelos. Mas algo se mantivera bem conservado – como se no tal saco plástico. Os afetos verdadeiros continuaram intactos.

 

Acariciei as fotos. Telefonei para ele. E para eles.

 

Hoje as taças vão sair dos seus cantinhos no armário. Quem sabe – até a sandália vermelha.

 


Agosto 31 2009

 

Amanhecera frio. Muito frio.

 

As nuvens pareciam amigas próximas tristes. Estavam baixas e acinzentadas. A garoa da noite dava um certo brilho no chão. O asfalto devolvia pontinhos de luz. Nas calçadas a luminosidade se fazia por inteiro.

 

Quase ri. Quase. Porque a prudência ensina a não rir quando só tem sonolentos com frio em torno. Pode parecer um pouco caso. Mas enfim.

 

O quase foi por que me lembrei daquele costureiro famoso. Estilista para ser mais respeitosa.  Lembrei do que fez com a passarela. Em seu desfile. Molhou a passarela. Para dar mais brilho. E um ar de aconchego de inverno. Ficou lindo.

 

Aqui o desfile não tinha regência famosa. Muito menos assinatura. Os passos não eram ritmados. Nem o design exclusivo. Era mesmo um faz de conta que acordei. E uma certeza do horário a ser cumprido. Mais ou menos assim.

 

E amanhecera. Com nuvem próxima ou distante. Com ritmo ou com desafino.  Muito menos com pesquisa de direitos autorais - sobre chão molhado. Era fazer o dia acontecer. Isso. Já era o bastante para um dia frio.

 

Ela sentou próxima. Tinha um ar sério. Estava bem agasalhada. Uma echarpe vermelha coloria a pele branca. E contrastava feroz com o casaco preto. Botas altas davam um ar elegante. Sentou. Acomodou a bolsa no colo. Tentou colocar o som egoísta em funcionamento.

Não funcionou. Guardou de volta na bolsa. Ergueu-se um pouco do assento. Acomodou-se como possível. Parecia conformada. Talvez precisasse escutar a música interior. Vai lá saber. Mas ficou sentada. Absorta.

 

Elas entraram falando. As duas. Sentaram de costas para onde ela estava. Não olharam em volta. Não se interessaram pelo ambiente. Estavam entretidas com o tema escolhido. E nem bem uma calava a outra já continuava. Falavam o mesmo assunto em dupla. Os comentários se sucediam. O tom de voz aumentava se a queixa ou a critica era mais forte. Não tinha música. Mas a sonoridade era vibrante.

 

Comentavam. Criticavam. Ironizavam. E se divertiam com os critérios contrariados.  

 

Ela é uma pessoa muito desagradável. Eu agüento porque às vezes me dá pena. Eu diria até estranha. Discordo. De estranha ela tem nada. É mesmo muito esperta. Observou como riu ontem no cafezinho. Ele estava perto. Ela foi logo querendo se destacar. Para mim quem gosta de destaque é blog. Eu sou bem discreta.

 

E riam. Muito.

 

Vai ver hoje. Deve chegar toda arrumada porque tem reunião. Por certo passou a noite acordada treinando. Como assim treinando o que. As caras e bocas. Nunca percebeu. Ela vive de caretinhas. No começo achei que era um tique. Nervoso. Mais risos. Vai ver já chegou lá. Deve estar escolhendo o lugar onde sentar. Para ficar diante - você bem sabe de quem. E gorda como está ficando vai ocupar toda a frente. Mais risos.

 

Algumas pessoas olhavam. Elas rindo – alheias. Não faltavam detalhes. Previsões. Análises. Conclusões. Mas nem bem fechava um ciclo – lá vinha outro. Até falavam simultâneo. O assunto parecia realmente empolgante. Afinal – vencera o sono. Desconsiderara o frio.

 

Notei que ela estava atenta. Muito atenta. A cada fala que escutava com precisão – o olhar ia se transformando.

 

Primeiro o som. Depois a imagem.

 

Tudo começou quando escutou as falas. Ergueu-se um pouco. Identificou as pessoas. Foi o que pareceu. De inicio – fez olhar de espanto. Com a continuidade – fez olhar de tristeza. Mas não se movia. Só o olhar se expunha.

 

Olhou para mim. E falou. Com voz tão triste quanto o olhar. Com as mãos apertando a bolsa.

Elas estão falando de mim. Sobre mim. Nunca pude imaginar. Trabalhamos há muitos anos juntas. E muitas vezes saímos em um final de semana ou outro. Não sabia que pensavam assim. Houve uma vez. Ela foi um pouco ríspida. E fez um critica sem propósito. Mas achei que era o cansaço. Nunca questionei.

 

Nada respondi. O que menos importava ali era uma resposta. Até porque resposta era o que mais tinha. Tinha resposta para tudo. Para o presente. Para o passado. E talvez – para o futuro.

 

Ela levantou. Ficou diante das duas. Assim. De pé. Diante delas. Com bota de salto. Echarpe vermelha. Casaco preto. Deu vontade de gritar olé.

 

Primeiro a imagem. Depois o som.

 

Disse apenas uma frase curta. Tenham um bom dia. Só isso. E um imenso silêncio se fez.

 

Fiquei pensando em sincronias. E se o som egoísta tivesse funcionado. Se tivessem se atrasado. Ou se adiantado.

 

Lembrei a minha avó. O Tempo sempre interfere no Espaço, menina, o Tempo sempre interfere no Espaço.

 

Chegou o local de descida. Ela me olhou de volta. Fez um cumprimento formal com a cabeça. E saiu.

 

Elas saíram atrás. E a seguiam de perto. Parecia que tinham perdido o esqueleto. Estavam disformes. No andar. No gesticular.

 

Ela altiva – caminhava na frente - com aparente tranqüilidade.

 

Sumiram na multidão.

 


Agosto 23 2009

 

O dia começara quase como no estilo habitual. Mas enfim. Era mesmo o último dia dito útil da semana. Já era este um bom pensamento pelo despertar.

 

Como nada é mesmo perfeito - amanhecera um pouco enevoado.

 

Mas nada de importante. Os dias estavam assim. Amanheciam com uma temperatura mais delicada. Com o passar das horas o calor dizia presente em alto e bom grau. Confiante na repetição - arrumou-se adequadamente.

 

Uma roupa leve. Sapatilha. Nada de muita paranóia de frio. Ou de excessos.

 

Estava já há muitos anos na região. Sabia como se comportar. E sabia como a dita região se comportava.  Sentiu-se quase uma especialista em meteorologia. Até dispensou ler o boletim diário. Já sabia tudo.

 

Já na rua sentiu alguns pinguinhos delicados. Uma garoa banal - pensou. Não deu novamente importância. Apressou o passo e foi em direção aos caminhos dos trilhos.

 

Não esqueceu um risinho sorrateiro. Um certo olhar de superioridade. Em direção aos exagerados com casacos, botas e lenços. Embora já tentasse disfarçar um pouco de desconforto. Estava frio. Além do habitual da semana. Enfim. Devia ser porque ainda era cedo. Muito cedo. Novamente não deu importância.

 

Parecia já um dia de rebeldia.

 

No percurso – teve uma idéia.  Iria ao cinema no final do dia. Há tempos não fazia isso. Estava sempre voltando direto para casa. E acabava desanimada de sair outra vez. Desta vez iria retomar o ritmo antigo. E saudável.  

 

Sempre gostou disso. Ir ao cinema no último dia da semana. Era como se exorcizasse os dias de tanto trabalho. Finalizava com uma viagem ao mundo da sétima arte.

 

No começo desta rotina sentia falta de uma companhia. Depois se acostumou.

 

Lembrou um conselho da avó de uma amiga. Vemos e escutamos com os nossos próprios olhos e ouvidos, menina, com os nossos próprios olhos e ouvidos.

 

Perfeito. Assim entendeu. E lá ia. Sozinha. Sem queixas. Nem pequenos pudores. Escolhia o filme. Segundo seu gosto e expectativa. Assistia. E voltava para casa certa de que se dera realmente um presente.

 

Foi esta retomada que decidiu logo cedo. Parou antes de chegar ao destino. Comprou o jornal. Precisava escolher. Tinha uma sala de cinema que ela adorava. E ficava na Avenida preferida dela na cidade. Leu a programação. Perfeito. Até sorriu. Escolha feita.

 

Agora era só torcer para que o dia não fosse tão longo. Mas aprendera também a ter paciência. Até porque ter ou não ter – paciência - não é uma questão. Em relação ao passar do tempo – é sabido – nada muda.

 

Mas a chuva realmente chegara – e permanecia. Não diminuía. Não partia. Ficava.

 

O dia todo olhou pela janela. Mas concluiu. A Avenida do tal cinema era bem longe de onde estava. Devia ser chuva por zona. Isso também era habitual nesta cidade. Ela iria para outra no final do dia.

 

Continuou otimista. Mas – prudentemente - desconfiada.

 

Acabou o horário. Desceu. Já atravessou a rua sob chuva mais forte. Garoa parecia coisa do passado. O presente era bem mais contundente. Cabelos e roupa - inadequada – molhados.  A sapatilha estava de fazer inveja. A algum habitante do deserto. Só se fosse a algum deles. Porque os pés estavam encharcadamente congelando.

 

O frio aumentara. Muito. Muito.

 

Era um mais tremer que não dava conta. Mas se esforçava. Isso era inegável. Se esforçava para ser discreta. Nada de ser olhada pelos outros no final do dia – do jeito que olhara para os outros no começo do dia.

 

Vingancinhas têm limites. E não aceitaria provocação. Do olhar de quem quer que fosse.

 

Desistiu da tal sétima arte. Entrou em casa. Gelada de frio. A roupa molhada. Os cabelos molhados. Pela bolsa os respingos marcavam sua entrada da sala ao quarto.

 

De repente o interfone tocou. Era o porteiro. Alertava -  uma correspondência sob a porta da cozinha. Foi verificar. O selo dizia algo sobre urgente e importante. E confidencial. Algo por aí. Leu no envelope a palavra Justiça. Quase riu. Era a última palavra que pensou em ler naquela altura dos acontecimentos.

 

Abriu. Era uma intimação. Para ser testemunha. Numa ação trabalhista.

 

Agora sim. Falou por entre os dentes. Faltava mais nada. Mas tentou manter a calma. Ainda gostaria de ver os netos nascerem.

 

Deixou a finada sapatilha de lado. Teve o cuidado de guardar o envelope da tal intimação. Trocou os pingos frios por pingos quentes. Desconsiderou até a salvação do Planeta. Aqueceu-se por um tempo a mais no chuveiro.

 

Já relaxada - colocou uma ópera. Achou a escolha procedente. Apagou as luzes. Fez a viagem em volta de sopranos e tenores. Numa arena. Nada mal – pensou.

 

Estava – de qualquer jeito e sob qualquer condição – deflagrado o final de semana. Que venha, então.

 

Quando ele chegasse e ela contasse – coitado dele se risse.

 

Recostada no sofá – abraçada num edredom - riu sozinha. 

 


Julho 26 2009

 

Acordou com o dia já programado de véspera.


Adorava isso. A sua programação adiantada. Dormia sabendo o dia seguinte. Mais ou menos assim. Não era metódico. Nem obsessivo. Era programado. Palavras com sentido diverso. E funcionalidade ainda mais diversa.


E assim seguia seu estilo. Alguns até opinavam. Faziam elucubrações carregadas de teorias sobre o ato em si. Dava de ombros. Escutava mas não antagonizava.


Alguém um dia lá sugeriu. Vai ver é uma aposta na vida. No dia seguinte estará vivo. Vai ver é isso. Funciona como ordem prévia. De rotina a ser cumprida. Nada afastando a possibilidade da interrupção. Da já cuidada rotina. Desde a véspera.


Desta vez acatou. Não que estivesse em total acordo. Acordo era muito difícil de conseguir com ele. Sempre tinha um se ou um mas. Os mais próximos até se surpreenderam. Ela perguntou. Não vai falar que não. Riram. Ele não riu.


Ficou pensando. Não dizia refletindo porque cansara desta palavra. Deste verbo. Refletir passou a lhe sugerir uma observação superficial. Como uma leitura das primeiras linhas. Desconsiderando todo o parágrafo. Como uma alegoria. Sempre cabia mais imagem do que texto. Uma idéia particular. Mas não abria mão.


Assim fora mais aquela noite. A roupa da manhã já separada. A chave do carro sobre a mesa. O café da manhã já deliberado. E dormiu.


Pela manhã já se sentiu reconhecido. Tudo estava conforme o planejado. Logo era muito mais uma questão de reconhecimento. Do que de conhecimento. Assim acreditou. Tinha lá seus instantes de credulidade. Quase lúdica.


Saiu. Foi cumprir o já agendado.


Parece que alguém não entendeu muito bem. Ou se fez de desentendido.


Em meio ao rumo determinado – um susto.


Ela veio de lá. Desconsiderando listas. Projetos. Estilos. Ordens prévias. Obstáculos. Vai lá saber o que programara na véspera. Mas foi uma pancada só. E um estridente grito do metal com metal. Como uma cruel dor aguda e cortante.


Seu carro restava ali. Como diriam os poetas do além mar. E restava era a palavra mais correta. Uma parte se fora. E a que restara não se sustentava. Qual um doloroso divórcio. Onde um não sabia o que fazer sem o outro. Mas já se entendendo separados. As partes destacadas estavam bastante machucadas. Para fazer uma analogia - novamente - poética.


Olhou rapidamente para o relógio. Olhou com calma para si mesmo. A parte externa estava íntegra. Nada parecia ter sido perdido. De si mesmo.


Ela veio. Com um manual de explicações. Sim. Do jeito que falava parecia ler o Manual do Descontrole. Falava alto e ritmado. Fazia as pontuações de forma correta - mas desordenada. Explicava o por que do acidente.


Por um segundo o pensamento se deslocou. Achou maravilhoso. Que alguém soubesse explicar acidentes daquela forma.


Mas logo se recolocou. Respondeu com monossílabos. Objetivos. Claros. Talvez apenas não muito polidos. Mas para uma dama descontrolada – era o máximo que podia conter. Ela era a responsável por toda uma quebra. De metal a trato. Desconsiderando por total o dia seguinte - dele. 


Os meios de solução chegaram. Foi tudo resolvido protocolarmente. Protocolarmente.


Seguiu para a rotina. De taxi. Voltou para casa de noite. De taxi. Quando chegou informaram. Não tinha luz. Subiu as escadas. Muitas. Pela primeira vez se arrependeu. A vista era bela. Sim. Os braços abertos Dele pareciam mais próximos. E acolhedores.


Ficava mais lindo visto da sacada. Mas as escadas eram infinitas.


Superada mais esta etapa - entrou. Nada poderia mais ser feito. À falta da energia elétrica se agregaram muitas outras faltas.


Encontrou uma daquelas lanterninhas de página. Decidiu. Vou vencer mais este inesperado. Abriu um livro que recebera. Começou a ler. O texto falava sobre idéias num carro. Ou sobre a falta de micro num carro. Algo por aí. Na segunda palavra carro do texto – fechou o livro.


Precisava apenas repensar sobre o susto.  E todas as suas variantes. Sobre o evitável - previsto. Ou o inevitável - imprevisto. Ou o inevitável - previsto. Ou ainda sobre o evitável – imprevisto.


Riu. Concluiu. Foi tão somente uma discordância de tempo. Ou de espaço. Só isso. Nada tinha que ver com a véspera. Ou com o programado. Com a tal lanterninha – começou a organizar o dia seguinte. Agora com algumas novas adequações.


E foi dormir. Sem maiores nem menores - reflexões. 


 


Blog de Crônicas - situações do cotidiano vistas pelo olhar crítico, mas relatadas com toda a emoção que o cotidiano - disfarçadamente - injeta em cada um de nós.
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