Impossível negar. Foi uma surpresa.
Daquelas que pode até provocar aceleração do coração. Descoramento súbito da face. Ou o oposto. Rubor facial intenso.
Aquele recadinho me tirou da rotina. Liberou pensamentos. Fiquei muito tempo pensando nos poderes. Em todos os poderes. Mas em especial no poder da letra. Isso sem deixar de destacar a rapidez da comunicação. Mas naquele momento me pareceu o de menos. O poder da letra sim. Este o maior dos poderes.
A viagem dos caracteres mundo a fora – mal – ou bem - saídos de uma idéia.
Não importa a história pessoal. De quem escreve – ou de quem lê. Não importa o conhecimento físico. De quem escreve – ou de quem lê.
Nenhuma real materialização se faz necessária. Este é o mais belo poder de uma letra. O seu percurso é mais solitário do que a sua função. Mas nem por isso menos acolhido. Ou menos considerado.
E desde sempre. Há escritores antigos que não se tem sequer uma descrição do seu rosto. Há textos saídos dos lugares mais esquecidos do mundo. Há frases célebres de autores anônimos.
Mas o contrário não existe. É pela letra – seja qual for a intenção por trás dela- que uma atemporalidade se torna possível. E a espacialidade. A ligação entre o autor e sua letra só se torna forte pelo crivo do outro. É o leitor que cinzela o que foi esboçado. Este sempre o poder da letra. Alheio ao seu causador.
Mudam os idiomas. Mudam as tradições. Trocam-se os terrenos. Ideologias. Convenções. Estilos se multiplicam. Mas a letra circula exercendo sua função de percorrer. Livre do idealizador. Desgarrada do autor. Mais ou menos por aí.
Até lembrei dela. Uma vez se irritou. E avisou. Não quero saber de interpretação com esta pergunta. Qual a idéia do autor. A idéia do autor é mistério que não interessa. Muitas vezes até para ele. É pela idéia do leitor que um texto desperta e respira. O texto nasce e cresce nas mãos de quem o lê. A partir da avaliação de quem o lê. Procede.
Foi entre estes pensamentos que fiquei surpresa diante do recadinho. Um recadinho. Uma sugestão. Um esclarecimento.
Vinha d’além mar. Alguém de tão longe se apresentava. Sou seu leitor. Pedia permissão para opinar. Incrível. Como um poema. Ou uma poesia. Assim me veio a sensação na solicitação. Na opinião. Na delicadeza incluída na mensagem.
Por que não tenta. Se não tentou já prolongar suas pequenas fotografias que são verdadeiros instantâneos - e dar-lhes consequência. Desculpe minha pretensão e arrojo em lhe estar a sugerir isso, mas acho que seria capaz de fazer algo muito bom.
Vinha de tão longe a sugestão. Acrescentara uma pequena identificação pessoal. Lutara na guerra da Guiné.
Contou sobre o tempo de soldado na Guiné. Escrevia uns chamados aerogramas. Eram uns simples papeis azuis. Levezinhos por causa do avião.
Escrevia duma ponta à outra nos momentos vagos da guerra. Depois recomeçava a luta e parava o aerograma. Por vezes andava uns dias a escrever o mesmo - antes de ir ao correio.
Ele não me conhecia. Eu não o conhecia.
Sabia do meu estilo. Opinava de forma filosófica. Como filosófica tem que ser qualquer decifração de códigos. Só assim uma leitura se faz - por si só – uma tradução. Onde o que menos importa - é o idioma.
Apresentou-se pela opinião. Continuou pelas desculpas. Encerrou o aperto de mão com um trecho da história pessoal.
O texto instantâneo se unia ao texto histórico. Um relato por sobre o conto. E o conto por sobre o relato.
Escrever em instantâneos. Fiquei pensando nisso. No instantâneo da escrita. Isso sem falar em tantas consequências possíveis - do prolongamento de um texto. Adorei.
Foi ai que veio a real surpresa. Da magia da letra.
A Guiné ficou quase na esquina. Dava até para ver o soldado escritor – a pegar seus papeizinhos azuis. Consegui até vê-lo lendo os meus textos. Agora já numa outra etapa de vida. Onde a guerra e os aerogramas são tácteis apenas na memória.
Obrigada. Pelo retorno. Por me fazer - realmente - existir. Agradeço muito. Vou tentar. Já estou tentando. Se conseguir lhe envio. Algum dia.
Se possível em papeis azuis.