Blog de Lêda Rezende

Dezembro 06 2009

 

O amanhecer fora suave. Ainda bem.

 

Sem muito sol. Nenhuma chuva. Nem muitas nuvens. Com leve azul. Um dia para ser seguido de acordo com a vontade de cada um. Cabiam todos os gostos. E estilos.

 

Pode se conhecer um pouco mais os habitantes de uma cidade - pela atitude da cidade em torno deles. Pela forma como é construída. Pela forma como é concluída. Ou mais ainda – pela forma como acolhe a demanda de cada um dos seus moradores.

 

Nas ruas e nos jardins as flores já se antecipavam ao calendário sazonal. Os tons variavam entre amarelinhos, rosas e roxinhos. Assim enfeitavam aqui e ali. Com uma delicadeza que dava prazer de olhar.

 

Até o Parque já mudara seus tons. Surgiu um festival de cores. Muito lindo.

 

No dia que avisassem – é hoje – já estavam em pleno acordo. Viva o tempo da Primavera. Nada mais de cinza. De preto. De marrom. De botas. De corpos recobertos. Do pudor excessivo do inverno.

 

Agora todos estavam coloridos. Sandálias percorriam rápidas as calçadas. Os gramados. Bermudas liberam os que os agasalhos por tanto tempo recobriram. O chão já não tem mais o brilho frio da garoa.

 

Não há mais temor no esbarrar. Já não há tanto caminhar de cabeça baixa. As pessoas olham para cima. Para quem passa.  Cruzam e entrecruzam as ruas e as vitrines. Mais expostas. Menos pudorosas.

 

Até os comerciais mudaram.

 

Nada mais de feira de linha. De lã. De malha. De couro. De vinho.

 

Agora é protetor solar. Mil marcas e ofertas. Cervejas. Refrigerantes. Frutas.

 

Já não há mais toldos. Aquecedores. Janelas fechadas. Nos bares - mesinhas nas calçadas. Nos restaurantes - cardápios giram em torno de saladas e bebidas frias.

 

Nunca notei. Até me surpreendi. Mas é verdade. Ri-se muito mais diante do Sol.

 

E foi diante deste cenário que ele sugeriu o lugar. Perfeito. Depois ainda poderíamos caminhar um pouco. E presentear a retina com as alamedas floridas. Estava iniciado o fim de semana.     

 

Ela chegou. Já devia estar na oitava década.

 

Bonita. Elegante. Uma blusinha fina de cor verde recobria um conjunto bege. A pele clara. Os cabelos grisalhos bem arrumados. Um sutil ar de segurança dava o arremate final.

 

Escolheu a mesa. Sentou-se com cuidado. Olhou em volta com pouca curiosidade. Parecia estar muito bem acompanhada. Com ela mesma. Olhou em direção ao céu algumas vezes. Logo que chegou. Talvez para conferir as possibilidades. Confiante na própria conclusão - acalmou-se.

 

Quando o garçom lhe entregou as opções - foi decidida. Iniciou com um vinho branco. Um comportado convidado – digamos assim. Servida – pareceu se deliciar com a escolha.  Daí em diante o mundo ficou bem particular. Comeu com parcimônia.

 

De vez em quando girava o olhar pelo ambiente. E dele também se servia. Mas nada que apontasse para algum tipo de busca. Mantivera a curiosidade. Mas já dispensara a ansiedade.

 

Ela estava só. Mas não solitária. Parecia brindar algum tipo de vaidade. De orgulho. Havia algum pecado capital em torno dela. E, certamente, festejado. Disso não havia dúvida.

 

Manteve todo o tempo uma expressão de tranquilidade. Fosse o que fosse que aprendera na Vida – dera-lhe boas alegrias. Algo por aí. Difícil entender a ideia atrás do gestual. Mas ela - mesmo discreta - era exposta. Ao menos o suficiente para permitir este risco de avaliação.

 

Com a mesma objetividade que se serviu – deu por encerrado. Recebeu um discreto cumprimento de quem a atendia. Devolveu na mesma medida.

 

Quando saiu deixou a taça ainda com um pouco de vinho. O guardanapo realinhado. A cadeira cuidadosamente recolocada na posição. Mesmo na ausência – deixou marcada sua sóbria elegância. Como um sinal de respeito – por onde passava. E se comprazia.

 

Olhei para as mesas em volta. Alguns conversavam animados. Outros mais cuidadosos como temendo ser escutados. Um casal trocava beijinhos carinhosos. Um senhor reclamava do trânsito constante.

 

Solitário é quem não participa. Ou se conclui dependente por antecipação. Quem assustado - se recolhe. Ou temeroso de se expor por si mesmo – se afasta da vida.

 

Eis o que ela me ensinou. Com sua taça de vinho e sua tranqüila elegância por companhia.

 

Comentei com ele enquanto caminhávamos pelas alamedas com florzinhas recém brotadas. 

 

 

 


Outubro 25 2009

 

Olhei o relógio.

 

Pela diferença de fuso já é aniversário dela. Lá. Além mar.

 

Fiquei pensando o que dizer a ela. Como explicar em palavras escritas - toda a nossa cumplicidade. Como dar entonação à letra. Todos esses anos que participamos de nossos aniversários. E os outros tantos que deixamos de compartilhar a data.

 

Desde que ela se mudou para lá. Há muitos anos. Nunca mais parabéns para você de pertinho. Cantado. Abraçado. E que agora estou eu aqui. Lembrando. Saudando. Num silêncio de um teclado. Ou - na musicalidade que o teclado também permite. Como uma sinfonia particular. Onde o ritmo acelera ou acalma – de acordo com a emoção a ser descrita.Um Allegro e um pianissimo simultâneos.

 

Ultimamente está virando rotina. Comemorando de cá. E os aniversariantes de lá.

 

Ri. Impossível conter o riso. Festejo é assim. Sempre um riso vem conjugado. Um pretérito perfeito.

 

Lembrei a última vez. Ela estava aqui. Morávamos perto. A casa dela se preencheu de amigos. Ninguém sabe organizar uma festa do jeito dela. Prática. E linda. A festa. Ela também. Lógico.

 

E as comidas. Maravilhosas. Descobri que manga em cubinhos entrelaçada com couve refogada em tirinhas é quase um símbolo. Ou uma natureza bem viva. De prazerosa refeição. Nacionalista. Ingredientes combinados. Adequados ao paladar e à digestão. Perfeito.

 

E o bacalhau. A linha entre o espiritual e o material fica tão apagada.

 

E as sobremesas. Inesquecíveis.

 

Às vezes disfarçava. Burlava a confiabilidade alheia. Tudo que ela fazia era perfeito. Portanto podia transgredir. De vez em quando falsificava. E - de um bolo qualquer comprado – uma obra de arte surgia. E negava a receita. Coisas da minha mãe. Ela quem me ensinou. E ria da própria transgressão.

 

A mesa impecável. Toalhas lindas recebiam a louça delicada. Compunham uma vista alegre. As taças. Os vinhos. O champagne. Um banquete para os amigos queridos. E a energia afetiva a fazia parecer descansada. Como se num SPA estivesse toda a tarde. Para receber os convidados na noite.

 

E o riso - sempre feliz. E os braços - sempre acolhedores.

 

Lembro de uma vez em especial. Logo que vim morar aqui. Ela tranquila me apresentava. Aos mais supostamente esquecidos. E desconsiderava perguntas indelicadas. Ou impedia que chegassem até a mim. Não queria saber de constrangimentos. O período era difícil. Ela sabia. Não possibilitaria mais dor. Ou invasões de privacidade.

 

Sempre respeitou. Nunca questionou. Não iria permitir o contrário. Fosse de quem fosse.

 

E todos acatavam. E acataram. Sempre. Até que desistiram de questionamentos.

 

E o tempo passou.

 

O último aniversário dela aqui.

 

Sabíamos que seria um longo tempo assim. Ela além mar. E nós todos aqui. Comemorando o dia dela – sem ela.

 

Mas deixou para nós muita sabedoria.

 

 

Na delicadeza do trato. Na organização de uma reunião informal. Na formalidade de afetos. Na disposição emocional de acarinhar.

 

Premiava a cada um com seu sabor preferido. Separava até os lugares. Sabia onde cada um gostava de sentar. E deixava o espaço já quase que nomeado. Deixa para ela este cantinho. É mais tímida. Ela não gosta de calor. Deixa perto da janela. E por ai seguia.  

 

 

Ensinou que as festas são para os amigos. Importa o que eles gostam. Não entendia festa com egoísmo. Festa não é para o dono da casa. É para os convidados.

 

Hoje. Não estou lá. Mas sei exatamente como está seguindo. A programação. O festejo. O cardápio. As flores. O cheiro percorrendo a sala.

 

E mesmo com muitas pontinhas de inveja – fico feliz por todos eles.

 

Estão diante dela. Podendo conviver na rotina. Cantando os votos da data querida de lá. Que são diferentes dos cantados de cá. Mas com a mesma intenção. Por certo. Ora, pois.

 

E adivinho o riso dela. Os agradecimentos.

 

O olharzinho sorrateiro de vez em quando esticado - em direção a todos nós. Que aqui estamos. Deste lado de cá do descobrimento. Celebrando e cantando de dentro do nosso coração. Enviando para alguma estrelinha que passe. Para que ela receba de lá.

 

Parabéns - Lia querida. Muitas saudades. Muitas felicidades. 

 

 


Setembro 14 2009

 

O dia estava agitado.

Agenda completa. Sem falar nas intercorrências. Atividade sem intercorrência não é atividade. Não há a menor possibilidade. De se levar o dia sem que ele – o dia – traga alguma intercorrência. Isso já deveria constar em autos. Em contratos. Até em decretos. 

 

Mas enfim. Tudo parece ficar mais leve numa sexta-feira. Pelo menos para alguns.

 

Assim que entrou telefonou - para ela - avisando. O aviso foi repassado.

Vai chegar uma encomenda para mim. Soube agora. Por favor, quando chegar me avise. Assim. Com toda a calma. Não sabia o que era. Por isso mais não podia detalhar. Apenas avisou.

 

E deu continuidade na sua rotina. O dia foi passando. Esqueceu da encomenda. Esqueceu do aviso. Não teve o ócio necessário para o exercício da expectativa. Muito menos para o da curiosidade. Continuou com as tarefas.

 

De vez em quando lembrava. Hoje é sexta feira. E ria com tranqüilidade. De si para si.

 

Sexta – feira. Há um tempo deixara de comunicar isso ao mundo. Era até engraçado. Já acordava avisando ao mundo. Hoje é sexta-feira.

 

A ele sempre enviava cedo o recadinho. Hoje é sexta-feira. Depois concluiu que era uma comemoração dela. Não tinha que sair avisando. Afinal – todos tinham lá seu calendário. É verdade. Festejo é da ordem da individualidade.

 

Mesmo se for num grupo- é cada um com sua idéia do festejo. Mesmo que compartilhando. Calendário é particular. Não é uma divisão social. Ou uma soma. Muito menos uma multiplicação. Nessa hora até riu.

 

Decidiu parar com a calculadora. Se não era para ser partilhado – também não tinha por que ficar ali construindo pequenos cálculos. Ela então. Era de rir. Ou para rir. Mal sabia somar dois e dois. Sempre odiou contas.

 

Vai ver por que era sexta-feira. Riu.

 

Em meio às tarefas contas e calculadoras - a cena se efetivou.

 

O corredor era largo. Longo. Piso branco. Paredes brancas. Uma porta de vidro separava as alas de espera e de circulação. Digamos assim. Em meio ao corredor um balcão. Também branco. A luz entrava por janelas amplas de vidro.

 

O dia estava chuvoso. Frio. Cada um se protegendo com agasalhos e cachecóis. Um ou outro respondia uma dúvida aqui. Outra ali. E esperavam as deliberações. Também digamos assim.

 

Ela veio. Da ponta do longo corredor. Que ficou parecendo ainda mais longo.

 

Veio caminhando. Com uma braçada de rosas vermelhas. Dentro de um lindo vaso de cristal. Envoltas em papel transparente. Um belo laço vermelho arrematava o vaso e as flores. Um lindo e enorme arranjo. A desfilar pelo longo e largo corredor branco. Carregado por ela.

 

Ela comentou - caminhando. Eis a tal encomenda. Que enviaram para ela.

 

Quando vi as flores chegando - pensei que fossem para mim. Mas qual nada. São para ela. Li o nome no envelope do cartão.Foi ai que lembrei o aviso da tal encomenda. Que chegaria. Chegou. Deveriam ser para mim. Mas são para ela. E ergueu um pouco as flores enquanto - sorrindo - dizia e repetia. Junto com as sobrancelhas e um olhar ambíguo.

 

O tempo muitas vezes se faz um reflexo. Talvez um reflexo medular.

 

Primeiro o ato. Depois a compreensão. Foi tudo muito rápido. Ela falou. De pé. Caminhando. Assim. Perfeito. E – logo depois - já era outra cena. Teve aquele lapso de tempo. Até que todos compreenderam.

 

Ela escorregara. No momento que falou e ergueu um pouco o arranjo. No longo e largo corredor branco.

 

Por cima dela – deitadas - estavam as rosas vermelhas. A água. O laço. O vaso. Assim.  Como uma cena desorganizada daquele filme dos irmãos do Norte. As rosas espalhadas. Apenas a água parecia se divertir na fuga do continenti. Brincava por entre a roupa e os cabelos dela.

 

Um ou outro sorriu. Todos correram em auxílio.
As flores foram devolvidas ao lugar onde estavam.
Uma nova água veio fazer parceria ao vaso.
O laço – procede - só ele ficou sem solução.

 

Ela se secou com toalhas rapidamente trazidas. Sem maiores nem menores consequências físicas. Até esboçou um risinho. Menos ambíguo que o olhar. Talvez.

 

Diante da cena composta e recomposta – lembrou da avó de uma amiga.

 

Sempre fazia um alerta. Escorrega-se muito mais pelo que se pensa do que por onde se pisa, menina, muito mais pelo que se pensa do que por onde se pisa.

 

Esta foi a primeira frase que ocorreu. Veio de imediato.  Mas nada falou.

 

A situação dispensava acréscimos teóricos. O que tinha de prático em si já era suficiente.

 

Enfim. O dia acabou. Comemorou a sexta-feira. Pegou a encomenda quase destruída. Decidiu levá-la para casa.

 

Desta vez – ou como quase sempre – não pode deixar de sorrir. Dedicou um sorriso sorrateiro em homenagem ao Mestre austríaco.

 


Blog de Crônicas - situações do cotidiano vistas pelo olhar crítico, mas relatadas com toda a emoção que o cotidiano - disfarçadamente - injeta em cada um de nós.
Para os mais curiosos:
pesquisar
 
Comentaram o que leram!! Obrigada!!!
Casaste?
Estou bem obrigado
Olá Leda, tudo bem?
Olá LedaVocê está bem?Um Beijo de Portugal
Olá!!!Não consegui encontrar o teu blog no blogspo...
Parabéns pelo seu post, está realmente incrivel. V...
mau e excelente!!!!
Ótimo ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||...
Gostei.
COMO PARTICIPAR NAS EDIÇÕES DO EPISÓDIO CULTURAL?O...
Julho 2014
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5

6
7
8
9
10
11
12

13
14
15
16
17
18
19

20
23
24
25
26

27
28
29
30
31


subscrever feeds
blogs SAPO