Blog de Lêda Rezende

Abril 12 2009

Tomara uma decisão. Foram muitos dias pensando. Refazendo. Advogando. Em causa própria. Em causa alheia. Em causa financeira. Em causa estética. Não faltaram causas. Nem contras. Muito menos a favor. E isso durou dias. Até que concluiu. Ia fazer. Ia mudar. Desta vez seria diferente.

 

Estava se sentindo corajosa. Até arriscaria a se dizer segura. Coisa que definitivamente não era. Sentia-se uma farsa. Mas não uma farsa qualquer. Uma bem elaborada. Porque todos acreditavam o contrário. Do que ela realmente era. Assim são os verdadeiros falsários. Pensou num chiste consigo mesma. Vendem a cópia só para os olhos de quem acredita ver o original. O importante é o olhar do outro. E olhar acaba sempre confundindo. São tantas as idéias. Mas enfim. Depois da filosofia veio a atitude. Até levantou. Fez o que se deve fazer após uma decisão. Ficar de pé. Dá muito mais nobreza. Impõe muito mais grandeza. Assim, ao menos, concluiu. De pé.

 

O dia estava bonito. Tinha aquele céu azul turquesa do inverno. Uma temperatura insegura. Tudo bem. Nada é perfeito. Mas antes assim que um dia de calor. Tem nada pior que tomar uma decisão acalorada. Riu de novo.

 

Sentiu que estava de ótimo humor. Agora era só agir. Nem acreditava que estava tão disposta. Já acordara com esta idéia colada no cérebro. E ela era assim. Quando inventava uma coisa, nada a demovia. Mas nunca sobre este aspecto. Esta fora a primeira vez. Assim. De forma tão peremptória.

 

Avisara que já estava de saída. Falou do propósito. Todos riram. Não acreditaram. Olhou surpresa. Não entendeu. Como uma coisa tão simples permitia dúvidas. Tantas e tantas pessoas faziam isso. Milhares. Num dia. Num mês. Pela vida toda.  Até porque era sempre temporário. Passado um tempo podia ter a decisão vencida. Mas sabia que a culpa era dela. Não sabia se culpa era o termo exato. Mas depois de tantas causas apresentadas culpa não haveria de faltar. Afinal ela não mudava muito. O estilo. Mas desconsiderou os comentários. Confirmou o que falou. Recebeu de volta risos - também confirmados. Incrédulos. Todos. Deixou os risos de lado. E foi cuidar de agendar. Conseguiu um horário. Não se identificou. Estava já cansada de risos.

 

Arrumou-se. Ergueu os ombros. Passou a mão na bolsa. Deu um beijo no filho pequeno. De dez meses. Avisou que demoraria pouco. Saiu feliz.

Sentou-se. Todos já a conheciam. Avisou o que queria. Também riram. Um mais distante achou que escutara errado. Chegou perto dela e pediu para repetir. Ela disse em alto e bom som.

 

Corte. O mais curto que puder. Quero mudar.

 

Não faltaram gracinhas. Alguém sugeriu avisar ao marido. Outro gritou de lá se queria que chamasse uma ambulância com UTI. Perguntaram sobre oxigênio. Estrogênio. Serotonina. Adrenalina. Teve de tudo. Acabou quase em festa. E todos rindo. Ela continuou. Decidida. E corte logo. Não tenho a tarde toda.

 

A decisão pode parecer banal – mas nem sempre é. Mexer com a imagem é perigoso. Certos os que queriam até chamar o marido. Foram os longos fios caindo e ela perdendo a voz. Quando acabou estava rouca. Não dava uma palavra. Mas respirava bem. Dispensaram a ambulância.

 

Olhou-se no espelho. Gostou do que viu. Só não pode falar mais porque a voz não deve ter gostado. Sumira. Junto com os longos fios. Mas agradeceu com sinais e saiu.

 

Voltou para casa. Sem voz. Sem cabelos longos. Foi dar um beijo no filho. O de dez meses. Ele chorou. Deve ter desconhecido a antes conhecida. Mas ele fora o único corajoso. O único que se expressara. Com sinceridade. Vivas sempre à sincera coragem das crianças. Os outros todos se espantaram. Mas, sábios – ou temerosos - elogiaram. Sempre é uma linha difícil esta. A que fica entre a sabedoria e a covardia.

 

Resolveu tomar uma ducha. Viu que sobrava mão e shampoo. Lembrou daquela Lady loura e seu cavalo. Mudou rápido o pensamento. As costas até se arrepiaram pelo contato direto com a água. Nunca antes isso tinha acontecido. Pelo menos desde que se lembrava. Sempre fora assim. De cabelos muito longos. Mas isso era passado. Passado. Repetiu. E quase soletrou para acreditar.

 

Olhou primeiro para a moldura do espelho. Depois para a imagem do pescoço exposto. Em seguida olhou para os céus. Prometera não se arrepender. E estava firme na promessa. Mas arriscou uma observação. Será que teria uma solução. Será que era verdade. Que o tempo voava. Quem sabe tem alguma Santa de plantão. E compreende. E ajuda. Nesta questão do tempo.

 

Torceu que sim. Mas, além da conversa rouca com a Santa, nunca falou isso para ninguém.

 

 


Abril 01 2009

Acordara muito cedo. Tinha mil afazeres antes de sair para a rotina profissional.

 

Com filhos pequenos muito cedo sempre já é atrasado.

 

Por mais que fosse organizada. Tinha um hábito. Planejava a vida de véspera. Escolhia a roupa. Organizava papéis. Separava documentos. Deixava a agenda já na página certa. Para o dia seguinte. Achava prático.

 

Neste dia não foi diferente. Acordou cedo. Mas algo saíra de fora da ordem.

 

Esquecera a janela aberta e a chuva molhara toda a salinha. Olhou resignada. Para o relógio primeiro. Para o chão depois. Fez um cálculo. Daria tempo. Com um pano e acessórios secou o chão. Sentiu que tomara a decisão certa e no tempo adequado. As crianças não escorregariam e na volta à noite tudo estaria em ordem. Se auto vangloriou. Sempre tomava decisões corretas. Riu. Guardou o paninho. Foi acordar as crianças.

 

A esta altura já mais apressada. O tempo não sorri para as boas ou más decisões. Fica lá. Só cuidando da função dele. As decisões correm por conta do autor. Exclusivamente.

As crianças levantaram. Duas. Duas crianças. Começaram a se arrumar. Não agiam iguais a ela. As crianças vivem o dia. Não se atentam a viver de véspera. Não antecipam o dia seguinte. Procede. E lá ficaram. Procura uma coisa dali. Outra daqui. Esquecem os dentes. Voltam. Escovam os dentes. Esquecem a torneira aberta. Voltam. Fecham a torneira. Não acham o material do dia. Procuram. Não encontram definitivamente. Solicitam ajuda. E por aí vai. E ela já olhando o relógio. Tinha uma reunião. Nem pensar em se atrasar. Imagina. Era A Pontualidade. Se alguém procurasse o significado desta palavra no dicionário -  encontraria a foto dela.

 

Tomou mais uma decisão. Já arrumada. Pensou. Imagina só. Para que tirar o liquidificador de cima do móvel. Para fazer o leite dos filhos. Que idéia. E passara anos fazendo a mesma atitude. Nada prática. Colocou o leite. O chocolate. Até bananas dentro. Exibida com sua nova idéia. E a idéia lhe fazia ganhar tempo. Tirar tudo do lugar. Bater. Recolocar. Isso já a faria perder preciosos minutos. Decidiu que acordara carregada de novas e boas decisões. Orgulhou-se de si própria.

 

Chamou as crianças. Já arrumadinhas. E ligou o liquidificador.

 

Voltou a si um tempo depois. Ficara ali. Catatônica. Olhos esbugalhados. Obviamente depois de limpá-los. Os olhos. As crianças a chamavam de volta a si. Assustados. Quase chorando.

 

Ligara o liquidificador. Sem querer, vai lá saber por que - ou o que – algo enroscara no fio. Que esticou o liquidificador ligado. Que desceu do alto do móvel. Cumprindo sua qualificação. Liquidificando. Sem a tampa e caindo. Caindo. De alto a baixo. E achocolatando tudo. E a todos. Com bananas enfeitando cabelos, roupas. Como pedacinhos decorativos. Do que não pôde ser totalmente liquidificado. Nada sobrara.Ou faltara. Nem a roupa dela. Nem o uniforme das crianças. Nem o cabelo. Os cabelos. Chão e paredes.

 

Nem todo decorador e sua sabedoria teriam conseguido aquele efeito.

 

Quando finalmente voltou a si, se é que o estado seguinte assim pode ser denominado, notou que perdera a visão de um olho. Por ele nada enxergava. Imaginou que a tampa devia ter batido em seu rosto. E com o trauma perdera a visão. Tinha lido há pouco um relato parecido. Estava tudo escuro. E frio. Com desespero informou que estava cega de um olho. Diante dos gritos das crianças. Passou a mão no rosto. Que tragédia. Justo ela. Que vivia de véspera. Que injustiça. E na passada de mão tirou dos olhos o leite com o chocolate e a banana grudada. Enxergou de volta. Estava curada. As crianças ainda choravam. Ela desatou a rir. E as crianças choraram mais alto ainda.    

 

Telefonou para o escritório. Nunca havia feito isso antes. Avisou que tivera um problema. De véspera. Que iria chegar muito atrasada. Pensaram que ela tinha sido seqüestrada. Que era um código. Um apelo. Qualquer coisa. Menos que ela se atrasasse. Isso nunca. Ela bateria até no sequestrador. Temeram. Pelo seqüestrador. Foi difícil convencê-los do fato. Mas conseguiu.

 

Quando a véspera se restabeleceu, saiu. Com as crianças.

 

Encontrou a vizinha no elevador. Que comentou. Está atrasada hoje.

 

Pensou em tudo. Cadeira elétrica. Enforcamento. Cabelos arrancados. Rosto riscado por unhas. Respondeu por entre os dentes. Coisas do liquidificador. Virou-se e saiu.

 

O salto do sapato exibia um pedacinho de banana.

 

A vizinha – se percebeu - não avisou.

 

 


Março 29 2009

De repente lá estava a Vida emboscando os métodos.

 

Lembro o dia da chegada deles. De cada um em especial. Vai ver por que foi nesta época. Agora são dias de festejos. Tempo de festejos. A cada ano se renova a emoção. Eles sempre riem de mim. Por que a cada ano aviso que esta sim, é uma data especial. Pelos anos vividos. E eles sempre respondem. Que falo isso todo ano. É verdade.

 

Mas falo porque realmente acho. Que cada etapa vivida, seja de calendário, seja de emoção, é sempre única. Eis algo que não se pode repetir. Quando chega se bate palmas. No dia seguinte já acabou. E é seguir para aguardar a próxima. Que será, de novo, única.  

 

Chorei pelos dois. E dizem que só se chora pelo primeiro. Que a emoção é mais precipitada. Pela descoberta.  Pela iniciação. Sei lá mais o que dizem. Não conheço nada mais cantado. Em prosa e verso. Esculpido.  Pintado. Redesenhado. Referendado. Poderia aqui fazer um novo tratado.

 

Nem sei quantos já vi representados. De forma eterna. De forma prosaica. Dos sacros aos profanos. Do clássico ao cubismo. Sempre a busca pela representação perfeita. De um afeto. De uma nova função. Muitas vezes de uma esperança. Sobram estilos. Sobram cores. Sobram frases. Mas falta sempre a verdadeira exposição. Acho que afeto é assim. Uma força de expressão.  Eufemismo persistente diante do que realmente se sente.

 

De nada serve tanta informação prévia.  Experiência alheia. Teorias antigas. Modernas. Técnicas. Nada. Só no momento em que se instala é que cada uma vai poder sentir. E vai repetir. A constante busca da palavra perfeita. Da expressão perfeita. Para definir.

 

Avisei que não conseguia falar. Que estava perdendo a voz. Todos riram.

 

E ele disse em tom irônico. Que nunca tinha visto alguém falar tanto. E avisar que estava sem voz. Tudo isso antes. Imediatamente à tremedeira. Às tremedeiras, melhor dizendo. Porque tudo que aconteceu na primeira vez, aconteceu na segunda. Mesmo que com um hiato de alguns anos. Parecia reapresentação. Tudo igual. Mais uma vez. Tremi nas duas vezes.

 

Incontrolável. Tremia tanto. Sacudia todo o corpo deitado. Todos em volta riam. Todos eram amigos. Mas não compreendiam. Lembro de um detalhe especial. Por causa da tremedeira.  Seguraram meu queixo. E espantados comentavam.  Nunca souberam de alguém que precisasse ter o queixo segurado.  Neste tipo de situação. Para que a finalidade fosse cumprida.  Precisei. Seguraram com força. Bendigo até hoje esse ato de generosidade. Não me restaria um só dos necessários a uma boa mastigação.

 

Mandavam parar. Mandavam acalmar. As ordens vinham aos montes e de todos os lados. Mandaram até pensar em outra coisa. Nesta hora quase ri. Como. Como poderia pensar em outra coisa. Que coisa seria essa. Que boa idéia tiveram. Em segurar meu queixo. Assim pude transparecer educada. Que sorte. A deles. Pensamento não sai em legendas. Como nos desenhos animados. 

 

Como disse certa vez, o corpo não obedece a ordens. Pelo menos as de fora. Quando decide se comandar nada mais o impede.  E o meu estava se comandando do jeito que achava que devia. Tremer também é forma de expressão. É festejo. Hoje sei disso. Na época não sabia.

 

Só tremia.  Nunca mais tremi assim na vida. Só essas duas vezes.

 

Quando chegaram, cada um na sua época, o corpo parou de tremer. Chorei nas duas vezes. No início só falava e avisava que não tinha voz. No depois não conseguia falar. Como se a voz não tivesse mais importância alguma.  Por um instante me fiz silêncio.

 

O silêncio era diferente dos que já tinha vivido. Inegável.  Era silêncio povoado. De emoções mistas. E individuais. Não conseguia dividir com ninguém o que sentia. O que estava começando saber.  A conhecer. A aprender.

 

Me fiz colo. Me fiz olhar. E me desfiz e me refiz em sorrisos. Até hoje.

 

Não posso esquecer o poetinha que nos advertia deste – para sempre - logo depois. Dos pedidos fervorosos de salvação. Do choro de desespero por qualquer ameaça de sofrimento. Da solicitação eterna de proteção divina. Terrena. Angelical. Não há santo em descanso no depois. Nem bem se encerra um apelo e já vem muitos mais em seguida.

 

Agora se completam tantos anos. Nos festejos têm tantas vozes. Muitos se agregaram. Outros se foram. Somos mais que antes e menos que antes - ao mesmo tempo. Há lugares vazios nas fotos e lugares preenchidos na memória. Risos novos e lágrimas velhas. O inverso também procede.

 

Mas a magia da vida se faz valer. E faz valer a Vida. Continuando.
Ano após ano. A cada ano.


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