Ao final do dia - o cheiro invadiu a casa.
Lembrei do livro. O autor - já bem vivido - explicava. O paladar começa pelo nariz. Perfeito. Nunca li nada mais adequado. Nem importam os dados da Fisiologia. Ou da Anatomia. Muito mais vale a Filosofia. Não existe órgão do sentido excludente. Eis uma táctil e aromática verdade.
Já acordei assim. Como guiada pela manufatura. Ou pela ansiedade das mãos.
O dia amanhecera um pouco silencioso. Diante de um frio insistente em ficar. E de uma garoa persistente em desobedecer. Nada de espaço primaveril. Mas as estações devem ter lá um próprio manual de instruções.
Que sigam - de acordo. E que nós daqui nos adaptemos – sem acordo.
Enfim esta não é a minha tarefa.
A minha daquele dia já havia sido definida. Há trinta e dois anos. Agora era uma questão apenas operacional.
E desde cedo comecei os preparativos. Mas não sem uma organização. Coloquei música. Em um sequência que surgiu de repente. Nada muito programado. Mas acatado. Como um ritual. Talvez seja assim a arte da manipulação dos alimentos. Muito mais que facas e pratinhos. Um ritual especial - por si só - se estabelece e se confirma. Alheios a nós. E tantas e tantas vezes sequer percebemos.
Desta vez foi especial. Fiz como que compactuando. Ao menos dentro do possível de uma racionalidade.
Corta. Amassa. Desfolha. Enfeita. Acrescenta. Separa. Destaca.
A música se fez sábia. Sim. Nada do que foi será igual ou do jeito que já foi um dia.
As mãos e ingredientes se fizeram um só. Difícil até saber quem comandava quem. Ou o que.
Mas lá fiquei. Entre músicas e memórias. E aí foi impossível não lembrar a minha avó. Ela repetia com muita segurança. Cozinhar e viver - é a arte de saber dosar, menina, cozinhar e viver - é a arte de saber dosar. Procede.
Corta. Amassa. Desfolha. Enfeita. Acrescenta. Separa. Destaca.
Olhei para o colorido dos ingredientes. Para a disposição deles em panelas e pratos. Parecia uma rosa dos ventos. Ri. Vai lá saber de onde saiu esta idéia.
Vai ver foi da música que tocava. Amanheceu o espetáculo. Como uma chuva de pétalas. Ri e continuei dando toques e retoques. Afinal – não é só de boa intenção que sobrevive o paladar.
A esta altura já estava misturando mais ingredientes que os da realidade culinária. Tentei me acalmar. Deve ser assim que se cozinha. Uma pitada de história. Uma ponta de saudade. Um ramo de alegria. Uma colher de nostalgia. Uma dose de contradição. E por aí vai. O importante é estar em sincronia com o processo. Um erro em cada parceria – uma pitada que seja – e lá se vai o doce sabor do proposto.
E foi em meio a tantos rituais e conclusões – que ao final do dia - o cheiro invadiu a casa.
Delicado. Independente. Intenso. Surpreendente. Delicioso.
Saiu de dentro dos continenti e se espalhou. Pela cozinha. Pela sala. Por todas as varandas. Subiu as escadas. Passou pelo terraço. Mexeu com os deuses.
Sorriu para o Banquete. E voltou – completo - para dentro de onde saíra.
Ao final da tarde – parei. O dia cabia dentro da noite que chegava.
Na cozinha os sinais de guerra estavam já apagados. Tudo parecia composto de magia. E não deixava de ser. Não havia sinal de ato braçal. E sim de ato manual. Pode parecer semelhante – mas não é.
Continuei. Agora caminhando e olhando em volta. Gostei do que vi. A mesa posta em tons suaves. Tudo em azul e branco. Num canto discreto orquídeas cor-de-rosa. Penduradinhas em seus cachos faziam o contraste mais belo. As taças altas pareciam sair de pedestais. A sala se enfeitava com efeitos múltiplos de um festejo conquistado.
A campainha tocou. Eles chegaram. Parecia até nome de filme. Seis à mesa.
Ri. Os brindes foram feitos. Votos renovados. Fotos atualizadas.
A música continuou. Parceira simbólica dos gestos e falas. Godiamo, la tazza e il cantico la notte abbella e il riso.
Estava confirmada a comemoração. E já parte da história de todos nós.