Eram muitos os temores. Sempre.
Vivia sob constante pressão. E nem sempre como meta de educação. Mas enfim. Ideias e ideais nem sempre caminham de mãos dadas.
Entretanto - não podia negar. A cada aborrecimento ou obstáculo – assim se recompunha.
Você quem contou. Se não ela nunca saberia. Isso não vale. Você bem sabia o que iria acontecer. Quando ela soubesse. Mas - observe aquele mosquitinho. Ali na cortina. Lá em cima. Viu agora. Certo.
Ele é um disfarce. Na realidade é um monstro terrível. E maior do que este quarto. Ele é meu amigo. O mosquitinho. Muito meu amigo. E viu o que você me fez. E agora está ali disfarçado. Quando você dormir vai lhe engolir. Inteirinho.
E você nunca mais vai contar a ela. Pare de chorar. Se ela escutar vai acontecer de novo. E será já. Que ele vai lhe engolir. Fica calado logo.
Vai sim. Vai deixar amarrar seu pé - no meu. O cordão é comprido. Tem bastante. Dá para passar pelo chão. E de uma cama até a outra cama.
Vamos dormir assim. Se eu tiver medo – lhe acordo. Claro. Estico seu pé. E você acorda. E meu medo passa. Ela não vai ver. E só vai saber se você contar.
Acho bom não esquecer o meu amigo mosquitinho. Esta sim. Está escondido. Eu sei onde. Mas você não pode vê-lo. E só aparecerá se você não me ajudar.
Vou esconder em sua mochila. Eis um lugar onde não vão procurar. Sim. As notas. Estão ruins. Não sou boa naquela matéria. Mas se souberem agora – adeus festinhas de aniversário. Depois entrego. Não vai contar. Pensa bem.
Não se preocupe. Depois eu retiro de lá. E nunca vou contar que você ajudou. A esconder. Claro. Para de ser medroso. Já falei.
E assim se vão seguindo. E assim se foram. As soluções imediatistas da infância.
Ela nem sabia por que ficara lembrando. Tudo já estava tão distante.
O tempo já estava tão avançado. Nem espaço. Nem tempo. Nem convivência. Nada mais era parte do cotidiano deles.
Mas as lembranças foram chegando. Sem pedir autorização. Invasivas. Autoritárias. Mas procedentes.
As lembranças são sempre oportunas, menina, as lembranças são sempre oportunas.
Escutara isso um dia da avó de uma amiga. Lembrava até de alguns detalhes. Era um dia quente de verão. Estavam numa praia. A avó começara a falar do próprio passado. E alguém sugerira mudar de assunto. Para que não ficasse triste. Ela virou-se para a neta e falou isso. Das oportunidades das lembranças. Estava certa.
Eram muitas recordações. E sequer sabia como ordená-las. Mas deu liberdade total. Até facial. Podia se imaginar com mil expressões diferentes.
De riso a choro. Sem pular as de tensão ou de alívio que circulam sempre entre as duas. E na ordem desejada.
Eis algo em que a consciência não tem poder. A celebração das lembranças. Fica tão fora do pragmático.
Em meio a essa lúdica bagunça mental – deu um pulo da cadeira. Então era por isso. Era o aniversário dele. Pensara nisso o mês todo. Fizera vários cartões imaginários. Quase fundara uma retórica nova – tamanho o conteúdo dos discursos que criara. E justo no dia estava saindo da memória. Quase.
Imagina se ele soubesse. Que ela tanto lembrara como esquecera. Ele que iria ficar amigo do tal mosquitinho. Deu até um tapinha na testa. Riu. A avó tinha mesmo razão.
Ficou com uma dúvida. Será que ele se recordava. De tudo aquilo.
A infância é tão seletiva e encobridora em termos de fatos. De atos então. Parece outra vida. Não existe outra fase em que a observação seja tão particular. E sem rodeios. Cada um vendo o mundo por olhinhos tão especiais. Por isso quando coincidem lembranças – é sempre uma surpresa.
Quantas vezes ela escutara um pasmo– você também se lembra disso. Inúmeras.
Mas é preciso a maturidade adequada para assimilar a infância. As contradições. As buscas. E a falta absoluta de inquietações.
Estas só chegam depois. Na infância – não. O pensamento mágico - junto às praticidades instantâneas - permite um colorido nunca mais re-inventado.
Levantou. Telefonou para ele.
Já atendeu rindo. Sabia que era você. Vi um mosquitinho passando por mim há pouco - parecia feliz. Ao menos não quis me engolir.
Riram. Muito.