Blog de Lêda Rezende

Dezembro 17 2009


Não dá tempo.

 

Esta ficou a frase oficial. Tomou como acessório. No final do ano. Entre o trabalho e as férias dela. Dela. Mais uma vez tivera esta idéia. Não aprendia mesmo. Já era a terceira vez que dava férias a ela nesta época. Devia ter um traço masoquista. Pensou. Melhor agendar um especialista nesse tipo de patologia. Porque só poderia mesmo ser uma patologia.

 

Mas enfim. Agora não tinha mais jeito. Era fazer de conta. De conta que não estava cansada. De conta que daria conta. De conta que sozinha se faz mais rápido. De conta que não queria chorar de arrependimento. Tanto fez de conta que acreditou. Não reclamou. Sequer comentou.

 

E lá se foi organizar a festa. Quase chorou. Não dava mais tempo para a árvore. Nem um só lugar tinha mais. Para vender. Alugar. Até emprestar.

 

Imaginou mil soluções. Mas todas dentro do inviável. Nada de arrancar galhos das ruas. Muito menos das casas. Ou sair correndo com as árvores das vitrines. Ou tirar da sala da vizinha. Não sabia como fazer.

 

Lembrou da avó de uma amiga. Só na falta brota criatividade, menina, só na falta brota criatividade. E resolveu usar a própria. Criatividade.

 

Nada de sair por aí pegando a dos outros. Aliás, nem pode. Nem serve. Criatividade é igual uma impressão digital. Cada um com a sua. Até para copiar tem que ter criatividade.   

 

Caminhava há um tempo. Em busca da tal solução criativa. A falta estava já em posição antagônica. Porque era o que mais sobrava. Estava até com vontade de se zangar com a avó da amiga. Mas seria uma briga desleal. Desistiu.

 

Vai lá saber por que, virou-se para a vitrine daquela lojinha. Assim. De repente. De forma despretensiosa. Até poderia dizer desesperançada. Em meio à avenida. Em meio ao tumulto. E viu. A solução para sua festa de Natal. Até olhou para o céu. Ou para o espaço que os prédios permitiam - para ver o céu. Olhou. Deu uma piscadinha. Agradeceu.

 

Saiu de lá feliz. Não saltitou porque o cansaço não permitia. Mas a emoção saltitava pelo corpo. Muitas vezes isso funciona. E muito bem. A emoção faz o que o físico já não obedece.

 

A sacola não era grande. Nem pesada. Mas cabia toda uma festa dentro dela. Esta foi outra coisa que aprendeu. Naquela hora. Naquela situação. De imediato.  Volume e finalidade cumprida não são sinônimos.

 

Já em casa nem deixou o tempo passar. Logo iniciou sua tarefa. Foi tão divertido que nem assim denominou. Dividiu por todo o ambiente. Colocou em lugares nunca dantes imaginados. Não faltou cantinho. Pontinha. Cabeceira de cadeira. Pé de mesa. Abat-jour. Moldura. Porta retrato. Corrimão de escada. Puxador de porta. Até torneira de lavabo. Castiçal. Fio de telefone. Galhinho de planta.

 

Com calma organizou - o jantar. Já nem se cobrou pelas férias dela.

 

Quando eles chegaram - só riam. Adoraram. E cada um descobria em mais um lugar bizarro. Mais um. Que o outro não tinha visto.  

 

Concluíram. A sala toda era uma árvore de Natal. Contaram sessenta lacinhos vermelhos. Com miolinho dourado. Por toda a sala. E sorriram felizes com a surpresa. A cada momento se escutava um gritinho. E uma risada. Com decibéis de surpresa acoplados.  Avisando – mais um ali. Mais outro lá. Ele achou maravilhosa. A idéia. E a composição da idéia. Ganhou muitos abraços e beijinhos. Pelo ato. Pelo fato.

 

No circular pelo ambiente teve uma sensação. De escutar um “eu não disse”. Nada comentou.

 

Olhou a casa toda. Achou linda. Gostou. A mesa posta. O colorido vermelho. A alegria de todos em volta. A cumplicidade. A solidariedade. A afetividade. Brindaram felizes. Sorriu satisfeita.

 

Feliz Natal. Disseram todos. Entre abraços e risos. Feliz Natal. Respondeu. Sorriu. Também em direção onde supôs escutar a advertência.

 

Acrescentou um brinde aos amigos.Palpáveis. Virtuais. Recentes. Antigos. Presentes. Ausentes. Distantes. Próximos.

 

Feliz Natal!

 

 


Novembro 17 2009

 

Quase não acreditei.

 

Abri a porta do quarto. E fui em direção às escadas. Assim. Com a sequência reconhecida. No habitual da rotina. O ato em si. Mas desta vez fugia ao destino.

 

Desta vez um rumo novo. Uma direção escolhida. Uma data festiva a ser comemorada. E tinha hora certa para dar inicio. A hora da partida sendo a mesma do inicio. Perfeito.

 

Lembrei logo da minha avó. Ela afirmava com propriedade. Entre o que começa e o que termina não tem sequer uma linha, menina, entre o que começa e o que termina não tem sequer uma linha.

 

Foi pensando nisso que sai do quarto. Entre a alegria da novidade. E o pensamento já antigo.

 

Primeiro o susto.

 

Estava tudo branco. Não via a paisagem. Só a cor branca se fazia plena. Muitos pensamentos se enfileiraram. Talvez em auxilio. Lembrei do Ensaio. Lembrei do Disco. Fiquei tentando adivinhar as cores. Compreender o excesso. Parada. Antes mesmo de descer as escadas tudo já havia ocorrido.

 

Não faltaram ideias. Ou recordações. E tudo diante do branco de uma paisagem ocultada. Enfim.

 

Depois a decisão.

 

Desci as escadas. Do lado de dentro - sala estava envolta no branco. Do terraço não se via nem o gradil. Como se houvesse nada além da imensidão branca. Ocupando todo o espaço. Apagando obstáculos. Limites. Acessos. Coerente com o incompreensível.

 

Mas lá me fui dar conta do planejado. Sem filosofias. Sem construções literárias. Tinha que prosseguir em tempo. Pelo tempo. Dentro do tempo. Que o branco lá ficasse.

 

Pragmatismo em ação. Tudo resolvido.

 

O que sobrou em branco - sobrou em falta. Faltava teto. Esta a explicação lógica. Sem teto – sem pouso. Sem pouso – sem decolagem. Simples assim.

 

Podia-se olhar o branco pelo tempo que agradasse. Mas do solo. Só isso. Enfim. Várias parcerias se estabeleceram. E lá ficamos a aguardar que pelo menos uma delas se dissolvesse. Para que o projeto continuasse dentro de uma possível execução.

 

Quando o Disco iniciou sua decomposição – o azul foi se aproximando. Enfim.

 

Cores e nuances iniciaram as suas tarefas. Com o mundo colorido – voltou-se ao propósito inicial.

 

Já não era sem tempo - disseram alguns. Olha o tempo que perdi – comentaram outros. Agora não chegarei mais a tempo – falou alguém com tristeza na voz.

 

Alguns se olharam. Outros ficaram dentro dos seus pensamentos. Talvez nem tão brancos como antes a paisagem. As expressões eram bem tensas. Talvez estivessem no oposto do Disco. Vai lá saber as conseqüência de uma total brancura. E alheia a qualquer avanço tecnológico. Uma brancura por si só.

 

Uma cor – é uma cor. Apenas isso.

 

Quando todos se acomodaram – os avisos começaram.

 

Orientações sobre segurança. O que é proibido. O que é permitido. O que é impossível de ser transgredido. Seguidos de explicações. Situações independentes da nossa vontade. Assim explicavam. Como uma valiosa informação prestada.

 

Sentados e acalmados – houve uma sensação de tranqüilidade. Como se já afivelados – o tempo voltasse ao controle. Cada um com sua solução. Ou sua dificuldade. Mas com absoluta expectativa de aceitação.

 

Olhei para o infinito. Para os muitos tons de azul até o rosa. Mas abaixo se via um branco denso.

 

Optei por escutar uma música. Coloquei os fones. Foi instantâneo. Uma outra viagem se fez. Isolada da formal. Descompromissada com as técnicas. Ou com as coincidências. Quase deu uma confusão mental.

 

Ri. Tocava uma marcha. Nupcial. Uma bela orquestração. Belíssima. E no momento da subida do vôo. Assim. Como se uma regência de fora se fizesse presente. Como uma necessidade.

 

Acordei no branco. Sentei diante do azul. Em proximidade total com o Universo. Se assim se pode dizer.  Um casamento realmente se fazia.

 

O plano da partida e a vontade da chegada. O azul e o branco. As nuvens e o metálico do progresso. O plano e o ato. O gesto e o fato. O riso e a festa.

 

Não sei se foi um recadinho. Uma desculpa. Um sinal. Isso não se sabe jamais. Não tem provas. Nem documentos. E cabe a cada um fazer e desfazer os códigos. Muito mais internos do que externos. E conforme se apresentam.

 

Conclui. Perfeito. Assim devem ser as comemorações.

 

Olhei para ele. Apertei a mão. Sorri.

 

 


Novembro 11 2009

 

Há um saber oculto nas obviedades.

 

Entendi ou descobri sem querer. Ou por muito querer. Enfim. São muitos os desvios que levam às conclusões. Conclusões nunca são lineares.

 

E não foi diferente em relação às obviedades. Elas podem ser tolas. Podem ser desacreditadas. Ou excessivamente criticadas. Muitas vezes transformam um assunto entediante em horas de risos. Ou servem quase de imolação para algum desavisado. E vítima e algoz - trocam de Lugar sem nem perceber.

 

Não importa. Há algo nelas que vai além. Há certa singularidade. Ou talvez um confortável amparo. Que muito acalma a quem se apóia – sabiamente - nas obviedades.

 

Assim fiquei hoje.

 

Há um ano estávamos em grande festejo. Era uma dupla comemoração. Melhor ser mais justa. Era uma multi-comemoração. Ela se libertava. De dores e temores. De choros e pudores. De tanta lágrima caída. De tanta solidão contida. De tanta razão exigida. Das noites mal dormidas. Dos dias exaustivos. Das breves pausas para retomar um fôlego - por si já esgotado.

 

A outra metade teve que ir mais cedo. Numa pressa sem explicação. Mas com a devida aceitação. Sim. Há sempre o que não pode ser mudado.

 

Fazia a primeira viagem por sua conta e autoria. Decidira assim. De um golpe só. Aliás - só - era o alter ego dela. Ela e só.  Até ri agora. Era verdade. Uma dupla unitária. Ou uma unidade dupla. Perfeito. Cada um se sustenta com os parâmetros que escolhe.

 

Mas assim foi. Decidiu. Vou sim. Vou me dar este presente. Aniversário é um precedente. Procedente.

 

Chegou num belo dia de sol. De céu azul. De brisa fresca. Já do avião começara a sorrir. Junto com seu alter ego. Conteve-se um pouco porque se sentiu observada. Mas só um pouco. Estava iniciada a temporada do riso. Quem quiser que duvidasse. Ou reclamasse. Mas não com ela. Nem a ela. Estava em paz.

 

Lembro que pôs as malas no chão com delicadeza. Olhou em volta do ambiente novo. Abriu a porta da varanda. Percorreu com o olhar a paisagem de inúmeros prédios e milhões de janelinhas. E sorriu.

 

Sentiu-se em terra firme. Sentiu um prazer que há muito esquecera. Ou arquivara.

 

O tempo do arquivo - acabou. Abriu cofres e gavetas. E se expôs.

 

Tinha se dado um habeas corpus. E ia usá-lo com todo o direito conquistado.

 

Teve de tudo. Excessos brotaram de todos os cantinhos. Vinho. Compras. Música. De escafandro a borboleta – circulou com sua alegria quase de criança.

 

No teatro a atriz desnudava o corpo para falar da alma. Na vida real ela desnudava a alma – para entender o corpo.

 

Espíritos de vivos e de mortos foram convocados numa cozinha. Uma festa se fez em torno das memórias. A noite permitiu o riso irônico. O vinho coloriu as narrativas. As concordâncias e discordâncias se entrelaçaram até se igualarem. O macarrão do desjejum fez o dia seguinte se estabelecer como – liberdade.

 

Chorou. Riu. Acreditou. Comemorou.

 

Já se vai um ano. Um ano.

 

Desta vez ela não virá. A comemoração será onde mora. Na cidade escolhida. Os amigos reunidos. Equalizado. Sim. Místico e profano. Só não sei se em igual percentual. Equalizado para ela nem sempre é igual a meio a meio. Esta é ela. E seu fiel alter ego. 

 

Já cedo enviou um recadinho. Há um ano estávamos todos em festejos aí. Nunca vou esquecer. Completou no final do recadinho. Estávamos fazendo a maior farra ... ah! que saudades!

 

Cinqüenta anos - de anos especiais. Um por um. Eis alguém que validou todo o registro. Valorizou todo o cartório. Considerou toda a ascendência. Compactuou com a descendência.

 

Assim faz. A cada dia. Respeita e cumpre o prometido.

 

Eis como descobri o valor das obviedades. E a tranquilidade que elas oferecem. Saber assimilar o que é óbvio - possibilita a continuidade da emoção. Mesmo que tantas vezes encoberta pela razão - sempre há por onde escapar.

 

Valorizar a alegria da Existência é sempre a melhor forma de festejar – mesmo que isso seja óbvio.

 

Por isso importa a comemoração. A cada ano. Não faz diferença onde. Há situações em que espaço é limite mais interno do que externo.

 

Saudade também é motivo de parabéns. Tristeza é festejo sem saudade.

 

Do lado de cá do Mapa todos nós erguemos as taças - pelo seu aniversário.

 

 


Novembro 06 2009

 

É uma época de riscos. E de perdas.

 

Isso sem dúvida. As noticias tristes se sucedem. Não adianta fingir que não está acontecendo. Está. É. Cada um com seu temor. Cada um se ausentando de uma socialização. Férias se prolongando.  As ordens são de privacidade.

 

Que os grupos sociais se preservem – se dissolvendo. Esta a tentativa de evitar a propagação.

 

Fosse vivo o mestre surrealista – até ele se assustaria. A Idade Média contracenando com a Idade Contemporânea.

 

Ele chegou. Impossível passar despercebido.

 

Lindo. Cabelinho no corte moderno. Os fios na contradição da Gravidade. A queda da maçã em desafio por um punhadinho de gel. E ele todo orgulhoso da imagem. Perfeito.
 

A mãe segurava-lhe a mãozinha. Ele caminhava confiante. Pequenino – mas confiante. Tinha um jeitinho de feliz. Olhava com atenção em volta. Caminhava entre apressado e contido. Uma tossezinha atrapalhava os comentários que fazia. O vermelhinho do rosto denunciava uma temperatura fora do padrão. Mas parecia desconsiderar.

 

Ela veio. Conferiu a rotina da chegada. Escutou a história. A queixa da mãe. Os sintomas dele.

 

Ele ficou sentadinho. Talvez esperando que o chamassem. Ou só exibidinho em sua arrumação. Vez por outra tocava nos cabelinhos eriçados. Verificava se a desordem estava em ordem. E abaixava as mãos - mais tranqüilo. Como se os próprios dedos valessem por um espelho. Mais uma vez - perfeito. Sábio até. 

 

Ela veio. Sorriu para ele. Fez um comentário para a mãe. Colocou os dois sentados juntos no final da sala. Na última filinha de cadeiras. Só eles.

 

Fez para ele um gracejo. Depois foi colocando uma máscara. No rosto dele.

 

Informava com segurança na voz. Isso não dói. E - objetiva - amarrou os lacinhos da máscara por trás da cabecinha dele.

 

Foi um ato e um gritinho. Assim. Dupla geminada. Sincronismo absoluto.

 

Ele chorou.

 

Ela – surpresa - se assustou. Até se afastou um pouco. Demorou a entender.

 

Quando a dor não é física – fica-se com uma dificuldade maior ainda de mensuração. Ou de compreensão.

 

Mas ele continuou com seu protesto.  Chorou alto. E disse com a voz filtrada pelo material sintético. Estou com medo disso. Desta máscara. Não quero. Quero ir embora. A mãe o acarinhou.

 

Alguém veio em direção a ele. Com voz calma. Explicou. Você agora é o super herói. Por isso está de máscara. Eles todos usam também. Está tão bonito assim. E nem sabemos mais quem é você agora. Igual a um super herói. Ninguém sabe quem é ele e nem o nome dele.

Falou nem tão perto – nem tão longe. Poderia dizer – reservada. Mas tentou assim consolar.

 

Esta foi uma das cenas que não se esquece.

 

Ele parou de chorar. Dava para ver os olhinhos dividindo o espaço com o tecido verde da máscara. Por cima do nariz. A sobrancelha erguidinha. Virou o rosto semi -coberto. E disse. Mesmo com a voz entrecortada. Não sou super herói. Mentira. Ela disse que estou doente. Por isso estou de máscara. Para que ninguém mais fique doente. Super herói não fica doente.

 

Alguns que escutaram – riram.

 

Lembrei do filósofo estudioso do riso. Tem razão. Só é cômico o que excede o trágico. Aquela cena era trágica. Pior ainda. Era também um paradoxo. Não tinha como ser resolvida. Tinha como ser acatada. São ordens. Foi o que ela falou. São cuidados necessários. Completou alguém duas filas à frente.

 

Falou ainda chorando. Manda pararem de me olhar.

 

Submetia-se a uma súbita exclusão. Cuidou da imagem antes de sair de casa. E justamente a imagem – o primeiro item a ser ocultado. Sugeriam ser um super herói. Mas o colocaram sentadinho - distante. Parecia ter um objeto que o escondia – mais se destacava exposto.


O olhar do outro que autoriza. Ou desautoriza. E isso ele sabia ler muito bem. Melhor que qualquer um. Escrevia seu texto como se a folha em branco só a ele pertencesse.

 

Só não sei se pior - ou melhor - do que o espelho.

 

Quando o chamaram pelo nome - olhou para a mãe. Ajustou melhor a máscara. Não passou a mão mais nos cabelinhos.

 

Com voz conformada perguntou: sou eu?

 

 


Novembro 02 2009

 

Ele veio de lá. Feliz.

 

Fazia já alguns anos que não nos víamos. Trabalhamos juntos por muito tempo. Saíra de repente. Mal nos despedimos. Questões burocrático-egóicas. Algo por aí.

Estas são sempre as grandes questões. Sempre nascem desta dupla. Mal explicada. Mal conjugada. Ou muito mal dissociada.  Mas imperiosa.

 

Quando sobra hífen - não há o corte no momento certo. E apagam um espaço. Mais ou menos assim.

 

Minha avó nunca deixou de avisar. Muito eu é sinal de pouco meu, menina, muito eu é sinal de pouco meu.

 

Acho que só hoje entendi o que ela falava. Foi preciso anos e anos para assimilar. A linha quase transparente entre o eu e o meu. Sábia - sempre.

Mas desci. Direto para o local indicado.

Tinha uns exames a fazer. Estava entre corajosa e temerosa. Exames nunca são da ordem do conforto. Ou da diversão.

Mesmo que alguns estudiosos digam o contrário. Ou os seguidores do Marquês. Não faltam teorias. Apologias. Tratados. Mestres de todo o mundo. Austríacos. Franceses. Portugueses. Italianos.

 

O mundo girando em volta de uma dolorosa teoria. Sobre dor e alegria. Sobre sofrimento e satisfação. O homem sendo apto para a dor. Muito mais do que para prazer. Até os poetas se manifestam - sofrer por amor.

 

Nem sei quem são esses. Os estudados.  Os aptos para a dor. Eu não. Detesto dor.

Foi assim que desci. Com este pensamento tentando ocupar o outro.  O dos exames. Brigar com estudiosos de nada resolve. Mas ocupa o espaço do medo. Para isso resolve. E muito.

 

Afinal nesses tempos de tantas contínuas e perigosas mutações – exame é indício de risco. Ou de contaminação.

Não era a situação do momento. Mas não tinha escolha. Era fazer os exames.  Anuais. Rotineiros. Necessários. Procede. Obrigatórios. E pronto. E assim continuei.  Me repetindo – para me ordenar. Obedeça. E pensar que sempre fui rebelde. Nada de temer agulhas. Onde já se viu.

 

Tudo bem. Obedeci.

Foi em meio ao local do exame que o avistei. Eu entrando na sala dos exames. Ele na sala do atendimento. Em frente.

Vi que abriu os olhos. E sem metáfora. Abriu mesmo. Se surpreendeu. Veio em minha direção. Passos apressados.  Com um sorriso. Expressão de confraternização. Desconsiderou as limitações.

 

Foi logo avisando. Em pé diante de mim. Voltei.

 

Como se a materialização não fosse confiável. Apenas suposta. Respondi com um chiste. O bom filho à casa torna.

E fiquei observando.

 

Por que – voltar - se transforma em ato. Muito mais do que em fato. Precisa de desculpas. Sempre. 

 

Cada um com suas demandas. E espelhos.

 

Informou. Esta é a primeira vez. Nunca voltei de onde sai. Repetiu muitas vezes. Esta é a primeira vez. Continuou se explicando. Devia ser importante para ele. Se sentir convidado. Ou aceito. Ou vai lá saber o que.

 

Eu até ri. E falei. De onde saiu – ou para onde saiu. Desconsiderou. Fez bem. 

E continuou desconsiderando. Estes exames vão resultar todos normais. Você está ótima. Agradeci. Um lorde em termos de gentileza.

 

Vamos lá. Tomar um cafezinho. E você me conta desse longo tempo - que você continuou aqui. E eu lhe conto do meu - que fiquei tão distante daqui.

 

Ela. Convidei mas não quis voltar. Casou. Neste último verão. Está feliz. Ele. Sim. Desde que saiu também está em outra Instituição. Ele. Não está bem. Acho que precisa voltar. Ele. Também não se acertou. Quem sabe também volta. Ele. Está feliz com o novo cargo.

Falamos em poucos minutos. Mas acho que nunca falamos tanto. Soubemos dos amigos. Contamos de nós mesmos. Rimos das consequências  - e até das causas.

 

Voltamos rápido para as nossas atividades. A rotina – digamos assim - estava lotada.

 

Olhamos um para o outro. De repente. Com expressão de susto-risonho.

 

Esquecemos o cafezinho. Intacto. Em cima da mesa. Rimos.

 

Não importa. Tem café em todas as estações do ano. E em todos os horários. Até qualquer outro intervalo. Qualquer dia.

 

Foi a primeira vez que voltei de onde sai. Repetiu. E completou. Mas estou feliz por isso.

Ri. Viva a sexta-feira.

 


Outubro 25 2009

 

Olhei o relógio.

 

Pela diferença de fuso já é aniversário dela. Lá. Além mar.

 

Fiquei pensando o que dizer a ela. Como explicar em palavras escritas - toda a nossa cumplicidade. Como dar entonação à letra. Todos esses anos que participamos de nossos aniversários. E os outros tantos que deixamos de compartilhar a data.

 

Desde que ela se mudou para lá. Há muitos anos. Nunca mais parabéns para você de pertinho. Cantado. Abraçado. E que agora estou eu aqui. Lembrando. Saudando. Num silêncio de um teclado. Ou - na musicalidade que o teclado também permite. Como uma sinfonia particular. Onde o ritmo acelera ou acalma – de acordo com a emoção a ser descrita.Um Allegro e um pianissimo simultâneos.

 

Ultimamente está virando rotina. Comemorando de cá. E os aniversariantes de lá.

 

Ri. Impossível conter o riso. Festejo é assim. Sempre um riso vem conjugado. Um pretérito perfeito.

 

Lembrei a última vez. Ela estava aqui. Morávamos perto. A casa dela se preencheu de amigos. Ninguém sabe organizar uma festa do jeito dela. Prática. E linda. A festa. Ela também. Lógico.

 

E as comidas. Maravilhosas. Descobri que manga em cubinhos entrelaçada com couve refogada em tirinhas é quase um símbolo. Ou uma natureza bem viva. De prazerosa refeição. Nacionalista. Ingredientes combinados. Adequados ao paladar e à digestão. Perfeito.

 

E o bacalhau. A linha entre o espiritual e o material fica tão apagada.

 

E as sobremesas. Inesquecíveis.

 

Às vezes disfarçava. Burlava a confiabilidade alheia. Tudo que ela fazia era perfeito. Portanto podia transgredir. De vez em quando falsificava. E - de um bolo qualquer comprado – uma obra de arte surgia. E negava a receita. Coisas da minha mãe. Ela quem me ensinou. E ria da própria transgressão.

 

A mesa impecável. Toalhas lindas recebiam a louça delicada. Compunham uma vista alegre. As taças. Os vinhos. O champagne. Um banquete para os amigos queridos. E a energia afetiva a fazia parecer descansada. Como se num SPA estivesse toda a tarde. Para receber os convidados na noite.

 

E o riso - sempre feliz. E os braços - sempre acolhedores.

 

Lembro de uma vez em especial. Logo que vim morar aqui. Ela tranquila me apresentava. Aos mais supostamente esquecidos. E desconsiderava perguntas indelicadas. Ou impedia que chegassem até a mim. Não queria saber de constrangimentos. O período era difícil. Ela sabia. Não possibilitaria mais dor. Ou invasões de privacidade.

 

Sempre respeitou. Nunca questionou. Não iria permitir o contrário. Fosse de quem fosse.

 

E todos acatavam. E acataram. Sempre. Até que desistiram de questionamentos.

 

E o tempo passou.

 

O último aniversário dela aqui.

 

Sabíamos que seria um longo tempo assim. Ela além mar. E nós todos aqui. Comemorando o dia dela – sem ela.

 

Mas deixou para nós muita sabedoria.

 

 

Na delicadeza do trato. Na organização de uma reunião informal. Na formalidade de afetos. Na disposição emocional de acarinhar.

 

Premiava a cada um com seu sabor preferido. Separava até os lugares. Sabia onde cada um gostava de sentar. E deixava o espaço já quase que nomeado. Deixa para ela este cantinho. É mais tímida. Ela não gosta de calor. Deixa perto da janela. E por ai seguia.  

 

 

Ensinou que as festas são para os amigos. Importa o que eles gostam. Não entendia festa com egoísmo. Festa não é para o dono da casa. É para os convidados.

 

Hoje. Não estou lá. Mas sei exatamente como está seguindo. A programação. O festejo. O cardápio. As flores. O cheiro percorrendo a sala.

 

E mesmo com muitas pontinhas de inveja – fico feliz por todos eles.

 

Estão diante dela. Podendo conviver na rotina. Cantando os votos da data querida de lá. Que são diferentes dos cantados de cá. Mas com a mesma intenção. Por certo. Ora, pois.

 

E adivinho o riso dela. Os agradecimentos.

 

O olharzinho sorrateiro de vez em quando esticado - em direção a todos nós. Que aqui estamos. Deste lado de cá do descobrimento. Celebrando e cantando de dentro do nosso coração. Enviando para alguma estrelinha que passe. Para que ela receba de lá.

 

Parabéns - Lia querida. Muitas saudades. Muitas felicidades. 

 

 


Outubro 24 2009

 

O telefone me acordou. Um aviso protocolar. A rotina começava - já.

 

Nem sei bem como desci as escadas. Erro - sei. Rápido. Muito rápido.

 

Até lembrei o dia que dancei abraçada ao corrimão. Um ballet exótico. Nada sensual. Numa tentativa de não me fragmentar no chão da sala. Tentativa e êxito. Mesmo que durante uma semana negasse. Nada de estranho com o meu caminhar. Como se não vissem. Faz de conta que tenho nada. Faz de conta que acreditam. Assunto encerrado.

 

Enfim. Desci as escadas já informando. Estou com pressa. Tenho uma sequência a ser seguida. Antes de chegar lá. No trabalho. Onde mais seria.

 

Lógico. Você não tem que entender. Se eu não disser. Tudo bem. Depois discutimos semântica. Deixa para lá. Depois explico. É mal educado falar durante a mastigação.  Sim. Amanhã falamos.

 

E já fui quase empurrando o elevador. E reclamando com as correntes lentas.

 

Nestas horas me lembro de lá. Da brisa do mar serenando ânimos. Do cheiro de café da manhã com tapioca. Da relativa calma diante do inevitável. Até o barulhinho da rede no prendedor. Lembro tudo. Mesmo que em segundos. Como uma viagem da matéria. Transcendental. Dá até para suspirar.

 

Mas enfim. Estou cá. Foi para cá que vim. Melhor deixar de cheirar o carro. Nunca terá cheiro de maresia. Até ri.

 

Ainda bem que não é longe. Este o primeiro pensamento. Parada com o trânsito emperrado. Não andava para lado nenhum. E quase foi o último pensamento. A buzina delicada me fez virar para o lado.  Abri o vidro.

 

Pois não. Um simpático senhor sorria para mim. Até ai tudo bem. Vai ver queria se socializar. Mas não. Avisou com a fala e com o dedo. Apontou. Está muito baixo. Deve ter furado. Vá rápido a um posto.

 

Não sabia se ria. Se chorava. Ou se descia do carro e torcia o dedo dele. E a idéia dele de cidadania solidária. Como assim rápido. Não tinha saída. O trânsito parado. E ele vem me apontar um pneu furado de emergência. Não deveria ter família.

 

Mas agradeci. Muito obrigada. Muito gentil. Uma lady. E eu que dizia que não era nem lady nem santa. Contradição total. Exatamente o oposto. Uma verdadeira santa inglesa. Ou inglesa santa. Certo. Mais semântica. Hoje deve ser o dia Nacional da Semântica.

 

Mas consegui. Eis um posto.

 

Então tem um prego. Vai poder trocar. Espero sim. É verdade. Coincidência existe sim. Então ele chegou com o mesmo problema. E por um segundo eu seria primeira. Não faz mal. Espero. Sim. Sou bem calma. E ele deve ser cego. Pensei. Mas calei.

 

Não. Ela já foi. Sim. Ela achou que você chegaria no horário. E eu achei que chegaria a tempo. Opiniões combinadas em agendas descombinadas. Quase um poema.

 

Sim. Você é a segunda pessoa que me fala isso hoje. Sobre mim. Devo ser mesmo. Muito calma. Ou só tem cego por aqui. Nada. Deixa para lá. Sem problema. Entregue em meu nome. Não esqueça. Por favor.

 

Sim. Nem sei como consegui chegar. E na hora. Pode mandar entrar. Ainda bem. Se me chamasse de calma – eu ia descer. Como assim. Sou uma Lady. E Santa. E com letra maiúscula. Ia descer para me internar. Depois lhe conto o que foi. Esta manhã. Mas pode mandar entrar. Rimos.

 

Ele entrou junto com eles. Tinha uma covinha exposta por um mal disfarçado sorrisinho. As mãos estavam enfiadas no bolsinho da calça.

 

Eles avisaram. Ele estava todo feliz porque ia lhe ver hoje. Tem uma novidade para lhe contar. Verdade. Ele que quer falar.

 

Ele me olhou. Chegou mais perto. E disse como um segredinho. Mas com muita seriedade. E firmeza na voz.

 

Tirou a mão do bolsinho da calça e ergueu o dedinho para me informar.

- apendi a fasser cici em pé –

 

Olhei para ele. Lindo. Feliz. Envaidecido com seu aprendizado. Orgulhoso de si mesmo. Dei um beijo de parabéns. E celebramos na sala esta grande – e verdadeira – conquista.

 

Diante daquela frase - tudo o mais ficou tão banal. Pneus. Furos. Horários.

Ficou tudo isso tão superficializado. Diante da alegria de quem se entende crescendo – e sabe já fazer xixi em pé.

 

Pode parecer tão simples. Mas não é.

 

Poucas vezes entendi com tanta objetividade – o progresso. Ou me ensinaram com tanta suavidade - a evolução.

 

O crescimento. Isto sim - é importante.

 

Agradeci ao Universo o privilégio da escuta. E o dia se fez completamente válido.

 

 


Outubro 22 2009

 

Eram muitos os temores. Sempre.

 

Vivia sob constante pressão. E nem sempre como meta de educação. Mas enfim. Ideias e ideais nem sempre caminham de mãos dadas.

 

Entretanto - não podia negar. A cada aborrecimento ou obstáculo – assim se recompunha.

 

Você quem contou. Se não ela nunca saberia. Isso não vale. Você bem sabia o que iria acontecer. Quando ela soubesse. Mas - observe aquele mosquitinho. Ali na cortina. Lá em cima. Viu agora. Certo.

 

Ele é um disfarce. Na realidade é um monstro terrível. E maior do que este quarto. Ele é meu amigo. O mosquitinho. Muito meu amigo. E viu o que você me fez. E agora está ali disfarçado. Quando você dormir vai lhe engolir. Inteirinho.

 

E você nunca mais vai contar a ela. Pare de chorar. Se ela escutar vai acontecer de novo. E será já. Que ele vai lhe engolir. Fica calado logo.

 

Vai sim. Vai deixar amarrar seu pé - no meu. O cordão é comprido. Tem bastante. Dá para passar pelo chão. E de uma cama até a outra cama.

 

Vamos dormir assim. Se eu tiver medo – lhe acordo. Claro. Estico seu pé. E você acorda. E meu medo passa. Ela não vai ver. E só vai saber se você contar.

 

Acho bom não esquecer o meu amigo mosquitinho. Esta sim. Está escondido. Eu sei onde. Mas você não pode vê-lo. E só aparecerá se você não me ajudar.

 

Vou esconder em sua mochila. Eis um lugar onde não vão procurar. Sim. As notas. Estão ruins. Não sou boa naquela matéria. Mas se souberem agora – adeus festinhas de aniversário. Depois entrego. Não vai contar. Pensa bem.

 

Não se preocupe. Depois eu retiro de lá. E nunca vou contar que você ajudou. A esconder. Claro. Para de ser medroso. Já falei.

 

E assim se vão seguindo. E assim se foram. As soluções imediatistas da infância.

 

Ela nem sabia por que ficara lembrando. Tudo já estava tão distante.

 

O tempo já estava tão avançado. Nem espaço. Nem tempo. Nem convivência. Nada mais era parte do cotidiano deles.

 

Mas as lembranças foram chegando. Sem pedir autorização. Invasivas. Autoritárias. Mas procedentes.

 

As lembranças são sempre oportunas, menina, as lembranças são sempre oportunas.

 

Escutara isso um dia da avó de uma amiga. Lembrava até de alguns detalhes. Era um dia quente de verão. Estavam numa praia. A avó começara a falar do próprio passado. E alguém sugerira mudar de assunto. Para que não ficasse triste. Ela virou-se para a neta e falou isso. Das oportunidades das lembranças. Estava certa.

 

Eram muitas recordações. E sequer sabia como ordená-las. Mas deu liberdade total. Até facial. Podia se imaginar com mil expressões diferentes. 

 

De riso a choro. Sem pular as de tensão ou de alívio que circulam sempre entre as duas. E na ordem desejada.

 

Eis algo em que a consciência não tem poder. A celebração das lembranças. Fica tão fora do pragmático.

 

Em meio a essa lúdica bagunça mental – deu um pulo da cadeira. Então era por isso. Era o aniversário dele. Pensara nisso o mês todo. Fizera vários cartões imaginários. Quase fundara uma retórica nova – tamanho o conteúdo dos discursos que criara. E justo no dia estava saindo da memória. Quase.

 

Imagina se ele soubesse. Que ela tanto lembrara como esquecera. Ele que iria ficar amigo do tal mosquitinho. Deu até um tapinha na testa. Riu. A avó tinha mesmo razão.

 

Ficou com uma dúvida. Será que ele se recordava. De tudo aquilo.

 

A infância é tão seletiva e encobridora em termos de fatos. De atos então. Parece outra vida. Não existe outra fase em que a observação seja tão particular. E sem rodeios. Cada um vendo o mundo por olhinhos tão especiais. Por isso quando coincidem lembranças – é sempre uma surpresa.

 

Quantas vezes ela escutara um pasmo– você também se lembra disso. Inúmeras.

 

Mas é preciso a maturidade adequada para assimilar a infância.  As contradições. As buscas. E a falta absoluta de inquietações.

 

Estas só chegam depois. Na infância – não. O pensamento mágico - junto às praticidades instantâneas - permite um colorido nunca mais re-inventado.

 

Levantou. Telefonou para ele.

 

Já atendeu rindo. Sabia que era você. Vi um mosquitinho passando por mim há pouco - parecia feliz. Ao menos não quis me engolir.

 

Riram. Muito.

 

 


Outubro 16 2009

 

É passional. Muito passional.

 

Sempre agiu assim. Já o conheci assim. Com o vermelho da emoção sobrecarregada – colorindo o rosto de linhas bem marcadas. Belo. Contrastando com o grisalho dos cabelos e o esverdeado do olhar. Um colorido explícito. Denunciava a alma – sem texto. Incrível. Foi a primeira palavra que me veio à mente.

 

Algumas vezes até o senso de justiça ficava um pouco de lado. Mas era atento. A injustiça lhe feria até a alma. Tentava sempre uma parceria. O passional com o racional. Nem sempre conseguia. Mas nunca desistia. E com o passar dos anos – foi ficando cada vez mais atento.

 

Tem um dom. Especial – como todo dom. Tem uma sensibilidade ímpar. Enxerga além do previsto. Ou até do malvisto. Mas só se expõe quando quer. Quando não – comporta-se como um trabalhador braçal. Enche-se de tarefas e silêncios. E age como se nada importasse. Assim se ampara. Assim se enfrenta.

 

Divide um estilo entre a timidez e a ousadia. Não sem alguma dificuldade na dosagem certa. A balança pode pender para um lado mais afoito. Ou menos objetivo. E – muitas vezes – o resultado foi negativo. Errou talvez mais do que acertou. Ou o contrário. Nunca se sabe mensurar com a certeza. Venceu grandes batalhas. Perdeu boas oportunidades. O tempo é autoritário.

 

Descobriu também depois. Mas aprendeu a conviver com o que não pode ser resgatado.

 

Este é mais um dos seus traços. Acata. Não se rebela se a luta é desleal. Lutar contra o Tempo – já se entra perdendo. Lutar contra as perdas – impede as novas conquistas. Nisso é um sábio. Nada de ficar correndo atrás de prejuízos. A vida caminha para frente.

 

Expõe a alegria pessoal com recato. Impõe solidão nos momentos de grande tristeza. Sobreviveu a dores e amores. Aos possíveis erros de avaliação. Às possíveis punições da credulidade da juventude. Agora – bem mais cuidadoso – se preserva. Melhor um pouco de charme bem dosado do que o coração aberto por inteiro.

 

Não perdeu um mínimo que fosse da característica sedutora. Ou da sensualidade. Sedução e sensualidade. Para ele – forças vitais.

 

Tem um olhar curioso sobre o Universo de uma forma geral. E um olhar disfarçado sobre as belas particularidades do mundo. Divide o que sente – com quem sabe escutar. Cala-se diante do desatento. Ou do seletivo. Não quer ser apenas instrutor. Quer mais. Quer talvez ser provocador. Provocar projetos. Provocar futuros.  

 

Tem ternura na alma. O desconforto do outro lhe causa dor. Enfim. É suave e forte. Como um poeta. Como um músico. Muito mais lhe importa a sonoridade das palavras. O brilho das cores. Ou o simbólico dos detalhes.

 

Aprendeu que nem tudo que é belo é real. E nem tudo que é triste é sofrimento.

 

E assim vai seguindo o caminho. Perseguindo os objetivos. Contornando as imperícias. Regozijando-se com as conquistas.

 

Foi o que pensei ao vê-lo hoje. Decidido. Já foi logo avisando. Desde cedo.

 

Não importa o Tempo. Muito menos a temperatura. Não importa se aquece. Não importa se esfria. Vou relaxar diante das águas. Vou ficar diante do vento. Vou buscar o equilíbrio. É só o que permite que se fique numa vertical. Assim. Entre o vento e a água. Vou dominar com os braços. Vou firmar com os pés.  Vou vencer sem contradizer. Vou entender a favor – estando contra. Ou vice-versa. Tanto faz. Vou aprender a ser. Muito mais do que a estar.

 

No começo pode-se cair. Músculos e pensamentos nem sempre andam de mãos dadas. Podem até se desentender. Mas assim é em qualquer aprendizado. Para cada código há uma leitura específica.

 

Por um segundo ainda olhou para trás. Ainda pensou em voltar. Mas este também não era o estilo dele. Uma vez diante de uma criação – seguia. Confirmava.

 

Quando uma ideia chegava de súbito – respeitava.

 

E esta viera assim. De repente. Num amanhecer cansado. Ou por um dormir angustiado. Vai lá saber. Mas viera. Isso o que importa. Iria sim. Buscaria os meios. Transformaria ideias em atitudes. Este outro dos seus traços.

 

E de traço em traço – como que deliberadamente – vai se compondo. Refinando a sinfonia interior. Tentando desenhar seu próprio destino. Cuidadoso. Como se utilizasse um pincel com um único pelinho. Pintando com delicadeza e sutileza. Mas com firmeza - e vontade própria - no risco.

Sempre fiel e leal – consigo mesmo. Com o vermelho no rosto. Ocasionalmente.

 

Inegável e proporcional. Além do sentimento afetuoso - o admiro tanto quanto o invejo.

 


Outubro 11 2009

 

Encerrou a fala desta forma. Com este comentário.

 

A frase ficou em destaque. Por alguns minutos. Ou horas. Vai lá saber. A palavra sempre dispõe do tempo ao seu bel prazer. Enfim.

 

É uma pena.

 

Assim disse. E nem parecia muito concentrada. Parecia em estado de ausência. Estava assim ultimamente. Como se numa nova parceria – mais efetiva. Ou quem sabe conquistada - entre ela mesma e o mundo.

 

Devia ter lá seus motivos.

 

Motivos. Esta uma palavra multi-dimensionável. Especialmente para ela. Adequa-se bem. Cabe em qualquer espaço. Justifica possíveis transtornos. Pressupõe adiáveis desconfortos. E já disponibiliza desculpas.

 

Era afável. Divertida. Solidária. Desde que a conheci. E lá se vão tantos e tantos anos. Mas tinha motivos para tudo. Do emocional ao físico. Fosse o que fosse - tinha motivos.

 

Acompanhava sempre um - de sobra. Este - de sobra - parecia mais fundamental até do que os tais motivos. Era pronunciado com mais ênfase. Como se precisasse se servir de uma acústica. Ou a acústica estaria a serviço dos excessos. Algo por ai.

 

Passava – com tranqüilidade - uma sensação. A de que motivos e sobras são de ordem impessoal. Quase relativizada. Não precisa ser determinada. Muito menos qualificada.

 

Motivos e sobras são questões tanto estéticas quanto funcionais. E sugerem um lugar mais universal do que pessoal. Nunca a escutei se referir aos tais motivos de sobra - dentro de si. Sempre eles estavam - de fora.

 

As sobras pareciam vir como paradoxais contribuições externas.

 

Mas também não era o momento para digressões teóricas. Até dera vontade de rir. O que mais sobrava eram digressões e teorias. As faltas estavam circulando por outra esfera. Não importava se mais ao alcance ou se muito além do alcance. Apenas circulando - como toda falta.

 

Mas assim falava. Assim se expressava. Relatava a situação. O motivo da ligação. Parecia um não mais acabar de queixa. Nada era tratado de forma pontual. Muito menos sugerindo uma continuidade. Sim. Parecia mais um possível excesso de ponto e vírgula.

 

Foi nesse momento que entendi a força dos motivos de sobra. Como cravados dentro de um vazio. Os motivos. E as sobras.

 

Lembrei a minha avó. Se sobra motivo é porque falta razão, menina, se sobra motivo é porque falta razão.

 

E ali fiquei. Entre a palavra e a expressão. Tentando ultrapassar a linha que cruza o ato e a fala.

 

Dizia o mestre francês que primeiro vem a palavra. Depois o ato. Tão difícil simplificar.

 

De repente me veio uma curiosidade. Talvez por que escutei um barulho reconhecido. Perguntei assim. Sem mais nem por que. Onde estava.

 

Respondeu tranqüila. Suave. Sentada naquela praia que você gosta. Sob um quiosque. Olhando o mar. O final de tarde está lindo. O inverno aqui está uma beleza. Sol, céu e mar. Nada de frio.

Por isso lhe liguei daqui. Faz bem reclamar do interno diante de um externo tão belo.

 

Tenho motivos de sobra para falar daqui. Sem me preocupar quem escuta. Ou quem interrompe. Ela sempre volta na hora exata. Parece que adivinha que preciso falar. E já chega cheia de perguntas e demandas. Lembra até aquela sua amiga. A que nunca podia conversar ao telefone. Porque os filhos a interrompiam. Você deve se lembrar disso. Sempre comentávamos. Agora pareço com ela.

 

Ela já vai entrando e avisando. Pare o que está fazendo. Desliga o telefone. Preciso lhe falar. Como se fosse uma emergência. Você sabe. Ela sempre age assim. E sem motivo algum.

 

Ri. Muito. Achei perfeito. Pensei isso enquanto fechava a porta da varanda. Para que a chuva e o frio não se transformassem em meus hóspedes.

 

Ela continuou. Depois de um fôlego só - avisou. Agora me vou. Acabou o pôr-do-sol. Está escurecendo. Vou voltar. Amanhã vai ser um dia complicado no trabalho. Se eu enlouquecer acredite – não teve jeito. Terei motivos de sobra.

 

Tem feito dias tão lindos. Se você estivesse aqui iria adorar. Mas está ai no frio. É uma pena. E rindo – se despediu.

 

E rindo – me despedi.

 

O frio aumentara. Peguei um casaco. Entrei em Estado de Força Educadora. Sim. Comportada. Recatada. Até repressora. Sem desconsiderar o valor da Força Amistosa.

 

A palavra pena não teve seu contraponto. Nem uma resposta mais diferenciada. Em linguagem talvez não tão ortodoxa – digamos assim.

 

E – pensando bem – sem motivos ou sobras.

 


Outubro 01 2009

 

Decidiu. Será este final de semana.

 

Ganhara de presente. Os cinco se juntaram e deram a ela. Vai passar o dia lá. Sendo cuidada e mimada. É só escolher a data. Adorou.

 

Telefonou, agendou. Comemorou feliz. A decisão própria combinava com a vaga oferecida. Em acordo. Fuso horário acertado. Era só deixar acontecer. Não teria participação efetiva. Eles lá saberiam a sequência a ser cumprida. Enfim. Riu.

 

Acordou e já foi logo preparando a alma. O espírito. Ou o humor, para ser mais ampla. Do corpo eles lá dariam conta. Ao menos este era o combinado. Através do corpo - liberar a emoção.

 

Quase uma filosofia.

 

Um dia inteiro a fazer nada. E a aguardar as ordens.

 

O lugar era especial. Massagens de todos os tipos. Esfoliação. Relaxamento. Imersão em ofurô. Pétalas de rosas vermelhas. Margaridinhas. Chazinhos. Toalhas aquecidas. Uma delicadeza. Música transcendental. Perfeito.

 

Um aroma suave percorria desde a salinha de espera até os ambientes fechados. Qual um labirinto misterioso. Como devem mesmo ser os caminhos que liberam a emoção. Por um aroma, vai se chegando diante de portas - fechadas. Abertas – revelam o dinamismo a seguir. Interessante.

 

Foi esta a primeira palavra que pensou. Talvez desde o momento que acordou. Até se surpreendeu. Parecia mesmo há algum tempo sem pensar. Interessante de novo.

 

E de porta fechada a porta aberta - foi se descontraindo. Feixe muscular por feixe muscular. Ela até avisou. É muito tensa. Mas estou desfazendo os nós.

 

Desconsiderou.

 

Estava ali para ficar desconcentrada. E ia cumprir a proposta. A tal filosofia que a entrada sugeria.

 

Foi nesse vai e vem que notou a luz vermelha do celular. Mensagem à vista. Resolveu verificar. Que chamado, externo, a re-localizava no planeta.

 

Ele se desculpava. Queria ter falado ontem. Mas os afazeres práticos e nada agradáveis o tinham impedido.

 

Resolveu se divertir. A desconcentração permitia. Avisou. Desculpas mis. Plebe rude. Estou sendo esfoliada e me dirijo no momento para um ofurô. O mundo pode esperar. O ofurô não. Nem eu. Risos.

 

Assim. Objetiva. Divertida. Leve. Mas séria. Sem som. Só com as letras. E enviou a mensagem.

 

A massagem prosseguia. Novamente a luz vermelha. Mais uma vez decidiu ler o que de lá vinha. Afinal – o mundo não a esquecera lá dentro. Nem ela esquecera o mundo lá fora. Riu. A linha podia até ser tênue – mas existia. E se e quando existe - sempre pode ser pulada.

 

Já começou a se sentir incorporada ao Lugar. Estava se transformando numa verdadeira filósofa de esfoliações e ofurôs. Se parabenizou.

 

Mas desta vez foi impossível. Não conseguiu manter a seriedade absortiva. Expressar ausência de si mesma. Fingir que estava apenas ali. E que o mundo tinha acabado.

 

Ele respondeu. Desculpa a nobreza. Mas estou aqui também. Esfolado. Com um furuncô.

 

Riu. Alto. Assim. De repente.

 

As pétalas de rosa na água quase voaram. A mocinha que esfoliava tomou um susto. Perguntou por cócegas. Com a resposta negativa – iniciou alternativas. Se queria mais luz. Menos luz. Não sabia bem como lidar. Com o riso. Vai ver fosse um pranto e saberia o que fazer.

 

Isso é comum. Rir é incomum. Seja onde for. E muito mais numa esfoliação. Vai ver até culpou o Marquês. Mas enfim. Riu alto. Seguidas vezes.

 

A mocinha continuou o que fazia. Porém com mais cautela. Dava para sentir isso pela fala. Pelo gestual. E pela súbita pressa. Até temeu uma expulsão. Onde já se viu. Rir num lugar de silêncio. De faixa zen com alfa. Ai sim. Deu até mais vontade de rir. Mas se controlou. Ou tentou.

 

Avisou a ele. Você está desconcentrando a minha desconcentração.

 

Nova resposta. Novo riso.

 

Desistiu. Não ela. A mocinha. Encaminhou para outra sala. Mais uma porta fechada se abriu. Um divã estava lá em meio à meia luz. Orientou alguns momentos - sozinha. Escutando a música e sentindo o aroma. Colocara um aroma relaxante.

 

Ficou lá inspirando o tal aroma. E rindo. Quando acabou o dia – estava calma. Muito calma.

 

Vai lá saber. Qual das massagens foi benéfica. A de fora. Ou a de dentro.

 

Ele foi buscá-la. Desceu com ele de mãos dadas. Contou o que aconteceu. Riram juntos.

 

A chuva fina que caía lembrava que o mundo tem múltiplos e surpreendentes encantos.

 

 


Setembro 26 2009

 

Fiquei pensando de que ângulo se vê melhor.

 

Ângulo é sempre da ordem da intenção. Muito mais que da extensão.

O dia tinha sido especial desde o começo.

 

Começou com um susto. Vi a luz do dia clara. Invasiva. Definindo o espaço. Sem constrangimentos. Ou meias sombras. Assim. Explicita. E eu com os olhos esbugalhados. Boca aberta. Raciocínio arrancado às pressas. Do onírico ao real em tempo recorde.

 

Esqueci de ligar o despertador.

 

Como farei agora. Assim. Perguntava a mim mesma. Aflita. E não conseguia me responder. Só fiquei ali. Apavorada – diria. Agenda lotada. E essa agora. Perdi a hora.

 

Quase perdi mesmo foi o equilíbrio. Mental. Mas tão rápido quanto - quase – perdi, recuperei.

 

Era um sábado. Um sábado. O tal sonhado sábado chegara – e eu duvidava.

 

Vai lá saber por que. Confundi os dias. Ou fiquei presa na véspera. Prisioneira do despertar anterior. Nem conseguia festejá-lo. Fiquei ali catatônica. Assustada. Querendo descer escada abaixo. E diante de um dia de folga. Da tão sonhada folga. Cinco dias a esperar este dia chegar. E este desatino. Incrível.

 

Ainda bem que as pernas foram mais sábias. Vai ver entendem melhor de calendário do que se imagina. Ou não se aceitam submissas com facilidade. Ou – melhor ainda - não saem por ai a correr desatinadas. Aceitando qualquer ordem. Primeiro aguardam. Para depois agir.

 

Algum dia - escreverei sobre isso. A apologia das pernas decididas. Mas enfim. De onde estavam – não saíram. Não se moveram. Continuaram na cama. Bem esticadinhas. Aguardando a consciência tomar um rumo adequado.

 

Deixei passar o susto. E iniciei a rotina da folga.

 

Não sem uma decisão. Já que eu desautorizei o sábado – melhor deixar que ele me autorize. E deixei o dia se organizar. Por conta própria. Lembrei do poetinha. Ele sim. Entendia de sábado como ninguém. Saravá.

 

Foi uma surpresa atrás da outra.

 

Então é assim. Nem sempre sabemos. Ou impomos. As horas podem também fazer isso por nós. Este sim. Um susto agradável

 

O lugar ele escolheu. Uma surpresa. Desceu e avisou. Convidou. Vamos até lá. Um lugar ao ar livre. Um espaço aberto. Vamos sim.

 

Lindo. Nunca antes havia estado ali. A água doce e calma. A luz mais calma ainda - se espalhava pelo espelho d´água. Era um dia de delicado sol de inverno.  A mata em volta esbanjava contraste.  Garças brincavam nas bordas. Desimpedidas de compromissos. Ágeis em sua proposta.  Bicando felizes - o almoço interminável.  

 

As mesas ficavam dispostas próximas da borda.

 

Veleiros cruzavam solenes. Motores ocasionais passavam e cortavam a água. Com barulho. Placas convidavam a passeios. Uma revoada de pássaros proprietários expunha a autoridade. Uma pontezinha de madeira avançava água adentro. Oferecia e gemia a cada passada. Mas avançava com confiança.

 

Mais uma surpresa apontava saudades. A música. Falava da tarde naquela praia. Tão longe. Mas que- de repente - pareceu tão perto. Não resisti. Entrei no pequeno restaurante e aplaudi o cantor. Sorridente – agradeceu.

 

Ficamos horas caminhando diante da água doce. Impregnados do cheiro doce da água. Invadindo a pontezinha gemente. 

 

Sentamos. Observadores cuidadosos do tempo - a seguir seu ritmo.

 

Ali. Com nossas pernas – mais uma vez – esticadinhas. Só que desta vez – ao menos as minhas - confortáveis. Em acordo com o pensar.

 

A tarde foi caindo. As garças caminhando lentas para fora da água. As luzes se acendendo. Um ventinho mais frio marcava a estação. E avisava da hora.

 

Quando saímos – olhei para trás.

 

Foi aí que fiquei pensando no tal ângulo. Em todos os possíveis ângulos. Para se conviver com os dias. Com as noites. Com os erros. Com os acertos. Com os sustos. Como se fosse sempre assim. Donos disfarçados do próprio destino.

 

Comentei com ele. Adorei. Sequenciei - obrigada. Cada vez que me perguntar onde quero ir – direi aqui. Ele riu.

 

A urbanidade também tem seus misteriosos ângulos. E as suas – doces – surpresas.

 

Pensei. A Vida sabe privilegiar os dias. Sorri. Feliz.

 

 


Setembro 24 2009

 

Olhou os óculos em cima da mesinha.

 

Não pegou. Por um instante ficou a observá-los. Assim. Sem mais nem por que. Ia tirá-los do lugar - quando parou. E ficou a tentar entender. Os óculos. As lentes. A correção da visão. Lentes corretivas – como tecnicamente nomeavam.

 

Veio um pensamento.

 

Será que enxergariam algo. Será que viam o mundo diferente do que ela via. Será que precisavam dela – como ela parecia precisar deles.

 

Aquelas lentes acrescentavam. Elucidavam. Transformavam borrões em linhas. E ficavam ali. Ou estavam ali. Em cima de uma mesinha. Fingindo abandono. Talvez pior - sugerindo abandono.

 

Olhou de novo. Agora com ar de desconfiança.

 

Que veriam - além dela. Ou aquém dela. Ou apesar dela. Ou pior ainda – o que escondiam dela. Sim. Ficaram o dia todo ali – de algo deveriam estar em acordo ou desacordo. Mas nada assim – ingenuamente.

 

Notou que uma haste estava um pouco mais torta do que a outra. Não tocava muito bem na superfície plana. Ficava um pouco no ar. A outra mais centrada – atingia a mesa e repousava. Ou parecia. Vai ver a que estava no ar estava mais descansada. Vai lá saber onde é o ponto de relaxamento. De cada forma de visão. Ou de cada haste de visão.

 

Ficou com uma dúvida. De que lado estava a visão.

 

De dentro das lentes. Ou de fora das lentes. Como seria ver a lente ao contrário. Poderia expor a visão delas. Ou ocultar a própria. Será que veria a si mesma de outra forma. De fora para dentro. Já que com os óculos tentava enxergar melhor – mas de dentro para fora.

 

Era uma questão a pensar com mais delicadeza. Concluiu.

 

Se antes enxergava bem – agora precisava deles. Eles deram uma nova idéia do antigo mundo. Num momento em que - corrigindo a seu bel prazer – acrescentava o novo contorno. Apagava o enevoado. Podia até ser um feito perigoso - diga-se de passagem.

 

Lembrou da avó de uma amiga. Sempre avisara. Nem sempre é indicado dedicar muito tempo para a nitidez, menina, nem sempre é indicado dedicar muito tempo para a nitidez.

 

Se os anos passavam - e modificava a forma de vê-lo – deveria ter uma razão. Uma razão muito mais existencial do que confusional. Esta foi a primeira palavra que a fez rir. Confusional.

 

Mas as lentes não pareciam dar importância.

 

Deveriam estar ali contornando outra situação. Não deveria ser por acaso que uma haste se erguia. E a outra se apoiava.

 

Aproximou a mão. Pensou. Vou colocar bem de leve no meu rosto. E ao contrário. Posso me compreender a partir daí. Ou me acalmar – me desentendendo de uma vez por todas. E logo eu. Que fico de análise em análise. Tentando quebrar sentidos. Quebrar textos. Quebrar palavras. Talvez a solução esteja nos inteiros. Nos sentidos concretos.

 

E ali está. O sentido ocultado e exposto em par.

 

Com toda a coragem – pegou os óculos. Mas não podia negar. Pegou com carinho. Com gentileza. Não queria perturbar assim de súbito o que eles viam. Ou queria surpreendê-los despreparados. E assim poder ver o que eles viam.

 

Quase riu – não fosse a seriedade da situação.

 

Ajudam a enganar as sombras – por certo. A redefinir os contornos. Mas não como antes. Antes da necessidade deles.

 

Óculos são perfeitos para criar a realidade. Acessória. Quando não mais acreditamos nela. Ou já não confiamos tanto. Ou mais ainda. Quando precisamos de um suporte - para voltar a confiar. Talvez até mais em nós do que na tal realidade. Algo por aí.

 

Foi aos poucos colocando em seu rosto.

 

Primeiro do lado comum. Depois do lado incomum. Tentou ver ao contrário. E no correto. Colocou. Tirou. Olhou para as lentes. Até tocou nelas com os dedos. Reagiram. Ficaram turvas. Compreendeu.

 

Decidiu deixá-los onde estavam por mais um tempo - com as hastes desiguais sobre a mesinha. Por mais um tempo – talvez. 

 

O telefone tocou. Era ele. Vai lá saber por que. Colocou os óculos. Sem delicadezas. Sem pedir licença. Sem teorias. Colocou e pronto.

 

E conversou – nitidamente feliz – com ele ao telefone.

 

 


Setembro 18 2009

 

Chegou com aquele jeitinho dela.

 

Tranqüilo. Poderia até se dizer - sorrateira. Era sempre assim. Caminhava como se deslizasse. Nada fazia com rapidez. Ou esbarrões. Dava conta do assumido. Mas sempre do jeito mais suave. Era assim o estilo dela. E sempre bem humorada. Agradável. Decidida.

 

Não havia dia que atrasasse. Jamais. Nem na entrada nem na saída. Era a pontualidade e seus efeitos obsessivos. Detestava mudança na rotina. Até obedecia – mas reclamava. Resmungava. Falava do mesmo jeito que caminhava – como se em respeito a um especial  silêncio.

 

Se lhe era solicitada uma solução – encontrava. Se lhe era encaminhada uma tarefa – cumpria. E tudo sem comentários. Sem questionamentos. Era para fazer – fazia. Simples assim. Mas sempre dentro da própria metodologia. Disso não abria mão. Nem ninguém a convencia. De qualquer contrário.

 

Primeiro escutei o pisar leve nos degraus da escada.

 

Em geral não subia se me visse ocupada. Ou concentrada. Deveria ter um nobre motivo. Dentro da qualificação que ela mesma estabelecia. Depois vi que trazia um envelope nas mãos. E segurava com muita delicadeza.

 

Interrompi o que fazia e me virei de frente para ela.

 

Entregou-me o envelope. Amassadinho. Foi avisando. Estava no depósito. Deve ter sido na mudança. Ficou por lá. Hoje mexendo em busca de alguns documentos solicitados – as encontrei. Acho conveniente comprar mais porta-retratos.

 

Eram as fotos.

 

Não sabia que estavam lá. Havia procurado muito. Por muito tempo. Agora estava ela a me entregar. Num envelope meio amarrotadinho. Mas envolto num saco plástico. Como embalagem sem data de validade.

 

A mesa estava tão bonita. A toalha de renda branca sofisticava a arrumação de talheres e pratos. O arranjo de rosas vermelhas expunha a emoção forte da decisão.

 

As taças estavam dispostas na mesa quase em fileira dupla. Próximas à borda da mesa. As cadeiras estavam afastadas para possibilitar uma melhor circulação. Até ri. Nem lembrava que tinha feito esta organização.

 

Elas estavam sentadinhas juntas. Talvez um pouco tímidas – pela posição que colocavam as mãos.

 

Eles estavam lindos. Lindos. Lembro que chegaram mais cedo. Queriam prestigiar com toda a solenidade necessária. Consideravam importante - para eles – se era importante para mim. Sempre solidários.

 

Ele estava de branco. Deixara a barba espessa - crescer. Eu estava de branco. Deixara os cabelos longos – soltos.

 

Ri de novo. Também não lembrava que tinha fotografado os pés. A sandália vermelha dava seu toque mundano. Mas – sem dúvida - elegante.

 

Ela olhou. Uma por uma. Fez algumas observações sobre quem me ajudara. Depois desceu. Com o pisar suave de sempre. De volta para suas tarefas. Não podia se atrasar. Concordei. 

 

Fiquei sentada ali – sozinha.

 

Com as fotos nas mãos. E com um sorriso invasor que denunciava as boas lembranças. Assim. Entre o presente e o não presente. Passando e Repassando. Como se num ato de efeito atualizante.

 

Muitas das pessoas – das fotos - não via mais. Saíram do registro do cotidiano. Trocaram de rumo. Ou de atalho. Ou criaram novos caminhos. Não devem ter marcado o chão. Nunca mais voltaram.  

 

Os objetos permaneceram. A mesa. A toalha de renda. As taças. A sandália.

Acho que a vi dia desses numa arrumação - por busca e apreensão. Quase ri.

 

Pensando bem. Não só os objetos ficaram. Os risos ficaram. Os mesmos risos. A mesma alegria. A constante celebração por nos mantermos sempre unidos. Ligados.

 

No tempo das fotos – nem adivinhávamos que eles iriam casar. Que ela viria se integrar. Que mudaríamos para cá. O tempo fez suas gracinhas espaciais e afetuosas. Mas preservou tudo de melhor. Houve sustos. Choro. Tensões. Até abalos de saúde. Mas todas as etapas bem vencidas.

 

Na minha frente tinha um calendário. Estava circulada a data – dia dez.

 

O dia da festa das fotos. Quase nove anos. E era hoje - dia dez. Ele já me acordara - cedo -  com um beijo de comemoração.

 

Desta vez ri. Podia-se até estar amarrotadinhos - mais do que há quase nove anos. Ele tirou a barba. Cortei os cabelos. Mas algo se mantivera bem conservado – como se no tal saco plástico. Os afetos verdadeiros continuaram intactos.

 

Acariciei as fotos. Telefonei para ele. E para eles.

 

Hoje as taças vão sair dos seus cantinhos no armário. Quem sabe – até a sandália vermelha.

 


Setembro 09 2009

 

Uma queria explicar. A outra queria entender. E as duas queriam lembrar.

 

Ela comentou. Nunca choveu nesse período aqui. Agora é só chuva. Nem está frio. Mas a chuva está desobediente. Nada de boletim meteorológico.

 

E a vida parecia que ficava grudada no solo. Quando chove – tudo está sempre parado. O asfalto parece segurar os carros. Os trilhos parecem agarrar o metro.

 

Só as pessoas caminhando fogem à regra. Correm e correm entre calçadas e semáforos. Esbarram-se. Cruzam. Desviam. Rápidas. Movimento acelerado. Interessante.

 

A outra continuou. Amanhece com chuva. Anoitece com chuva. No intervalo mais chuva. Até riu deste comentário carregado de redundância.

 

Na hora quis até comentar sobre este efeito Linguístico. Mas a palavra faltou. Deixou para lá. E conjeturou. Quem sabe quando o frio vier – melhora. Antes frio do que chuva. Bom. Chega de falar em chuva. Melhor descermos logo. Deve estar cheio nesta hora.  

 

Desceram para o almoço. Atrasadas e ligeiras. O tempo voa. Quando a gente tem pressa – ele fica sossegado. Mas enfim. Não dá só para fazer críticas. Tempo é tempo. Chuva é chuva. Melhor uma adaptação. Eis dois casos em que a reclamação fica improcedente. Não tem como pedir deferimento.

 

Ela foi descendo e falando. Preciso comprar uma bota. Duas. Vou comprar uma marrom e uma preta. De cano alto. Com esta chuva não tem conforto melhor. E fica-se muito elegante.

 

Foi exatamente neste comentário que tudo começou.

 

Ela respondeu. Comprei uma muito bonita. Preta. Verniz. Linda. Cano alto. Sim. Foi naquela loja. Aquela. Até lhe dei uma blusinha de presente. Sim. Em seu aniversário. Tem naquele shopping. E naquele outro também. A loja.

 

Não consigo lembrar. O nome da loja. Nem daquele outro shopping. Fica perto da casa dela. Parece que estou vendo. A loja. O shopping. E a bota. Só tem lá. Não sei como o nome me fugiu. Da memória.  E que fuga. Nem uma letra parece vir para ajudar.

 

Ela respondeu com calma. Aparente. Rindo. Eu sei qual é. Sim. Você me deu a blusa. Ficou pequena. Tive que trocar. Fui naquele shopping novo. Foi inaugurada uma filial também lá. No shopping novo. Já disse. Sim. Também não lembro o nome.

 

Fui no domingo. Encontrei com aquela sua amiga morena. Que trabalha naquela Clínica. A morena. De cabelos longos. Não lembro o nome dela. Mas você sabe quem é. Ela até emagreceu muito nos últimos meses. Você até falou sobre isso. Que tinha sido uma dieta rigorosa.

 

Não lembra. Tem que lembrar. Você também trabalhou com ela. Ela estava lá comprando umas saias. Até conversamos um pouco. Ela perguntou por você. Mandou beijos. Pediu para você ligar para ela. Esqueci de lhe falar.

 

Sim. Só rindo. Não lembro o nome. Da loja também. E não lembro o nome do shopping.

 

Bom. Vamos logo almoçar. Hoje a agenda está cheia. Não dá para ficar de vassoura na memória. A poeira que fique lá.

 

Riram. Um riso contido. Continha uma vontade. De lembrar logo o nome. Do raio da loja.

 

E o nome daquela magrela. Sim. A paciência parecia ter ido embora. Junto com os nomes. Ele, se soubesse, ia logo fazer gracinhas. Ia dizer que ia tatuar em meu braço. Os nomes. Sim. Muito engraçadinho. Deixa encontrar com ele. Sim.

 

Bom. Mas vou torcer para lembrar. Do nome dele. Do motivo da reclamação. E até das gracinhas dele. No dia que o encontrar.

 

Agora quase engasguei. Tem razão. Só rindo.  

 

Acredite - vem tudo no consciente. Até palavrão. Palavrinha. Só não vem os nomes certos. E isso não é o pior. Queria tanto saber se é a Loja que estou pensando.

 

Bom. Diga então o nome da que você está pensando. Quem sabe é esta. Ou tem uma sonoridade parecida. E acabaremos por lembrar o nome correto.

 

Olharam uma para outra. Talheres nas mãos. Bandejas diante delas. Crachás em cima da mesa - ainda bem. Colegas e amigos passando. Olhando. Cumprimentando. Saindo. Chegando.

 

Ela começou a rir. Ela deu sequência. Riram. Riam. Muito.

 

Ela não podia dizer o nome da que estava pensando. Para ver se era o nome que a outra estava pensando. Simples. Muito simples. Não lembrava o nome.

 

Chegaram enfim a um acordo. O verão não demora. Melhor pensarmos em sandálias. Qual loja você comprou aquelas sandálias tão lindas. No verão passado.

 

A resposta veio rápida. Tal Loja. Em tal shopping tem. Naquele outro shopping também.

 

Era a das botas. Eram os shoppings.  Nem conseguiram terminar o almoço.

 

Rindo – subiram as escadas de volta.

 

Viva o verão. Com botas. Sentiram-se salvas. Desta vez.

 


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