Blog de Lêda Rezende

Junho 09 2009

 

Foi uma decisão. Daquelas que a gente toma confiante. No que faz. No que fez. Por que faz. Por que fez. Calcada em propósitos e objetivos.

 

Decidi. Não fico mais.

 

Telefonei avisando. Dispensei os ganhos protocolares. Até me surpreendi. Teve choro. Lamentação. Não esperava. Emocionada, agradeci.

 

O projeto era de boa qualidade. Assim me pareceu. A idéia inovadora. Num país em que a infância é tão banalizada – se é que esse é um termo correto – o projeto me pareceu maravilhoso. Rico em detalhes. Soberano em soluções. Por isso aceitei. Feliz. E lá fiquei por algum tempo. Também feliz.

 

Começaram pequenas alterações. Internas. Ficou parecendo que a questão passara a ser mais individualizada que socializada. Ou mais particular que social.

 

Lembrei de uma frase célebre. Da minha avó. Não poder mudar não é igual a aceitar, menina, não poder mudar não é igual a aceitar.

 

Pedi para sair.

 

Daí começa uma nova etapa.

 

Ela explicou um pouco chorosa. Mas com a delicadeza habitual. Com este documento vá à rua X e lá já estará tudo resolvido. É perto daqui. Pode sim. Vá caminhando. Nem vai sentir o calor. Será rápido.

 

Uma mocinha de cabelos louros-forçados me atendeu com um sorriso. Na rua X. Leu o documento. Séria. Explicou. Precisa de mais esse documento.

 

Junte esse com mais esse e vá até a rua Y. É pertíssimo daqui. Só três quadras acima. Sim. Uma ladeira. Fica a três paralelas daqui. Daí que você sobe as três quadras.

 

Foi de lá que lhe enviaram. Eu sabia. Erram isso a todo instante. De jeito algum.

 

Você tem que voltar lá. na rua X. E avisar que o documento precisa de mais uma assinatura. Depois do exame médico. Que por sinal é feito lá mesmo. Na rua X. Sim. De onde você veio. Mas agora é rápido. E também é só descer a ladeira. Não tem mais subida.

 

Eles que não entenderam. Ou a senhora não soube explicar. Mas tudo bem.

 

Aguarde naquela salinha. Fará o exame médico.

 

Escutei meu nome. Enfim. Atendida e liberada.

 

De novo diante da mocinha de cabelos louros-forçados.

 

Agora volte até lá. Sim. Na rua Y. Mas é rápido. E perto. Já sabe onde é. Ótimo. Suba as três quadras. Não esqueça. Avise que foi daqui que encaminhamos. Da rua X.

 

Já fez o exame então. Eles reconheceram o erro. Não falaram sobre isso. Não faz mal. Devem ter reconhecido. Enfim. Pode sentar ali. E aguardar. Não sei responder. Mas vai ver não pode. Sim. Deveriam. Mas é uma questão operacional. Vai ver fica complicado. Colocar tudo no mesmo prédio. Mas quer que anote. A sugestão. Então correto. Não anoto.

 

Veio de lá. E o pedido foi seu. Desistiu. Achou que o sentido estava se perdendo. Vai lá saber. Correto. Aguarde mais um pouco. Não se preocupe.

 

Daqui a uma hora já deve ter finalizado. Sei como é horário. Sim. E trânsito desta cidade também. Mas aguarde só mais um pouco.

 

Pode entrar. Pensou errado. Não pode ser finalizado hoje. Sei que começou há três horas. Todo o processo. Mas só poderá ser finalizado lá. Aqui está o endereço. Sim. É longe tem que ser agendado. Pode escolher o dia. De nada. Melhor ir de táxi. Sim. Não é uma região muito segura. O metro fica um pouco distante. Tem estacionamento. Mas de táxi será mais fácil. Olha lá. Se não puder ir tem que avisar. Com antecedência. Sabe que não pode se desorganizar um serviço.

 

Faria mais esta gentileza. Escreva aqui. Preencha este formulário.

 

Olhei o formulário. Era quase uma entrevista. Só que invertida. Ao contrário. Entrevista de despedida. A última pergunta era interessante. Diga o que você deseja para a Instituição. Esta. Da qual você está – voluntariamente - se desligando.

 

Sou educada. Definitivamente. Contida talvez explique melhor. Os meus sinceros votos. Certo. Só os votos. Deixa pra lá os sinceros. Depois de horas. Subindo e descendo ladeira. Indo e vindo. Entre as ruas X e Y. E num calor de trinta-e-três-graus-centígrados! Queriam os meus votos.

 

Apenas isso. Contida. Recatada. Uma dama. Suada e esgotada. Mas uma dama.

 

Escrevi. Quero que ... tenham uma boa sorte.

 

 


Março 22 2009

Era um almoço festivo. Todos comiam. Bebiam. Barulho de pratos e de talheres em coro regido pelas vozes. Risos. O tempo estava frio. Muito frio. Ela saiu do terraço. Foi para a sala. Sentou-se diante de um espelho. Mas sequer o olhou. Ou se olhou.

 

Sentou-se um pouco afastada. Ajeitou os cabelos. Sempre tinha este gesto quando algo a fazia refletir. Enfiava as unhas por dentre os cabelos. Os jogava bem para trás.Talvez um gesto acariciador. Ou descortinador.

 

Notei o gesto. Ri. Neste instante quem fosse sábio compreenderia. Hora de evitar confrontos. Nada de expor idéias. Mas não há muitos sábios por aí. Os gregos já se foram há tempos. Se um grego ali estivesse saberia. Hora de silêncio. Sem questões.

 

O encontro é para mastigar. Melhor cumprir a finalidade do encontro. Mastigar. Não as palavras. O conteúdo do prato.

 

Comentou sobre a solidão. A possível solidão.

 

Alguém se contrapôs. Discordo. Falou bem claro. Demorei a localizar a voz. Falou de novo. Repetiu sua idéia. A solidão sempre é impossível. Localizei. Ela também.

 

Primeiro ela olhou para as pessoas da sala. Sorriu.

 

Tremi. Temi. Lembrei do livro que não encontrei. Deveria tê-lo procurado mais. Poderia ser útil neste momento. Agora era necessário o útil. Para que o agradável se mantivesse.

 

Das pessoas ela sorria. Às vezes até gargalhava. Mas nunca dos comentários. Todos os comentários tinham força. Viesse de quem viesse. Tinha uma susceptibilidade à palavra proferida. Basculava. Em alguns momentos só escutava. Em outros devolvia.

 

Com severidade. Fosse o que fosse. Fosse a quem fosse. Se entendesse como pessoal era imediato. Entrava na defesa. E não havia verbetes que dessem conta. Dos significantes. Só havia significados. Como se não houvesse metáfora possível. Diferente da solidão. Solidão podia ser possível. Metáfora não. Era a palavra pela palavra. Sem barra.

 

Acho que ninguém notou. Que ela estava mais susceptível. Decidiu pelo vinho. Tinto.Depois virou-se para quem falara. E, calma, explicou. Muito calma. Sim. Parecia mais uma explicação.

 

Se eu dividir uma casa com alguém e esse alguém me destratar, eu me odiarei. E isso faz a solidão possível.

 

Falou assim, de um fôlego só. Como se da água estivesse saindo.

 

Viera de outra cidade. Nem sabia mais de quantas mudanças. Mas nunca estagnara. Mudava-se. Perdia objetos. Perdia rostos. Perdia até confiança. Mas mudava-se. Intuíra desde muito cedo que viver é buscar. Buscar é verbo transitivo. Intransitivo poderia ser o encontrar. Gramática pessoal. Mas persistente.

 

Escutei o que ela falara. Olhei para ela e sorri. Sim. Dividir e destratar. Não combinam. Mas vivem - quase sempre - aos pares.

 

O austríaco não foi tão claro quanto ela. Ela foi mais certeira. Nem o marquês francês pensou com essa objetividade. Até na dupla dinâmica tem essa combinação. Dupla dinâmica. Imaginei os dois voando e fazendo par. Divisão e Destrato. Poderia ser uma dupla caipira. Também. Agora ri. Mas com ar discreto. Vai lá que sou mal interpretada e eu que vou fazer parte. Desta dupla nova.

 

Configurei tantas duplas. A mocinha do metrô e sua mãe. O falso libertador e a ingênua. O ator e a assistente. Tem até título de música. Título de filme. Tantas e tantas duplas me vêm à mente. Mente. Boa metáfora. Até pela mentira se destrata. O que se divide. Nunca vi nada mais partilhado.

 

Lembrei dele. Vai ver por isso é mais pragmático. Tudo dele vem seguido de contrato. Contrato de uso. De divisão. Sempre digo. Ele é sábio. Um dos poucos que restaram. Se contrata, não destrata. Ou dá mais trabalho. Destratar. E acaba-se apenas dividindo. E o corte fica único. Quando há. E de uma só vez. Ele lida bem com cortes. Vai ver aprendeu por isso. Não se destrata aos poucos. Mas de um golpe só. Ele iria rir desta confusão toda que estou fazendo. E iria dizer que entendo nada. De contrato.

 

Agora ri. Dei um pulo da cadeira. Sem querer. De um golpe só soou forte. Ainda bem que deu para disfarçar. E ainda ganhei um guardanapo. Aproveitei o agradecimento para rir.

 

Um casal levantou para dançar. E o filho pequeno ficou entre eles. Deveriam estar lembrando o contrato. A divisão. Para evitar o destrato. Não sei qual deles. Talvez todos. Ou só um.

 

Olhei para ela. Continuava com sua taça de vinho tinto. Ela tem razão. Acho que deveria ter uma lei. Proibido destratar quem divide. Um espaço. Um momento. Uma fase. Uma cama. Uma mesa. Um pensamento. Uma perspectiva. Um plano. Um sorriso. Uma história.

 

Procede. A solidão é sempre possível. A companhia sempre limitada. O ódio sempre auto-infligido.

 

Melhor dar vivas ao guardanapo.

 

Mais uma vez - impossível esquecer o russo.

 

 

 


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