Blog de Lêda Rezende

Setembro 29 2009

 

Sim. Adorava a Lua cheia.

 

Estivesse onde estivesse – parava. Olhava para a Lua. Como se a visse pela primeira vez. Como – talvez - teria olhado a primeira pessoa. Com o olhar curioso. E a expressão surpresa. Diante da beleza de uma Lua cheia.

 

Brilhante. Como um farol - na noite universal.

 

Sempre pensava nas distâncias. Nas pessoas que estariam olhando. Em que outros lugares. Comentando com outros idiomas. Com outros sotaques.

 

Que contornos estariam sendo destacados. De flores em um jardim. De barcos em algum mar distante. De alguma casa simples num lugar deserto. Em algum pinheiral envolto em neve. Ou um simples terraço de um prédio. Urbano. Como estava ela ali. A Lua com qualidades altruístas. Dava-se. Expunha-se. Só isso.  

 

A cada Lua cheia - se sentia presenteada. Pela natureza. Pelo Universo. Até pela Vida em si. Não importava. Funcionava sempre como um momento de paz. Total. Absoluta.

 

E foi assim.

 

Estava descendo a escada. Viu que os degraus estavam claros. Uma luz vinha de cima. Olhou para cima. Despretensiosa. Até desatenta. Olhou como se olha. Sem preocupação de enxergar. Virou a cabeça.

 

Ficou surpresa. Fez até aquela voz que as crianças fazem. Um sustinho de alegria. Viu a Lua. Redonda. Linda. Pura luz. Atravessando o vidro do teto da escada. Subiu de volta. Já atenta e cheia de pretensão. Foi para o terraço aberto.

 

Deitou em uma cadeira. Ficou ali. Imóvel. Olhando. Como se diante de um espetáculo. Como se diante de um aviso. Silêncio. Onde qualquer movimento poderia prejudicar o efeito. Mais ou menos assim.

 

Lembrou de tantos lugares onde já tinha parado - para olhar a Lua. As lembranças vieram felizes.

 

Lembrou da primeira vez que foi lá. A cidade eterna. Subiu numa colina. Encostou-se na estátua da mulher heroína e ficou lá. A Lua cheia contornava a figura de pedra. A altivez da escultura parecia se submeter. A todo aquele brilho. Pensou. Nunca quero esquecer este momento.

 

Ordem dada. Ordem obedecida. Nunca esqueceu.

 

E já se iam tantos anos. Na época ainda era muito mais crédula do que observadora. Hoje era o contrário. Era muito mais observadora do que crédula.

 

Mais ainda olhava a Lua com olhos de infância. Quando tudo é simples e possível. Onde a beleza é apenas beleza. Sem questões de estética. Sem filosofias sobre a existência.

 

Lembrou também de quando estava lá ainda. Na cidade de onde viera. Lembrou do risquinho delicado da luz da lua no mar. De longe – lá do horizonte - até a espuminha da água na praia. Até a areia ficava mais clara. Branquinha. E quando criança saia em noites assim para catar as conchinhas. Conchas da noite são mais belas que as conchas do dia. Assim explicava. Vai lá saber por que.

 

E foi um tal de lembrar de Lua – e de luar -  que não acabava mais.

 

Lembrou até dos índios e a sua conta de nascimento. Quantas luas.

 

Lembrou dos contos assustadores. Sempre partindo das ideias dos adultos. Como se temessem. A luz de cima em meio à noite. Como se esta luz permitisse – expor o que não podia ou não devia.

 

A luz da Lua contornando também as maldades. Nunca havia pensado nisso. Só ali. Naquele instante.

 

O céu estava claro. Muito claro. Muitas estrelinhas. Desconsideravam a tal urbanidade. Não competiam com a luz dos prédios.

 

Um ou outro avião cruzava entre elas. Ficou imaginando se as pessoas dentro olhavam e sorriam emocionadas. Diante de tão perto da Lua.

 

Riu quando lembrou a amiga de além mar.

 

Uma noite ela falou via a comunicação habitual. Por letras e barulhinhos no teclado. Estou daqui olhando a Lua. Vai lá você também. Olha para ela. E assim – é como se estivéssemos nos olhando. Riu.

 

Há sempre um modo de se diminuir distâncias. E minimizar saudades.

 

Olhou mais uma vez para o céu. Sentiu o luar em volta dela. Brincou de sombras com o brilho por sobre as pedras do terraço.

 

Levantou. Encostou-se na muradinha com o gradil de ferro. Era esta uma noite de inverno. Sentiu um friozinho na pele. Quase um arrepio.

 

Antes de entrar jogou – com um sorriso - um beijo para a Lua.

 

Também não iria mais esquecer esta noite de luar no terraço. Ordem dada.

 

 


Junho 20 2009

Ela ia falando. Eu ia acreditando. Ela não era de criar contos. Ou de sublimar encontros. Era de efetivar desencontros. Se não estava bom – destituía. Por isso fui acreditando quando avisou. Acabou.

 

Ele ia viajar. Passaria trinta dias fora a serviço da empresa. Naquele país privilegiado. Boa música. Maravilhosas orquestras. Vinhos de especiais safras. Bosques. Rio com nome de valsa. Para completar - até aquelas tortas irrecusáveis. Era bem para lá que ele iria. E para lá ele foi.

 

Observou. Não sentiu saudade da parte dele. Nem uma mínima expressão de quanto-tempo-longe. Sentiu que ia feliz. E que surgira um certo ar juvenil. Juvenil até demais. Olhou. Mudou o ângulo do olhar. Quis ser a mais justa e o menos paranóica possível.  Respirou.

 

Decidiu pesquisar. No caso de estar errada – pediria desculpas. Mas não era mulher de julgamentos errados. Era boa nisso. A própria profissão lhe exigira e lhe qualificara desta forma. Era boa em avaliações. Por isso – mesmo sabedora antecipada – temeu. E tremeu.

 

Abriu a mala. A dele. Perto da hora da saída. Ele – desatento - dava os últimos retoques na imagem. Não a viu abrir. Ainda bem. Porque o olhar dela fora da ordem do selvagem. Do devastador.

 

Encontrou. Vários presentinhos. Que delicadeza. Deveria ser uma princesinha. Sim. Por certo não era para ele usar. Eis algo que tinha absoluta certeza. Esboçou até um risinho. Mas daqueles tetânicos. Com trismo. As crisálidas devem ter trabalhado só para aquelas compras. Eram realmente belas sedas. Suaves ao toque. Belas cores. Fortes. Sedutoras. Mas delicadas no recorte.

 

Agiu.

 

Fechou a mala. Deixou dentro as lindas caixinhas intactas – porém ocas das delicadezas. E ela. Ali. completamente fora - plena de tristeza.

 

Ele se despediu. 

 

Um abraço mais rápido. Um beijo menos efusivo. Não precisa me levar. O motorista virá. Fica em casa mesmo. Olhou para trás mais uma vez ao entrar no carro. Comentou algo sobre a casa. Deu mais um adeus. E saiu.  Assim. Como um ato perfeito de premonição. Ou como um ballet contemporâneo. Cada dançarino com seu ritmo. Mas num mesmo palco.

 

E assim pareceu ser.

 

Enquanto ele de lá se assustava. Ela daqui se mobilizava. Discussões. Exageros. Emoções. Desculpas. Perdões. Nada resolveu. Avisou que era já um assunto encerrado. Um mês se passou.

 

Comecei a rir. Não foi à toa que aquele filósofo diplomata Francês ganhou o ilustre prêmio.  Entendi muito bem o que ele explicava sobre o riso. É preciso exceder duas vezes o trágico para que seja cômico. Começou a ficar cômico.

 

Assunto encerrado é o termo mais flexível que se utiliza. Ou que se desconsidera. Todos buscam a nota de rodapé. Sempre se espera uma báscula. Ele não fugiu à tal regra.

 

Voltou.

 

Chegou com as malas. Tentou abrir a porta. Não conseguiu. A chave desobedecia. Ou a fechadura não reagia. Compreendeu de imediato. Esbravejou. Um homem tão ilustre. Esbravejou.

 

Ela firme – mas assustada - telefonou para aquele número hollywoodiano. Sim. Porque até aquele dia só o reconhecia por filmes. O tal número. Veio o reforço. Ele desconsiderou. Também fez outra ligação. Para o mesmo número. A esta altura já mais suburbano que hollywoodiano. Veio outro reforço.

 

Uma porta.

 

De um lado – de dentro – ela. E sua decisão.  

Do outro lado – de fora – ele. E sua intenção.

 

Para completar as malas. Duas policias. E a porta. Imóvel. Fria. Só não diria ausente porque esta palavra não cabia. Mas ficava ali. As policias negociavam entre si. Alguém tinha que ser convencido. Demorou. Mas enfim - um consenso.

 

A porta não abriu. Ele deu as costas e se foi. Ela foi para o quarto. 

 

Nesta noite chorou. Toda a noite. Se culpou. Se recriminou. Se descabelou. Se perdoou. E se curou.

 

Não cedeu. Sabia que a concessão lhe cobraria um preço maior que a possível solidão anunciada. E o que está destituído – não pode ser restituído.

 

Pensou algo por aí. Pensou muito mais. Talvez nunca tenha pensado tanto durante uma noite. E teve mais certeza quando a noite se foi. Concluiu. No final cada um é refém dos próprios atos. Que cuide muito bem, então, do próprio cativeiro.

 

Pela manhã abriu a porta. Saiu. Para o trabalho. Para a responsabilidade. Para os propósitos e os projetos.

 

Nada quis. Nada pediu. Só caminhou no percurso que escolheu.

 

E recuperou a si mesma. Por inteiro.

 

 


Maio 30 2009

Naquela manhã acordou como sempre - pontual e correto em suas atitudes. Mantendo a responsabilidade. Não se atrasava. Lá se foi. Dirigindo e concluindo os pensamentos da noite.

 

Sempre tranqüilo. Muitos o citam até como o único completamente feliz.

 

Está sempre bem. Fiel e leal às suas propostas. Bem-humorado. Solidário.

 

Tem um estilo pragmático. Sem atos emergenciais. Não gosta de precipitações. Ou melhor, não gosta mais. Afasta qualquer possibilidade de fantasias sem fundamento. Ou de ideal romântico. Nisso não acredita mais. Mesmo tão jovem. Pesa com cautela as atitudes. Tudo tem risco. E preço. Portanto é sempre bom regatear nos impulsos.

 

Estacionou o carro. Iniciou as tarefas do dia. Não são poucas. É bem titulado. Tem muitas atribuições. Nem teve mais tempo para pensamentos filosóficos. Nem nas conclusões da noite. O dia já estava a cumprir sua finalidade. Da lógica à logística.

 

Esta era a sua rotina. Neste dia teve algo diferente. Não demorou muito e recebeu uma mensagem da Diretoria. Que para lá se dirigisse. De imediato. Ainda encerrou o que fazia com calma e - obedeceu. Subiu.

 

Nunca se soube de uma Direção que não fosse em cima. Acima. Deve ter alguma simbologia. Além da óbvia. Pensou nisso também enquanto subia. Deu até uma risadinha. Nos tempos atuais não é das melhores mensagens. Dirija-se imediatamente à Diretoria. Mas o amadurecimento para não ser precipitado incluía também sustos. Não tomava sustos antes que o susto chegasse. Não tremia em pré. Só em pós. E se assim se fizesse necessário.

 

Tremera em pré e em pós quando o irmão se submeteu a uma cirurgia. A uma dolorosa e demorada cirurgia. Neste dia sim. Perdera o amadurecimento. O pragmatismo. A racionalidade. Ali o corpo tremeu. Diante. Depois. Durante. Foi esta uma das raras vezes.

 

Sorriram quando entrou. Convidaram a sentar. Sentou. Sorriu de volta.

 

Apertos de mãos. Abracinhos. Aceita algo para beber. Um cafezinho. Água mineral com gelo e limão. Fique à vontade. Ele ali. Agradecendo e esperando. E vice- versa.

 

Um deles levantou e entregou uma papeleta. Para que assinasse. Explicou antes que ele lesse. Representaria a empresa numa reunião internacional. Uma reunião de todas elas espalhadas pelo mundo. Seria um conferencista. O representante deste país na conferência. Hoje é segunda. O vôo sai na sexta à noite. Ficará por dois dias na metade do percurso. Depois seguirá para lá. O mesmo será feito na volta. A diferença de fuso é melhor aceita pelo corpo com esta divisão. Aqui está o seu tema. Boa sorte e parabéns. A empresa reconhece seus méritos e tem total certeza da escolha correta. Combinado. Então fechado. Apenas se organize para uma semana fora.

 

Desceu. Não contou se tremeu. Mas nem quis elevador. Preferiu mesmo as escadas. Desceu os degraus como que para acordar. Viver este segundo despertar. Com parcimônia. Passo a passo. Mas sorrindo. Sozinho. Por dentro. Por fora. Pelos olhos. Pelos cantinhos. Fez uma busca geográfica.

 

Restava uma dúvida localizatória. Com exatidão. Procurou no mapa. Mais sorrisos. Então era ali que ficava. Dez horas de fuso. Ainda bem que tinha a tal divisão. Passaria dois dias lá na ida e dois dias na volta. No meio – o local a tal conferência.  Já se imaginou até amigo do jornaleiro. Acenando na despedida. Riu. Estava feliz. Muito feliz. Uma viagem premiada. Já viajara muito. Desde bem pequeno. Mas nunca imaginara em ir até lá. Nem no mais sonhado dos sonhos. Ou nas mais ousadas fantasias megalomaníacas.

 

E lá estava. Com passagem. Hospedagem. Protagonizando uma conferência. Tendo a curiosidade como parceira. Uma semana. Sorriu.

 

Avisou primeiro à mulher. Recém casadinhos. Ela não sabia se ria ou chorava. Ganhou o riso solidário. Depois a família. Não faltaram risos e parabéns. Festejos. Palavras de entusiasmo.

 

Na primeira parada olhou para o alto. A cidade construída. Sem passado. Só presente. O passado se representava pelo estilo das pessoas. Não pela arquitetura. Cada um contava – através do rosto e da indumentária – uma parte da história de um povo. As construções pareciam de cidade do futuro.

 

Como aquela do desenho animado da sua infância. Olhou para cima. Os imensos prédios. Os reflexos de uns nos outros. Parecia uma cidade dentro de cidade.As poucas pessoas circulando pelas ruas. Os belos e numerosos carros nas avenidas. As roupas. Os que seguiam a tradição - rigorosamente. Os que abriram mão dela - rebeldemente.

 

No começo da tarde foi para um passeio. No deserto. Continuou olhando para o alto. Para o sol. Depois para o pôr-do-sol. Para a imensidão de perder de vista. Para aquela luz mágica.

 

De uma esquina para outra parecia ter mudado o século. De um desenho animado futurista para outro - da idade da Terra.

 

Enviou uma foto. Sorrindo. Lindo. Feliz. Montado no alto de um camelo.

 

Viva a Vida e suas surpresas. Ergueu um brinde – ao Alto.  

 

 

 


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