A fila estava grande.
Um pouco de impaciência de um ou de outro. Pernas trocadas a cada minuto. Olhares solicitando cumplicidade se cruzavam e desviavam.
A responsável pelo registro saiu. Assim. De repente. Levantou-se da cadeira giratória e saiu. Parecia em busca de algum auxilio. Não deu para saber. Só se sabia que demoraria ainda mais a espera.
Foi imediato. A responsável saiu e ela fez uma expressão de total desamparo.
Era a primeira da fila. Era bem jovem. Magrinha. Não muito alta. O cabelo amarrado para trás. A roupa despojada. Uma amiga a ajudava com os poucos pacotes que segurava.
No momento que a moça levantou e saiu - fez aquela expressão. De total desamparo. Virou-se para os lados. Para trás. As mãos continham o que comprara.
A amiga não sabia muito como agir. Ao menos parecia. Porque falava nada. Estava, talvez, um pouco assustada. Só isso.
Outra encarregada apareceu. Séria. Não se dirigiu a ninguém.
Ela falou quase como uma súplica. Curvou-se sobre si mesma. Como se dominada por alguma dor forte. Curvou-se. E falou para ela. Não podia demorar. Precisava pagar logo o que comprara.
A nova encarregada olhou para ela. Nada respondeu. Olhou para as pessoas da fila. Indiferente. Ia saindo quando ela repetiu. Ainda meio recurvada. E com a pele pálida.
Meu marido morreu. Esta roupa - vim comprar para enterrá-lo. Não posso demorar. Estão esperando. Preciso ser atendida rápido. A amiga colocou as mãos sobre o ombro dela. O gesto muito mais do que ampará-la parece que a deixou mais curvada.
Difícil um peso maior do que o de uma perda.
Olhei para as mãos dela. Segurava uma camisa lilás. Uma gravata roxa e uma calça preta se embaraçavam entre meia e roupa íntima por entre os braços dela.
Quando se sabe que uma roupa é para vestir um morto - a roupa parece ficar mais vazia ainda.
Deveria ser tão jovem quanto ela. E magro. A roupa era de tamanho pequeno. Falou algo sobre os sapatos. Precisava de sapatos. Mas era tudo sempre tão longe. Um departamento do outro. Estava agoniada. Angustiada. Talvez mais que isso. Parecia portadora de uma solidão imensa.
Todas as decisões pareciam ganhar a cada momento mais peso. E os ombros dela pareciam – a cada vez mais - suportar menos. E se curvava a cada gesto que fazia em direção ao que comprara.
A nova encarregada decidiu-se por ajudá-la. Quando começou a digitar os preços – ela olhou o relógio. Repetiu sobre a pressa.
E mais uma vez se curvou sobre si mesma.
Aquela cena era tão real que já sugeria uma irrealidade.
Olhei para as cores da roupa que ela escolheu.
Vestia o morto de morto.
Mas pedia pressa. Não podia demorar.
Talvez a pressa em atender ao morto o fizesse - temporariamente - vivo.
Olhei para as pessoas da fila. Ninguém mais falava. Sugeria um Teatro – não fosse a Vida.
Os que estavam sozinhos observavam – parecendo desprotegidos. Os casais talvez mais expostos - diante da perda exposta dela. Uns se tocaram. Outros ficaram mais próximos. Outros se afastaram. Outros ainda disfarçaram como se não fizessem parte daquela fragilidade universal. Ainda teve quem abandonasse as compras nos carrinhos e saísse. Fingindo afoiteza.
Cada um com sua verdade ou sua mentira. Cada um escapando da certeza única pelo viés que suportava.
O dia era sábado. Duas horas da tarde.
Não pude deixar de lembrar o poetinha. Falava da perspectivas do domingo em seu poema. Pensei no domingo dela. Quando o relógio não lhe pedisse mais a urgência. Quando as roupas ocupadas se fizessem vazias. Frias. Mais vazias. Mais frias.
Ela pagou e saiu. Saiu acompanhada pelo olhar de muitos.
E deixou para muitos a lembrança da perda - incorporada.