Eis uma lição que não aprendia.
Mesmo com a advertência da avó. Sempre tratava a véspera como se o dia marcado já fosse. Enfim – este o estilo dela. E algumas vezes - dava bem certo. Vai ver por isso persistia.
E desta vez não foi diferente. Lógico. Desde a véspera estava em torno do festejo.
Ontem. Tudo acontecera ontem.
Casualmente pudera sair mais cedo da atividade. E lá se foi bem feliz. Animada - até se diria. Planejara com cuidado o trajeto. O meio para seguir o trajeto. Tudo bem adequado. O objetivo já estava definido.
A temperatura caiu. Estava com ares de primavera. Ela. Mas a temperatura não. O vento do inverno viera sabe-se lá de onde fazer parceria com uma consistente chuva.
Mas não se incomodou. Muitas vezes é bom caminhar no frio. E na chuva. Desdenhou e seguiu. Perfeito.
Lá chegou. Olhou. Virou. Mexeu. Rondou. Escolheu. Ou melhor - confirmou o que já havia escolhido há alguns meses.
Sim. Ele iria adorar. Eis mais uma certeza diante de si. Conhecia bem o jeito dele. Afinal ela o ensinara desde bem pequeno. Conforto em primeiro lugar. Para que os instantes de preguiça sejam bem tratados. São especiais esses instantes. E muitas vezes se esquece de agradá-los com o acolhimento que merecem.
Tudo muito bem. Resolvido. Restava apenas um detalhe. Mínimo. Aliás - de mínimo só o tal detalhe. Por que o presente não. Era grande. Poderia ser medido em cúbicos. E vinha dentro de uma linda – e enorme – sacola vermelha. De uma elegância de dar gosto. Mas este o detalhe mínimo que esquecera. Fora sobre trilhos.
Mas aguarda mais um. O próximo. Depois desse. Só mais uma chance. Algum deverá vir mais vazio. Eu e minhas ideias. Mas enfim. Somos mesmo uma boa dupla. Minhas ideias e eu. E lógico. Agarrada à minha bela sacola vermelha. Já somos quase um trio. Tudo bem que até lembra um trio carnavalesco. Bem que poderiam ter criado uma cor mais discreta. Um volume deste ficaria melhor num tom bege. Café com leite. Ocre. Sei lá. Mas usaram e abusaram da iluminação.
Foi pensando assim. Com muita calma e parcimônia – que deu certo.
Conseguiu chegar de volta em casa. Com sua bela sacola vermelha. A esta altura – já do agrado.
Já estava quase acendendo as velinhas e comendo o bolo. Riu.
Sentou-se diante do excesso de rubro. E de repente não estava mais ali. Ela.
Lembrou do dia. Daquele dia há trinta e dois anos.
Um dia mágico. Pela primeira vez saberia o que é este sentimento. Lembra de alguém lhe arrumando os cabelos. Pediu que fizessem uma trança. Os cabelos eram longos. Uma voz saltou rápida. Quase um grito. Não. Parem já. Trança não pode. Os índios dizem que não faz bem nesta situação. Não entendeu bem o que os índios faziam ali. Mas nem tentou questionar. Acatou. Acataram. Soltaram o trançado de imediato. E alguém lhe fez algo que deveria ser um-sei-lá-o-que.
E assim foi. Deitada na maca. Assustada. Mas feliz.
Escutou o primeiro tom de comunicação dele com o mundo. Um chorinho surgiu em meio aos movimentos de médicos e enfermeiras. E os fez parar e compartilhar da emoção.
Fixou em todos – sorrisos. Escutou algumas observações. Tudo bem. É perfeito. É lindo. Ele veio - com ele enroladinho. Ainda chorando. Colocou deitadinho sobre o tórax dela.
Olhou. Jamais esqueceria esta imagem. Jamais esqueceu.
Tocou na pele macia. Ainda úmida. Passou a mão pelos cabelinhos. Ele pareceu se aconchegar. E parou o chorinho. Um conhecimento e um reconhecimento se estabeleceram. De imediato. E para sempre.
E entendeu o amor materno. Neste instante. Diante de alguns. Diante de si mesma. Dentro de uma sala gelada. Tremendo de frio. E de alegria. Uma emoção impossível de se transcrever. Uma emoção que tão-somente se inscreve. E dentro de cada um.
Chorou. Sentiu o coração bater mais forte.
Disse-lhe um bem vindo. Baixinho e emocionado. Eu amo você. De agora em diante não saberei mais o que é Vida sem você.
O telefone. Quase deu um pulo quando escutou o toque. O som a tirou de lá. E a trouxe de volta para cá. Não estava deitada na maca. Mas sentada no sofá da sala. E bem em frente - a sacola vermelha.
Mas sorriu ao escutar a voz. Era ele.
Queria contar sobre a surpresa de um presente. Quase caíra de costas. Era o que queria. A cor era azul. E tinha uma lista branca na lateral. Por dentro bege. Bem esperto. Riram. Festejaram.
Combinaram como seria o dia seguinte. Este sim. O dia exato.
Quando desligou continuou rindo. Lembrou uma frase muito comum. Mas nem por isso menos verdadeira. Simples e objetiva como toda sabedoria.
Quem herda aos seus não degenera.
Lá estava ele comemorando também de véspera. Perfeito.