Blog de Lêda Rezende

Dezembro 25 2009

 

Não há um só dia que não nos encontremos.

 

Os cumprimentos são rápidos e risonhos. Assim. De forma despretensiosa. E superficial. Ele sempre apressado. Eu sempre apressada. São muitos os horários a serem cumpridos. E muito mais agendas a serem atendidas.

 

Ele com um caminhar mais pesado. Mas sempre uma expressão alegre. O riso fácil emoldura os fortes traços orientais. Um sotaque marcado ainda denuncia a imigração não muito longínqua. 

 

Assim nos falávamos. Entre uma subida ou descida de escada. Os elevadores demoram muito. O jeito é caminhar. Ele sempre acrescentava. Faz bem à saúde. Este o máximo de diálogo.

 

Mas nesse dia falamos mais um pouco. Além das escadas. E dos cumprimentos superficiais.

 

Surgiu uma oportunidade. Um mesmo percurso. E lá fomos contando um pouco dos pontos biográficos. Ao menos os que pareciam mais destacados.  

 

Viera de muito longe. De uma travessia quase igual ao sol.

 

Começou pelo avô. O avô era como um personagem de um livro. Era o sábio da aldeia. Respeitado e reverenciado. Jovens e idosos de todas as idades o consultavam. Indicava poções ou dava conselhos.

 

Era um velhinho calmo. De olhar tranquilo. Mas de profundo conhecimento dos riscos do corpo mal compreendido – sob o peso da alma mal entendida. Enxergava a possibilidade da cura como uma exclusiva ação de equilíbrio entre os dois.   

 

Observara o avô - por toda a infância. Morara lá até os doze anos de idade.

 

Um dia o pai o avisara. Vamos nos mudar. Para lá. Será melhor para todos nós. Vou primeiro. Depois mando buscá-los.

 

Um ano depois estava se despedindo. Do avô. Deu-lhe - triste - o que seria de fato o último abraço. Dos amigos. Dos hábitos. Dos cheiros. Da terra. Até dos risos.

 

A mãe embalara o que tinha de importante. Privilegiou fotos e quadrinhos da casa. Entre roupas e sapatos abrigou o mais que pode da própria história.

 

Lembra dela entregando a chave da casa a um novo proprietário. Mas trancando ela mesma a porta – antes de entregar. Notou um tremor discreto das mãos dela.

 

Ele veio tão assustado que lembra a dor que sentia ao respirar. Nunca escutara falar deste país. Nem sabia em que lado da Geografia deveria olhar.

 

E nem olhou.

 

Aprendeu logo depois que as distâncias não são bem explicadas nos mapas.   

 

Nesta parte do relato riu. Um riso triste. No terceiro dia que aqui chegou – estava matriculado e frequentando uma escola pública.

 

Não sabia o idioma. Não entendia as brincadeiras dos colegas. Não compreendia as ordens dadas. Entrou em uma fase de silêncio profundo.

 

Talvez gestante de si mesmo. Nem em casa falava. E durante esse período teve um aprendizado especial.  Aprendeu a ler as expressões. Podia não entender o que falavam. Ou os chistes em volta dele. Mas já sabia ler muito bem as pequenas maldades e criticas negativas. Pela forma do olhar – sabia o pensamento de cada um.

 

Até hoje é grato a ela - uma professora. Talvez o tenha ajudado a nascer de si mesmo. Ficava com ele após as aulas. Todos os dias. Tentava ensinar um pouco mais. Os sons das letras. A forma de melhorar o sotaque. As rotinas da cidade. A compreensão de fusos e latitudes.

 

Não tinha o avô sábio por perto. Mas tinha uma sábia professora ao lado. Se sentiu mais tranqüilo.

 

Trinta e cinco anos se passaram. Desde aquele terceiro dia de imigrante. E primeiro dia de aula.

 

Em meio a esse tempo um diploma lhe foi entregue. Contou-me que escolheu esta especialidade por um motivo simples. A forma de se referir por si só já é bela. Dar a luz. A maioria vai até lá feliz. E de lá sai mais feliz ainda.

 

Até hoje se emociona com os nascimentos. E se encanta diante do tal milagre da vida. Quando dá algum conselho – lembra do avô. E se esforça para ensinar o equilíbrio.

 

Mas fez uma espécie de aspas na conversa.

 

Contou. Logo que se graduou – fez questão de retornar. Passaria lá um mês. Entre os seus de origem. Reconheceria o que deixara para trás. Apertaria as mãos dos amigos. Resgataria os hábitos. Sentiria os cheiros. Tocaria na terra. Esbanjaria os risos. Reveria os códigos.

 

Foi assim que aprendeu que as distâncias não são bem explicadas - nos mapas.

 

Viu-se estrangeiro. De lá. Concluiu com certa nostalgia. Ali não mais pertencia. Era um visitante – em desacordo. Voltou - sete quilos mais magro. Doente e em desequilíbrio - a alma e o corpo.

 

Entrou em sua casa do lado de cá. Sentou-se na primeira cadeira que encontrou. Deitou as malas no chão. Olhou em volta. Mais do que a captura de si mesmo - estava feito a sua re-integração. Talvez pela primeira vez na vida tenha compreendido as palavras do avô.

 

Recuperou rápido peso e saúde. E desta vez não esperou o terceiro dia. No dia seguinte já estava exercendo a sua função escolhida. Sorridente. Adequado. Com sotaque ainda marcado - mas com chistes compartilhados.

 

Nos despedimos com um até breve.

 

Entendi um pouco mais - o amplo milagre da Vida. Desde um avô que nunca conheci aos riscos no mapa - aprendi que uma história se compõe sempre além de si mesma.

 

Lembrei da frase. E a palavra uma vez lançada voa irrevogável.         

 

Procede.

 



Abril 06 2009

Ela decidira fazer uma dieta. Estava gorda. Queria retomar o corpo. O rosto. No lugar onde deixara. Há anos. O corpo. E as curvas. Riu da pobreza da piadinha. Estava tão decidida que já estava sentindo a roupa folgada. E só tivera a idéia. Isso é que é fé. Em milagres.

 

Eram tantas as dietas com nome. Tinha de nome de universidade famosa. De outras menos famosas. De astros do céu. De frutas. De zodíaco. Tinha até de aromas. O que não faltava era título de dieta. Era só escolher um título. E acreditar.

 

Indicaram um professor chinês. Era um Especialista em dieta leve. Para corpos pesados. Assim falavam dele. Não soube se também o contrário. Sobre isso não informaram.

 

Achou maravilhoso - uma metodologia oriental. Bem mais sofisticada. Já estava cansada. De ficar liquidificando couve. Até suas unhas já estavam ficando verdes. De tanta couve no desjejum. E o excesso de peso nada de amadurecer e cair. Ou de tomar suco de abacaxi com gengibre. Ou de seguir uma receita aromatizante. Diziam que aromatizar também ajuda a queimar calorias. Perfumou por muito tempo com essência de canela o ambiente da casa e do trabalho. Quase foi demitida. Ninguém mais agüentava se sentir trabalhando dentro de um capuccino.

 

Concluiu.  Já tinha feito tudo de ocidental. Agora era a vez do oriental.

 

Marcou a consulta. Chegou até mais cedo para garantir o atendimento.

Mostrar interesse. Vai que perde a hora. Chinês entende de relógio. Mas daqueles alternativos. Que nem sempre funcionam como o prometido no original. Preferiu não arriscar.

 

Sentou-se numa poltroninha vermelha.  A salinha era toda decorada com tons vermelhos e dourados. Pensou de imediato num dragão. Temeu rir. Por trás do cérebro uma voz fazia chistes. Assim que ele emagrecia. Os corpos pesados. Com fogo de dragão. Ajeitou-se na cadeira. Como numa espécie de ordem. Para que parasse de rir. Do tal dragão imaginário. Não queria aborrecer o chinês. Vai lá ele vira um ninja. Não sabia mais se ninja era chinês ou japonês. Bom, mas não estava ali para isso. Só queria perder peso. Não ganhar  - cultura.

 

Ele foi logo fazendo um sinal para que ela entrasse. Na salinha de atendimento. Ele entrou atrás dela. Com ar de mestre milenar. Fez uma volta qual um dançarino. Era bem magrinho. Pisava leve. Sentou diante dela. Sério. Muito sério. Ela foi logo também se sentando.

 

Idéia errada. Ele fez um sinal negativo com a cabeça. E apontou com o dedo. Assim mandou que ficasse de pé. Ficou. Ele olhou. Olhou de novo. Ela já se sentiu desconfortável. Ele demorava  muito olhando. Ficou assustada. Será que tinha tanta área corpórea assim. Devia estar pior que imaginava.

 

Cada parte do corpo que ele olhava ela cobria. Com as mãos. Estava parecendo já um teatro de mímica. Ou conversa de surdo-mudo. Desta vez quase riu. Com muito esforço se conteve. Depois ele repetiu o sinal com o dedo. Apontou a cadeira. Assim mandou que se sentasse. Sentou. Nunca estivera numa consulta tão silenciosa. Mas entendeu como um estilo oriental. Refinado.

 

De repente ele falou. Ao menos assim ela supôs. Que ele estava falando. E com ela. Exatamente o que não entendia. Ele falava rápido e com lábios meio fechados.

 

Ele falou. Apontou. Para ela. Para o que ela supôs serem os pontos de acúmulo de gordura. Ficou feliz por ter ido lá. Viu seriedade. Foi o que pensou na hora. E rapidamente concluiu. Pensou errado.

 

Ele rabiscou um papel. Pareceu que assinara o nome. Entregou a ela. Era um papel delicado. Tinha um símbolo vermelho e dourado no cabeçalho. Leu. Era uma orientação impressa. Constava uma prescrição. Chá de folha de couve com gengibre pela manhã.  No almoço acrescentava um copo de suco de abacaxi a um cozido com couve.  À noite uma sopa quente de couve com as folhas cortadas ao comprido. Tinha isso. Ao comprido.  Podia comer alguns legumes. Uma fruta ou outra. Acrescentou falando uma importante recomendação. Para ela. Olhando sério para ela. Com o tal dedo apontando para o rosto. Dela. Só fechar boquinha.

 

Ficou mais amarela que ele.

 

Esqueceu que a China é milenar. Esqueceu da paz. Ensinou a ele quem é que manda. Nada de fechar boquinha. Ficou desbocada em segundos. Foi uma ordem e um contra ato. Algo por aí.  Uma situação constrangedora. Por sorte o chinês não se interessou. Pelas sugestões dela.  

 

Tivesse ele acrescentado o que ela falou como sugestão para emagrecer - e toda uma cultura milenar e um povo estariam, anatomicamente, desfigurados.

 

 

 


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