Blog de Lêda Rezende

Dezembro 14 2009

 

Ele pedira de uma forma muito cuidadosa.

 

Não é fácil pedir uma transferência de data. Mas pediu. Arriscou. Sempre arriscava. Eis uma coisa que nunca deixou esquecido. Os riscos. Ou as trocas de datas. Sempre. Até quando pode, arriscou. E trocou data. Muitas - adiou. Uma - antecipou.

 

Desta vez pedira para passar o Natal do modo habitual. Ela ainda com o mesmo sobrenome. Antes da cerimônia. Seria este então o último assim. E já estava tão perto.

 

Ela ponderou. Ele cedeu. Combinado. Transferiram. Adiaram.

 

Feliz, ele organizou uma festa particular. E cheia de surpresas. Foi uma noite de muitos risos. Em meio a muitas lágrimas. Incrível como um riso sempre atrai uma lágrima. E o inverso nunca é verdadeiro. E desta vez não foi diferente. A cada gracinha um riso e um choro contracenando. E simultâneos.

 

Ele solicitou mais um favor. Uma gentileza. Quase uma imposição. Não registrar em filmes. Nem fotos. Preferia que ficasse como registro apenas da memória. De cada um. E quando não existisse mais os “cada um” que o assunto então se encerrasse. Porque ninguém entenderia. Pelas fotos. Pelo filme. Todo o significado. Poderia minimizar a noite. As palavras. As lágrimas e os risos.

 

Tempos depois ela até discordou. Por ter aceitado. Gostaria das fotos. Filmes.

 

Quando tudo se modifica, as fotos nos levam de volta. Ao cenário. Ao que passou. Cada imagem vem com descrição. E isso funciona como um sonho. Imagens - primeiro. Palavras - depois. E por inteiro. Mas enfim. Não tinha as fotos.

 

Ele passara a véspera do Natal - o dia todo fora de casa. Ninguém sabia onde. Todos perguntaram. Quando finalmente voltou. Ele não explicou. Ninguém viu sacolas. Nem pacotes. Nem presentes.

 

Jantaram juntos. Todos. Muitos. Uma festa de Natal. Na sala ampla a mesa coloria. Com a toalha. Com a comida.  Com as taças. Na sala ao lado uma enorme e colorida árvore.

 

E a surpresa. Muitos pacotinhos novos em volta. E ninguém vira quem os colocara. Todos brincaram. Não tinha chaminé.

 

E veio o momento dos presentes. Troca daqui. Agradece dali. Surpresinha lá. Gritinho acolá. Papéis pelo chão. Aquele suave barulhinho de presentes sendo abertos. Como mistérios desvendados.

 

Ele caladinho. Esperando a sua própria vez. De entregar os que ele comprara. Aí começou a surpresa. Do Natal. Os tais pacotinhos até então sem dono. Eram dele.  

 

E iniciou a distribuição. Cada um ganhou o seu. Adequado ao estilo. Ou à função. Ou intenção. Colocou música. Fez discursinhos. Cada um ganhou seu texto.

 

Ela tropeçava e caía. Com facilidade. Quase caiu de rir. Quando abriu seu pacotinho do presente. Ganhou um protetor de joelhos. Com lacinhos e tudo para prender na perna.

 

Ele não passava um dia sem uma reclamação. Fosse do que fosse. Até da falta de motivo. Já acordava reclamando. Se queixando. Ganhou uma agenda de queixas. Com carinha de birra na frente.

 

Ela acreditava na relação perfeita. Que tudo sempre podia ser resolvido. Com uma palavrinha a mais. Ou a menos. Falava sempre numa certa condescendência amorosa. Confiava nisso. Vivia nas nuvens. Ganhou um tapete. Imitando um tapete voador.

 

Eles dois só brigavam. Não se desgrudavam. Mas brigavam. Não era preciso razão. Nem culpa. De repente lá estavam. Brigando. Discordando. Brigavam até quando concordavam. Já fazia parte da relação deles. As palavras atropeladas. Ganharam uma placa. Psiu. Silêncio.

 

E por ai seguiu a noite. A cada pacotinho aberto – risadas.

 

Nada com valor material. Só emocional. Não se importava com outro tipo de valor. Só com o valor da emoção. E era um adorador. De risos.

 

A data foi transferida. A alegria permaneceu. Com dia e hora inadiável. Na memória de quem ainda está. Na história recontada.

 

O cada um ficou menos. Ele se foi. Mas a cada "você lembra" - a ausência se transforma em presença. Eternizando a idéia dele que - apenas do modo habitual -  não mais participou.

 

 


Dezembro 01 2009

 

Lembrara do sábio Poetinha camarada. Era claro e objetivo. Por isso mesmo um Poeta.

 

Nada como o tempo para passar.

 

Esta frase ficou guiando o amanhecer. Repetiu-se muitas vezes. Autoritária. Persistente.

Procedia. Já se fazia quinze dias. Desde aquela tarde.

 

Ficou com alguns lapsos solidários aos lapsos da consciência. Lembrava da injeção. Lembrava das mãos dele apertando as dela. Lembrava que nevara no sétimo andar. Riu. Aquela risadinha lúdica por entre os lábios. Por isso adorava as defesas da emoção. A neve fora muito companheira. O local era frio. Melhor um deslocamento. Correto.

 

Passara estes dias em casa.

 

Deitada - no início. Parecia que nunca mais se moveria. Devia ser algum Festival de Gemidos. Deveria estar participando de um deles. E vai ver não lembrava. Fora inscrita – sem autorização. Até sem solicitação. Mas enfim.

 

Não fugia ao estilo dela. Eis algo inegável. Era dramática - mas se divertia com o libreto. Ocasionalmente gemia. E deitada ficava.

 

Foi assim que lembrou o Poetinha.

 

Foi mais rápido do que o previsto. Se sentiu como renascida. Foi até o espelho. Se confirmou.  Daí em diante o ritmo mudou. Sentou. Caminhou. Desceu. Subiu. Participou.

 

Viu a chuva do terraço. A cor cinza dominava a paisagem. Enevoava a visão. Obstaculizava os detalhes. Encobria as mil e tantas janelinhas. Desordenava os mil e tantos prédios. À sua frente apenas uma cortina de água.

 

Teve de tudo. De garoa a temporal. Raios e trovões. Depois o céu azul. O calor. A brisa. O clima parecia seguir uma ordenação. Dentro do caos absoluto. Fosse um pouco mais paranóica e acharia que tudo era com ela. Mesmo que a favor. Riu de novo.

 

Mas o mundo gira na posição correta. Principalmente quando há um calor a mais. Como se as Leis da Física se tornassem viáveis. Quase compreensíveis. Tudo parece mais nobre. Nem sabia se este era o termo correto. Mas foi o primeiro que veio à mente. Obedeceu.

 

Recordou desde o dia da decisão. Desde o agendamento.

 

Ele acatara. Acolhera. Que seja assim então. Sem nenhum apesar de. E ela se sentiu bem. Muito bem.

 

Antes. Muito antes. Desde há dez anos. Ele sempre compactuando. Na singularidade das rotinas. Nas parcerias das definições. Presente. Mesmo – se - não corporalmente. Dedicado. Cuidadoso. Não faltavam mimos. Nem gracinhas. Nem ombro. Na ausência física - telefonava.

 

Mas a partir daquela tarde - ratificou. Entendeu letra por letra - o significado da palavra companheirismo.

 

Nada tem a ver com solidariedade. Com preocupação. Com certidão.

 

Companheirismo é uma atitude. Uma emoção. Maior que um ato. Menor que um fato. Acima de um contrato.  

 

Expõe-se no olhar. Na modulação da voz. Nas sugestões mais simples. Surge por inteiro. E compõe a própria tela – aos pedacinhos. Não é invasivo. Nem acidental. Pode até carregar alguma temeridade. Mas é pleno de afetuosidade. É sutil. Mas inflexível. É doce. Mas perspicaz. Não compartilha com nenhuma outra filosofia nem mandamento. Vive a exclusividade do gestual.

 

Companheirismo é da ordem da precedência. Antecedência. Tem um tempo particular. Que desarticula proposições e mediações. E vive num espaço próprio. Não questiona parcialidades.

 

Descobriu – surpresa - que não é uma opção. Não sabia bem o que era. Vai ver a chuva também interferia na nitidez. Das conclusões. Até riu.

 

Olhou para dentro do terraço. Viu a casa. Os quadros. Os móveis. As fotos nas mesinhas. Parecia tão iluminada. Perfumada. Entrou. Continuou consigo mesma. Quase numa dialética enviezada. Não achava a saída. Se fosse um mérito – era minimizar o ser. E fazer dele um estar. Não era bem isso. Era muito além - disso.

 

Teve enfim uma mágica sensação de percepção. Riu. O telefone tocou. Era ele. Perguntou pelo cansaço. Pelo descanso. Pelo dia. Pela rotina mudada. Pela planejada. Até pela dispensada. Riram.

 

Entendeu. Companheirismo é ligação. Ergueu um brinde metafórico – às metáforas tradutoras da Vida.

 

Jogou um beijo em direção a ele.


 


Novembro 23 2009

 

Fiquei olhando os pares. Dentro do salão. Repleto e preeenchido por dança e música.

 

Cada par se integrava. Se desintegrava. Dava até uma confusão mental. E tive a sensação de um - virar dois. De dois - virarem três. Até de dois – virarem um. E de muitos - virarem nenhum.

 

Assim a dança os desnudava. Expondo muito mais as emoções do que os corpos.

 

Ela era a mais nova.

 

Não estava desacompanhada. Estava sem acompanhante. Dançava com quem a convidasse. Tinha a pele muito branca. Magra. Esguia. O cabelo repuxado para trás deixava-lhe o rosto mais à mostra. Traços finos. Exóticos.

 

Ficava todo o tempo com a sobrancelha erguida. Como uma tatuagem. O vestido – preto - obedecia com rigor os contornos da pele. Usava uma delicadíssima e alta sandália. De camurça vermelha. O conjunto permitia destacar o que mais importava. Os pés. Por que para os pés - que olhava de momento em momento.

 

Dançava com cautela. Temia o encontro dos corpos. Mãos e rostos próximos. Corpo e pés afastados. Parecia não dançar. Só se apoiar. Tinha uma expressão triste no rosto. Mas sempre que agradecia ao seu par – sorria.  E voltava - só - para a cadeira.

 

Eles eram dançarinos antigos.

 

Tinham um jeito teatral. Como se a dança fosse uma arte lúdica. Podia ser vivida como quisesse. Até com um pouco de desprezo. Sem cautela e sem controle.

 

Talvez a cumplicidade do casamento já não mais existisse. Mas a da dança permanecia jovem. Ele já idoso. Magro. Recurvado. Um terno preto dava um toque discreto de preparação. Ela mais alta. Disfarçava a idade com maquillage. Cabelos soltos e curtos cobriam uma parte do rosto.

 

Um vestido vermelho longo descia rebelde a curvas.  Uma sandália preta com pedras brilhantes faiscava diante do vai-e-volta dos passos da dança. Não se olhavam. Mas se entendiam. Trocavam pernas e braços. Enlaçavam e desenlaçavam. Mas em nenhum momento se olharam ou se abraçaram. 

 

Eles eram iniciantes.

 

Ela chegou tímida. Olhava mais para os lados que para o piso. Media espaços. Deslocava a roupa. Um vestido preto de tecido mais brilhante. Puxava sempre para baixo. Como se isso a fizesse menos visível. E ao mesmo tempo despertasse os olhares.

 

Parecia oscilar – entre se cobrir - ou se expor. Os cabelos eram longos. Avermelhados. Usava uma sandália preta. De salto tão incrivelmente alto – quanto fino.

 

Ele a guiava com cuidado. Lento. Porém mais confiante. Em si. E talvez nela. Quando o passo exigia que os corpos se separassem – e as mãos ficassem presas – ele a trazia com delicadeza.

 

E ela parecia vir com disponibilidade. Este era um dos poucos momentos que esquecia o vestido. E olhava para ele. Rindo. Ele fazia uma expressão de acolhimento – com os braços e com os olhos.

 

Eles eram ocasionais.

 

Entraram um pouco afoitos. Não decidiam a posição da mesa a escolher. Conheciam o espaço. Mas não sabiam lidar com ele. Demoraram a decidir. Decidiram. Arrependeram. Mas não mudaram.

 

Ela usava um vestido preto. Curto. Os cabelos de cachos caiam pelas costas. Talvez desobedientes ao planejado. Irritava-se de vez em quando. E os puxava para o lado do rosto. A sandália era preta. Com uma flor vermelha lateral.

 

Ele estava com um terno preto. Uma gravata vermelha. A flor vermelha do sapato dela e a gravata vermelha dele -- parecia ser a única comunicação compartilhada entre eles.

 

Dançaram duas ou três músicas. Suado – ele pediu para sair. Puxando os cabelos para o lado – ela o seguiu.

 

Há muitos anos assisti a um filme. Passava-se todo num salão de Baile. Uma filmagem atual. Sobre um período passado. Toda a História se passava sem que uma palavra fosse verbalizada. A música, a dança, o gestual e as roupas denunciavam vontades e recalques. Dominadores e dominados. Invasores e submetidos. O contexto social emoldurava as emoções. Mas o contrário se faz sempre - impossibilitado.

 

Inesquecível. Bendisse até a famiglia do diretor. Mas foi ali sentada. Diante do ritmo e da contorção dos corpos. Da mistura de sexos. Da ambigüidade dos gestos. Que me veio uma sensação forte.

 

Me vi assim. De repente. Dentro do tal filme. Participante anônima das mesas circundantes.

 

A Vida desfila diante de nossos olhos. Todo o tempo. Sem precisar pagar ingresso. Ou comer pipoca. Ela vai tecendo e compondo. A cada nó desatado - prossegue uma linha tortuosa. E meio que à deriva – nos fingimos cegos de nós mesmos.Ou melhor. Meio cegos de nós mesmos – nos fingimos à deriva.

 

Quando sai – não resisti. Dei uma olhadinha para trás.

 

Tudo continuava. E se repetia. Perfeito.

 

 


Novembro 08 2009


Eis o estilo dela. Pontualidade.

 

Talvez mais que um estilo – uma necessidade.  Para o tipo de atividade profissional. Complicada. Dificultada -  por ser mulher. Não importam as feministas. As machistas. Ou contestadores de conceitos. Ou de preconceitos.

 

Há limites que permanecem até se apagados. Isso pode não ser provado. Mas por certo é comprovado.

 

Mas enfim. Sabia disso. Por isso era exigente. Mas consigo mesma. As barreiras eram muitas. As críticas estabelecidas. Chistes e slogans circulando. Quase ameaçadores em volta dos atos e decisões. Mas não introjetava tais textos. Lia e dispensava. Digamos assim.

 

Os colegas - todos do sexo masculino. Só ela ali. Sentadinha. Aguardando os chamados. Fingindo agrupamento. Mas se sabendo solitária.

 

Avisara pelo telefone. Ainda estou presa no trânsito. Chegarei dez minutos atrasada. Concordei. Sem problema. Ainda estamos dentro do horário.

 

Ela chegou. Sorrindo. Como sempre se apresentava. Feliz. Como sempre aparentava.

 

Viera de outro Estado. Do sul. Nem se lembrava do período de vida que não trabalhara.

 

O pai tinha uma pequena fazenda. Um roçado como se dizia de onde vinha. Enorme – sob os olhos infinitos das crianças. Talvez sem exagero – sob os olhos limitados dos adultos.

 

Viviam do plantado e criado. E por vezes do vendido. Assim passara toda a infância – sem consumismo. A adolescência - sem rebeldia. A juventude – esta já com muita fantasia.  Seis crianças. O pai e a mãe. Esse o seu universo por muitos anos. E a terra.

 

Ainda escuro o pai os acordava. A mãe os aconchegava. Não com beijos. Muito menos com afagos. Mas com o acolhimento – metaforizado - do calor.

 

O calor que já vinha da cozinha. Antes mesmo de saírem das caminhas - a casa já estava aquecida com o fogo aceso. O barulho das panelas de alças de ferro fazia coro aos galos e aves madrugadoras.  E estes aos pequenos bocejos das carinhas sonolentas.

 

A mãe fazia o pão. O pai fazia as linguiças. O irmão mais velho trazia o leite - ainda quente da recente ordenhada. Quando o dia trazia a claridade do sol – já estavam alimentados e a caminho da suas tarefas com a terra.

 

Faz uma expressão quase visionária. A terra a encantava.

 

A parte dela era cuidar das sementes. Jogava com sua mãozinha as bolinhas. E algum dos irmãos jogava a terra por cima. Riu. Sempre empurrava um pouquinho mais com o pé. Como se para ter a certeza de que não fugiriam.

 

Vai lá saber. O que pensa uma criança diante da terra e suas sementes. Mas assim fazia. O irmão já habituado - esperava. E só depois que ela repetisse o gesto - seguiam para o próximo cavadinho.

 

Adorava ver as sementes. E aguardar as plantas se erguerem do chão. Ficava fascinada. Por um tempo acreditou numa magia. Uma criação própria.

 

Tinha um duende lá debaixo. Que recebia os grãozinhos. E devolvia as plantinhas. Por isso tinha que agradá-lo com as sementes. Era o almoço do duende.

 

Nunca soube de onde tirara esta idéia. Mas também nunca comentou com a família. Esta sua idéia de Agricultura. Riu.

 

A vida se fazia em torno das estações do ano. Dos nascimentos. Lembra de temores. Se choveria muito. Se demoraria de chover. Se a geada impediria uma boa colheita.

 

Isso sim. Faz parte até hoje de alguns sonhos noturnos.

Mesmo já tão distante. No tempo e no espaço.

 

Agora estava aqui. Cercada de asfalto. De concretos. A vida mudara. Não tinha mais os pais. Os irmãos casaram. Novos núcleos se estabeleceram.

 

Somente ela viera para cá. Por motivos de casamento. Agora já desfeito. Preferia não falar sobre o ocorrido. Cuida de uma filha e dois netos.

 

O desjejum até hoje é um momento especial para ela. A única refeição do dia que sente enorme prazer. Ainda acorda cedo. Antes do sol nascer já está a caminho do ponto. Em seu carro. Ao serviço dos seus inúmeros passageiros.

 

Chegamos ao local combinado. Ela ressaltou. E no horário exato.

 

Ainda senti o cheiro do pão.

 

O orquestrado barulho das panelas substituiu buzinas e freadas. Vi o duendezinho recebendo as sementes pela terra úmida. Me surpreendi com o verde da planta nascendo.

 

Lamentei. O percurso fora curto para tão bela história.

 

Olhei para ela. Uma mulher jovem. No corpo. Na expressão. Mas principalmente - na emoção. Ainda estava com o sorriso que o relato associara. E conclui. Algo se mantivera. Ela continuava plantando. Semeando.

 

Olhei para o céu. Choveria. Sorri tranquila. Os duendezinhos por certo entregariam as plantinhas.

 

Assim iniciei a minha rotina. Assim ela prosseguiu com a dela.

 

 


Outubro 29 2009

 

Lembro o dia em que a conheci.

 

Iniciava o trabalho no Projeto. Logo no primeiro dia. O grupo já estava há mais tempo. Não conhecia os membros da equipe. Mas fui lá. No local de encontro.

 

Assim me avisaram. Chegar a tal hora. Em tal lugar. Com seu material próprio para o atendimento. E lá se identifique com tal pessoa. Seu crachá estará já no local. De lá sairiam os profissionais para as áreas de atuação. Simples assim.

 

Compreendido.

 

Ela chegou - sorridente. Falando com todos. Caminhando apressadinha. Parecia ser muito delicada. Atenciosa. Todos ficavam em torno dela. Os que iam chegando – já iam fazendo círculo. E ela no meio do círculo. Sorridente.

 

Nesse dia específico falavam sobre postura. Uma observação sobre alguém do grupo. Ou sobre algum estilo. Nunca soube ao certo. Algo por aí. Lembro que respondeu. Num tom mais alto. Porém não ríspido. Quando se é carente – procura-se ser simpático. Eu sou carente. Trato todos muito bem. E riu.

 

Como se a carência fosse um adereço. E como tal devesse ser tratada.

Perfeito.

 

Me apresentei. Ficamos amigas.

 

Não eram daqui. Nem ela. Nem o marido. Estavam casados há pouco tempo. Viera por um convite profissional para ele. Parceira – aceitou. E estava se entendendo com a cidade. Já conhecia mais lugares que os nascidos e criados aqui. 

   

Continuamos em nosso trabalho. Um Projeto social. Nos reuníamos uma vez por semana - o dia todo. Contou sobre o projeto particular. Queriam um filho. Logo.

 

Sempre festejada – acabou reunindo torcida. Todos participavam. Se sim. Se ainda não. Alguns mais afoitos até do por que não. Outros mais discretos – aguardavam as mudanças que denunciassem.  Ela respondia. Acolhia. Escutava. Silenciava. Aguardava.

 

Era um tal de – este mês ainda não. Ou – não foi desta vez. Mais exames. Mais aconselhamentos. Mais pesquisas. A ciência e a tecnologia a serviço- da fertilização.

 

Não faltaram ideias. Ou sugestões. Ou indicações. Ou dados. Da Imunologia à Fisiologia – tudo visto e revisto.

 

Um dia tomou a decisão. Cansei. Chega de temperatura. De ciclos. De emergências. De privacidade alterada. De papel. De regras. De estatísticas. De relatos psicológicos. Cansei. Vai ser estilo artificial. Pragmático. Vamos dar uma força à natureza. Para isso existe a evolução. Da ciência. Da pesquisa. Dos resultados. Para ser utilizada. Vamos utilizar. Certo. Então em duas semanas.

 

Quando nasceu – já não trabalhávamos mais juntas.

 

Olhei para as fotos. Linda. Moreninha - como a mãe. Linda - como a mãe. Olhar decidido - exatamente igual à mãe. Mas ela foi logo avisando. É idêntica ao pai. Linda - como ele.

 

Contou rindo. Depois que marquei o artificial - ela veio natural. Nem conheci a equipe. Quando estava já agendado – desmarquei. Ela já estava fazendo parte da nossa vida. Da Vida. 

 

A torcida continuara. Desta vez de forma métrica. Está maior. Esta crescendo. Está sem cintura. Está com jeito de silicone. Cada um construindo nela uma nova anatomia. Com as palavras. Com o olhar. Até com a mímica.

 

E muitos risos. Sempre. A cada encontro do grupo. Todas as manhãs. 

   

Minha avó tinha uma ideia para o riso. Só é realmente feliz quem sabe compartilhar o riso, menina, só é realmente feliz quem sabe compartilhar o riso.

 

Procedia. Procede.

 

O riso compartilhado é uma das mais belas cenas de um grupo. E era assim com ela. Continuavam todos em volta. E ela feliz.

 

Lembrei o comentário sobre a carência. Transformara-se num adereço dispensável. Ou até ignorado. Não era mais uma questão. Nem um símbolo. Ou muito menos uma situação. Não importava se não era daqui. Ou se era de lá. Ela agora era duas.

 

Fiquei emocionada quando li o recadinho. Nasceu. É maravilhosa. Estamos muito bem.

 

E adivinhei o sorriso dela. O primeiro olhar para a filha desejada. O toque delicado na pele suave e rosada. O gestual protetor e acolhedor. As lágrimas fáceis da intensa atividade emocional.

 

As primeiras dificuldades para quem se inaugura - mãe. As pequenas dúvidas. Será que está certo. Será que é assim mesmo. Mas segura diante de uma certeza absoluta - o apaixonamento imediato. 

 

Lá estava. Na tela. Colorindo. Toda enfeitadinha para a foto – a Laurinha.

 

Bem vinda. Bem Vida.

 

 


Setembro 18 2009

 

Chegou com aquele jeitinho dela.

 

Tranqüilo. Poderia até se dizer - sorrateira. Era sempre assim. Caminhava como se deslizasse. Nada fazia com rapidez. Ou esbarrões. Dava conta do assumido. Mas sempre do jeito mais suave. Era assim o estilo dela. E sempre bem humorada. Agradável. Decidida.

 

Não havia dia que atrasasse. Jamais. Nem na entrada nem na saída. Era a pontualidade e seus efeitos obsessivos. Detestava mudança na rotina. Até obedecia – mas reclamava. Resmungava. Falava do mesmo jeito que caminhava – como se em respeito a um especial  silêncio.

 

Se lhe era solicitada uma solução – encontrava. Se lhe era encaminhada uma tarefa – cumpria. E tudo sem comentários. Sem questionamentos. Era para fazer – fazia. Simples assim. Mas sempre dentro da própria metodologia. Disso não abria mão. Nem ninguém a convencia. De qualquer contrário.

 

Primeiro escutei o pisar leve nos degraus da escada.

 

Em geral não subia se me visse ocupada. Ou concentrada. Deveria ter um nobre motivo. Dentro da qualificação que ela mesma estabelecia. Depois vi que trazia um envelope nas mãos. E segurava com muita delicadeza.

 

Interrompi o que fazia e me virei de frente para ela.

 

Entregou-me o envelope. Amassadinho. Foi avisando. Estava no depósito. Deve ter sido na mudança. Ficou por lá. Hoje mexendo em busca de alguns documentos solicitados – as encontrei. Acho conveniente comprar mais porta-retratos.

 

Eram as fotos.

 

Não sabia que estavam lá. Havia procurado muito. Por muito tempo. Agora estava ela a me entregar. Num envelope meio amarrotadinho. Mas envolto num saco plástico. Como embalagem sem data de validade.

 

A mesa estava tão bonita. A toalha de renda branca sofisticava a arrumação de talheres e pratos. O arranjo de rosas vermelhas expunha a emoção forte da decisão.

 

As taças estavam dispostas na mesa quase em fileira dupla. Próximas à borda da mesa. As cadeiras estavam afastadas para possibilitar uma melhor circulação. Até ri. Nem lembrava que tinha feito esta organização.

 

Elas estavam sentadinhas juntas. Talvez um pouco tímidas – pela posição que colocavam as mãos.

 

Eles estavam lindos. Lindos. Lembro que chegaram mais cedo. Queriam prestigiar com toda a solenidade necessária. Consideravam importante - para eles – se era importante para mim. Sempre solidários.

 

Ele estava de branco. Deixara a barba espessa - crescer. Eu estava de branco. Deixara os cabelos longos – soltos.

 

Ri de novo. Também não lembrava que tinha fotografado os pés. A sandália vermelha dava seu toque mundano. Mas – sem dúvida - elegante.

 

Ela olhou. Uma por uma. Fez algumas observações sobre quem me ajudara. Depois desceu. Com o pisar suave de sempre. De volta para suas tarefas. Não podia se atrasar. Concordei. 

 

Fiquei sentada ali – sozinha.

 

Com as fotos nas mãos. E com um sorriso invasor que denunciava as boas lembranças. Assim. Entre o presente e o não presente. Passando e Repassando. Como se num ato de efeito atualizante.

 

Muitas das pessoas – das fotos - não via mais. Saíram do registro do cotidiano. Trocaram de rumo. Ou de atalho. Ou criaram novos caminhos. Não devem ter marcado o chão. Nunca mais voltaram.  

 

Os objetos permaneceram. A mesa. A toalha de renda. As taças. A sandália.

Acho que a vi dia desses numa arrumação - por busca e apreensão. Quase ri.

 

Pensando bem. Não só os objetos ficaram. Os risos ficaram. Os mesmos risos. A mesma alegria. A constante celebração por nos mantermos sempre unidos. Ligados.

 

No tempo das fotos – nem adivinhávamos que eles iriam casar. Que ela viria se integrar. Que mudaríamos para cá. O tempo fez suas gracinhas espaciais e afetuosas. Mas preservou tudo de melhor. Houve sustos. Choro. Tensões. Até abalos de saúde. Mas todas as etapas bem vencidas.

 

Na minha frente tinha um calendário. Estava circulada a data – dia dez.

 

O dia da festa das fotos. Quase nove anos. E era hoje - dia dez. Ele já me acordara - cedo -  com um beijo de comemoração.

 

Desta vez ri. Podia-se até estar amarrotadinhos - mais do que há quase nove anos. Ele tirou a barba. Cortei os cabelos. Mas algo se mantivera bem conservado – como se no tal saco plástico. Os afetos verdadeiros continuaram intactos.

 

Acariciei as fotos. Telefonei para ele. E para eles.

 

Hoje as taças vão sair dos seus cantinhos no armário. Quem sabe – até a sandália vermelha.

 


Setembro 13 2009

 

A discussão parecia séria.

 

Elas falavam e falavam. Não conseguiam atingir um acordo. Porque nem bem uma se calava – a outra retomava. Parecia que já estavam assim há um longo tempo.

 

Poderia se supor até desde sempre. As questões eram as mesmas. Comuns. Antigas. Seculares. Milenares. Parecia cena de déjà-vu.

 

Deviam regular entre três a quatro décadas - no máximo. Faziam expressões de intensa maturidade. De extensa profundidade. Gesticulavam com as certezas nas pontas dos dedos.

 

Viravam-se uma para a outra com ar de inspeção pessoal. Como se circulasse uma pré censura. Que cada uma pesasse bem o que fosse falar. Coisa difícil. Mas nunca impossível. Isso dava para acreditar só de olhar para elas.

 

De repente vi a expressão de uma delas.

 

Triste. Até submissa. Mais escutava que falava. Parecia que solicitava um aparte. Ou tentava erguer a mão. A pedir permissão. Ou talvez socorro. Como uma náufraga. Tentando chamar a atenção do navio. Para se expor. Menos. Ou quem sabe se impor. Mais.

 

A mão denunciava o pedido. Demonstrava o corpo por trás dela. Da mão. E todo o temor por trás do corpo. E a sempre possível solidão lá – emoldurando o temor. Ou o contrário.

 

Mas ficou ali. Tentando a permissão. Dava até a impressão de estar entediada. Mas não era uma avaliação fácil.

 

Era ela - o objeto da discussão.

 

A vida dela estava em acareação. Basculava entre o certo e o errado. Entre a culpa e a desculpa. Entre o feito e o desfeito.

 

Parecia um tribunal. Como se houvessem aberto uma sessão. Todos seguiam uma ordem. E obedeciam a uma desordem. Pela expressão que fazia - teria que ser a jurada de si mesma. A cada fala das incorporadas promotoras e defensoras. Sim. Porque elas alternavam. Mas não perdoavam. Nem a defesa perdoava. Era a defesa contrária. Não tinha juiz. Ou talvez tivesse. Mas ainda não se manifestara.

 

Havia algo ainda mais interessante naquela confusão.

 

Não olhavam para ela. Falavam dela. Isso estava claro pela sinalização dos dedos. Apontavam. Até diziam a palavra - ela. Ou – dela. Mas não olhavam para ela. Discutiam sobre ela. Mas a tratavam como ausente. Falavam-se entre si. Poderosas.

 

Mas nem tudo neste mundo é exclusivamente o que parece.

 

Ela começou a rir. Rir mesmo. Abaixou a tal mão supostamente erguida e começou a rir.  Até amparou a bolsa para que não caísse do colo com o riso. Segurar a bolsa para rir foi perfeito. Não vi nada mais adequado até aquele momento.

 

As outras silenciaram por um segundo. Depois um minuto. Depois caladas – mesmo - olharam para ela. Pela primeira vez. Desde que ali chegaram e se acomodaram - cada uma em seu Lugar de escolha.

 

A situação parecia se inverter.

 

Já não dava mais para saber quem era navio. Quem era náufrago. Muito menos onde estava o mar. Um riso modificou toda a cena. O cenário. Jurados e advogados. Como se fosse cada uma para um lado. Assim. De repente.

 

O riso se fez juiz.

 

Entre condenados e absolvidos - o riso bateu o martelo. Os do navio pareciam se debruçar sobre a murada. O náufrago parecia pensar se estava melhor com sua tábua. Ou sua bolsa. Uma cena cômica.

 

Elas fizeram um ar de irritação. Afinal. Só queriam ajudar. E estavam realmente preocupadas. E ela ria assim. Em meio a uma conversa sobre ela. Uma conversa dela.

 

Não respondeu objetivamente. Levantou. De um salto só. E já com a chave do carro na mão. A tal mão da bolsa e que parecia antes erguida. 

 

E disse. Assim. Despretensiosamente. Desculpem. Obrigada. Licença.

 

Usou todo este vocabulário polido. E continuou. Comecei a ficar com uma dúvida. De quem teria mais dó. De vocês. De mim. De nós todas. Foi ai que - vai lá saber por que - me lembrei. 

 

Achei que iríamos almoçar em casa. Daí vocês telefonaram e me convidaram para almoçar neste restaurante.

 

Havia já colocado um peixe para assar.  Esqueci de desligar o forno. Está lá já há mais de quatro horas. Ainda rindo completou. Por isso dizem que o peixe morre pela boca. Sorrindo - saiu.

 

Lembrei de uma fala da minha avó. Muitas vezes o auxílio vem do esquecimento, menina, muitas vezes o auxílio vem do esquecimento.

 

Estava - assim - encerrada a sessão.

 


Agosto 24 2009

 

A fila estava grande.

 

Um pouco de impaciência de um ou de outro. Pernas trocadas a cada minuto. Olhares solicitando cumplicidade se cruzavam e desviavam.

 

A responsável pelo registro saiu.  Assim. De repente. Levantou-se da cadeira giratória e saiu. Parecia em busca de algum auxilio. Não deu para saber. Só se sabia que demoraria ainda mais a espera.

 

Foi imediato. A responsável saiu e ela fez uma expressão de total desamparo.

 

Era a primeira da fila. Era bem jovem. Magrinha. Não muito alta. O cabelo amarrado para trás. A roupa despojada. Uma amiga a ajudava com os poucos pacotes que segurava.

 

No momento que a moça levantou e saiu - fez aquela expressão. De total desamparo. Virou-se para os lados. Para trás. As mãos continham o que comprara.

 

A amiga não sabia muito como agir. Ao menos parecia. Porque falava nada. Estava, talvez, um pouco assustada. Só isso.

 

Outra encarregada apareceu. Séria. Não se dirigiu a ninguém.

 

Ela falou quase como uma súplica. Curvou-se sobre si mesma. Como se dominada por alguma dor forte. Curvou-se. E falou para ela. Não podia demorar. Precisava pagar logo o que comprara.

 

A nova encarregada olhou para ela. Nada respondeu. Olhou para as pessoas da fila. Indiferente. Ia saindo quando ela repetiu. Ainda meio recurvada. E com a pele pálida.

 

Meu marido morreu. Esta roupa - vim comprar para enterrá-lo. Não posso demorar. Estão esperando. Preciso ser atendida rápido. A amiga colocou as mãos sobre o ombro dela. O gesto muito mais do que ampará-la parece que a deixou mais curvada.

 

Difícil um peso maior do que o de uma perda.

 

Olhei para as mãos dela. Segurava uma camisa lilás. Uma gravata roxa e uma calça preta se embaraçavam entre meia e roupa íntima por entre os braços dela.

 

Quando se sabe que uma roupa é para vestir um morto - a roupa parece ficar mais vazia ainda.

 

Deveria ser tão jovem quanto ela. E magro. A roupa era de tamanho pequeno. Falou algo sobre os sapatos. Precisava de sapatos. Mas era tudo sempre tão longe. Um departamento do outro. Estava agoniada. Angustiada. Talvez mais que isso. Parecia portadora de uma solidão imensa.

 

Todas as decisões pareciam ganhar a cada momento mais peso. E os ombros dela pareciam – a cada vez mais - suportar menos. E se curvava a cada gesto que fazia em direção ao que comprara.

 

A nova encarregada decidiu-se por ajudá-la. Quando começou a digitar os preços – ela olhou o relógio. Repetiu sobre a pressa.

 

E mais uma vez se curvou sobre si mesma.

 

Aquela cena era tão real que já sugeria uma irrealidade.

 

Olhei para as cores da roupa que ela escolheu.
Vestia o morto de morto.
Mas pedia pressa. Não podia demorar.
Talvez a pressa em atender ao morto o fizesse - temporariamente - vivo.

Olhei para as pessoas da fila. Ninguém mais falava. Sugeria um Teatro – não fosse a Vida.

 

Os que estavam sozinhos observavam – parecendo desprotegidos. Os casais talvez mais expostos - diante da perda exposta dela. Uns se tocaram. Outros ficaram mais próximos. Outros se afastaram. Outros ainda disfarçaram como se não fizessem parte daquela fragilidade universal. Ainda teve quem abandonasse as compras nos carrinhos e saísse. Fingindo afoiteza.

 

Cada um com sua verdade ou sua mentira. Cada um escapando da certeza única pelo viés que suportava.

 

O dia era sábado. Duas horas da tarde.

 

Não pude deixar de lembrar o poetinha. Falava da perspectivas do domingo em seu poema. Pensei no domingo dela. Quando o relógio não lhe pedisse mais a urgência. Quando as roupas ocupadas se fizessem vazias. Frias. Mais vazias. Mais frias.

 

Ela pagou e saiu. Saiu acompanhada pelo olhar de muitos.
E deixou para muitos a lembrança da perda - incorporada.

 


Julho 07 2009

 

Decisões são da ordem da auto imposição. Assim fez. Nem bem tomou a decisão e já pôs mãos à obra.

 

Termo bem adequado. Parecia uma obra. Uma construção.

 

Já acordou pensando. Vou arrumar os livros. Nem sabia explicar por que a decisão. Detestava arrumação. E por um motivo simples. Bem simples. Detestava ver a desarrumação que uma arrumação provocava.

 

Alguém havia lhe dito. O por que desta reação. Lembrava, certamente, a desarrumação interna. Como um espelho. Por isso se angustiava.

 

Na época até ficou atenta. Agora decidiu deixar a interpretação de fora. Ao menos naquele momento. Mal dava conta da idéia. Imagina da etiologia da idéia.

 

Riu e prosseguiu na decisão. Cedeu a este primeiro pensamento do despertar. Se tinha um motivo – descobriria.

 

Começou pela estante da frente. Alguma ordem tinha que ter. Para enfrentar a desordem. Escolheu a ordem decorativa, digamos assim.

 

Auxiliada por um paninho, álcool e óleo para couro – lá se foi. Se sentiu uma restauradora daquele famoso Museu. Não faltou nem a máscara descartável. Afinal. Nem só de restauração vivem os alergistas. E vale mais uma vez o contrário. Em parte.

 

Uma idéia realmente de mosteiro. Estilo auto flagelação.

 

Parecia ter tido um começo. Em algum momento começou. Mas confirmava nunca ter fim. Em algum momento assim pensou. Sim. A cada livro retirado para ser adequadamente catalogado – uma nova fileira tinha que ser remanejada.

 

E quando remanejava e dava por encerrado - descobria um volume perdido. Que pertencia justamente – à prateleira que já tinha encerrado. Foram muitas idas e vindas. Sobe e desce. Desvira e vira.

 

Já mais calma resolveu – vai lá saber também por que - abrir os livros.

 

Viu que todos – ou quase todos - tinham datas. E local onde os comprara.

 

Alguns até com dia e hora. E a estação do ano. Até riu. Nem lembrava mais - assim fazia.

 

E assim fez por muito tempo. A cada livro comprado registrava. Os dados do dia da compra. Até o boletim meteorológico. Riu de verdade. Mas não deixou de achar muito boa a idéia. Congratulou a si mesma. Em um deles viu que tinha escrito. Primavera sem flores e com muita chuva. Viu o ano. Será que fora mesmo. Ou seria ela que estava se sentindo assim. Deveria ter anotado melhor. Em um outro estava lá. Dia de sol, final da tarde - a livraria estava vazia. Novamente não sabia se era a sensação dela com ela mesma.

 

De repente caiu um papel. De dentro de um outro volume desgarrado. Amareladinho. O papel. Meio amassadinho. Ou melhor, enrugadinho. O tempo não poupa nem os papeis, pensou.

 

Lembrou daquele poeta. Ele falava isso num poema. De um papel amarelado encontrado num livro. Mas que rasgara sem abrir e ler. Não queria mexer com o passado. Mais ou menos assim, pelo que recordava da poesia.

 

Fez diferente. Abriu. E leu.

 

Era um bilhetinho dela. Avisando que tinha adorado a temporada que tinha passado lá. Que fora muito bem acolhida. E que a adorava muito. Que se sentiu fazendo parte real da família. E que estava com saudades.

 

Quase chorou. Incrível. Ela agora estava casada com ele. E fazia realmente parte da família. E escreveu esse bilhetinho ainda tão criança.

 

Foi em meio a tudo isso que teve uma luz. E que luz. Tirou até a tal máscara. Melhor espirrar que sufocar. Quando a luz vem é preciso se estar exposta. Ficou até de pé.

 

Estantes. Uma real autobiografia. Ou uma prova autobiográfica. Os próprios livros. Estes que se compram e guardam em alguma prateleira. Os lidos e até os não lidos.  Porque são resultado de uma escolha. Denunciam a evolução. A formação do pensamento. De época em época. O crescimento emocional. Não importa o estilo. Importa esta composição.

 

Pelas datas relembrou lugares. Pessoas. Estados de espírito. Movimentos. Ideologias. Filosofias. Entendeu as que ficaram. Compreendeu as que se foram. Assimilou as que se construíram. Avaliou as que sucumbiram.

 

Olhou para os livros como para si mesma. Passou a mão de leve pelas capas. Leu com carinho seus registros. Foi assim organizando - com súbita tranquilidade - toda a estante.

 

Entendeu o próprio pensamento.

 

Ali. Sentada. Diante da tal estante da frente. E de frente para a estante. Ali viu sua vida. Suas buscas. Seus achados e perdidos. E deu um riso particular. Para esta sua idéia ao despertar. Do despertar.

 

Procedia.

 

 


Julho 05 2009

 

Querido:

        Não esqueça  de escovar os dentes deles.
  Falar para a médica sobre a vacinação, a carteirinha está na sacola
  Fale sobre as manchinhas atrás das orelhas deles

  Fale sobre a alimentação

  Pergunte se ela vai passar alguma vitamina

  Fale do dedo que a Marina não tira da boca e já está até machucado – (o que fazer?)

  Pergunte se já está na hora de sair das fraldas (o que podemos fazer?)

  Leva os exames – já coloquei na sacolinha, não achei o comprovante para pegar os outros. Acho que você levou para a Empresa e não trouxe. Leva as carteirinhas que dá para pegar.

  Lave o cabelo do Paulinho.

  O cabelo da Marina é só prender. Fala pra minha mãe fazer dois rabinhos que ela sabe.

  Dá um banho bem dado nos dois, tá?

  Ah! Traz o papelzinho que marca a altura e o peso deles para eu marcar depois na carteirinha...

  É isso. Estou indo sem querer, mas fazer o que... logo estou aí

  Um beijo

 

 

Gêmeos. Foi um susto a noticia. Eles mal tinham saído do juramento na saúde e na doença e lá estavam. Na alegria e na certeza. Sim. Eram dois. E um casal.

 

Entenderam a Vida. A arte da Vida. E a razão de viver. Entenderam tudo isso ao mesmo tempo.

 

A consulta era de rotina. Estava atrasada a fisiologia. Mas devia ser o cansaço. Viajaram logo depois da cerimônia. Na volta foram cuidar de organizar a casa nova. E isso incluía documentos e volta à rotina do trabalho. Nem se preocupou. Tinha engordado um pouco. Devia ter sido pela ansiedade. Da festa. Da viagem. De toda a mudança de vida. Da volta ao trabalho. Dos horários mudados. Estava explicado.

 

Quando a certeza é garantida - é sempre bom duvidar. A experiência é a arte de carregar – com segurança - muitas dúvidas. Assim foi a sabedoria do médico. Achou segurança demais.  Examinou. Solicitou um complemento. Era rápido. Eles, tranqüilos. Conversando e rindo.  

 

Veio o resultado. Foi cuidadoso. Perguntou se já tinham a vida arrumada.

Escutou que sim. Se estavam empregados. Escutou que sim. Se pensavam em ter filhos. Escutou um sim – mais tarde. Entendi.

 

O que vocês acham de sete meses. Acham muito tarde. Muito cedo.

 

Os que riam – silenciaram. O que silenciou – riu. Gêmeos.

 

Saíram do médico e voltaram para casa. Já da porta - no abrir da porta - a casa já não era a mesma que tinham deixado. De repente parecia tão pequena.

 

Horas antes sobrava espaço.

 

Foram a caminho do hospital combinando a decoração. Pensaram em comprar mais uma poltroninha. Quem sabe incorporar um dos quartos à sala. Seria o local da música. Mais um sofá. No terracinho – uma churrasqueira. Teriam tempo. Com calma a casa ficaria como queriam.

 

Na volta já era outra casa. Não a que eles fecharam a porta. E deram as costas. Agora abriam a porta. Olhavam de frente. Tão pequena. Não cabia mais nada. Nem poltroninha. Nem churrasqueira. Naquele minúsculo terraço. Nada mais de som. Muito menos de quarto incorporado.

 

Incorporada estava ela. Duplamente incorporada.  

 

De repente se deu conta. Nem soube dizer por que. Mas entendeu.O mundo das listas.

 

Havia este mundo paralelo. A lista do chá de cozinha. Depois a lista do casamento. Passando por uma lista de convidados. Até a empresa de turismo cooperara - uma lista de hotéis. Teve a do chá de bebê. Bebês. Duas listas. Com direito a cor. A lista das compras. Então assim era o mundo. Só não sabia como não tinha percebido. Que listas não finalizam. Nunca.

 

Agora estava ele ali. Mais uma vez – diante de uma lista.

 

Seguiu – rigorosamente. Com toda a atenção que uma lista merece.

 

Estava com os “listados” no colo. Lindos. Os rabinhos dela maravilhosos. Cheirosos após um banho bem dado. Dentinhos limpíssimos. Feliz. Felizes.

 

Na saída pegou o papelzinho com o peso e a altura para colocar - na lista de acompanhamento deles.

 

Riu. Se sentiu integrado ao mundo.

 

 


Junho 29 2009

 

Estava calada. Aliás, nos últimos dias pouco falara. Algo estranho acontecia com o seu corpo. Sentia desânimo. Vontade de ficar na cama o dia todo. Já acordava assim. Nesse total desalento. Algumas pessoas mais próximas notaram a mudança dela. Até as mais distantes perceberam.

 

Justo ela.

 

Vivia em constante atividade. Nem bem acabava uma tarefa e já organizava outra. Fins de semana agitados. Ia ao cinema. Ao teatro. Ao parque. A Feirinha de Artesanato. Quando estava se sentindo sem opção ia até visitar canil. Mas parada - não ficava. Nada de ficar em casa deitada.

 

Alertava. Desativar a vida em Vida é ofender ao Universo. O Universo pretende ação. E lá se ia com suas idéias motoras em profusão.

 

Mas estava desse jeito. E sentia um mal estar ocasional. Em especial no final do dia. Atribuiu ao cansaço. Muito cansaço. Não sabia explicar do que. Ou contra o que. Com tudo isso acabara diminuindo o seu ritmo. Deveria estar descansada. Mas parecia esgotada.

 

Um dia acordou em absoluto mal estar. Não saiu da cama todo o final de semana.

 

Ele ficou apavorado. Ofereceu tudo. Negou tudo. Reclamou. Acarinhou. Fez sugestão de bom gosto. De mau gosto. Provocou. Ameaçou. Até comentou que devia ser coisa da idade. Aí ate se afastou um pouco. Achou que poderia sofrer uma agressão física. Mas nada a fez reagir. Ela só dormia e acordava. O esforço maior - foi mudar o lado do travesseiro.

 

Decidiu. Na segunda vamos ao médico. Ela respondeu. Nem pensar.

 

Estava com medo. Uma amiga sempre dizia. Depois que se descobre – o processo se acelera. Não. Ficaria assim. Era só cansaço mesmo. Vai ver acumulado. De muitos anos de atividade. Lá um dia o corpo cansou. Pronto. Foi isso. Mais um tempo deitada e o corpo esqueceria o cansaço.

 

Corpo tem memória fraca. Disso tinha certeza. Corpo esquece o que é frio – no verão. E o que é calor – no inverno. E vai ver o dela se atrapalhou. Confundiu agitação com inércia. E estava exercendo seu despreparo mnêmico. Isso. Até gostou deste diagnóstico.

 

Não fosse a pouca vontade de falar até teria dito isso a ele. Mas com uma certa tontura se aproximando e se afastando continuamente - achou melhor calar e pouco se mover.

 

Nada o convenceu. Na segunda foram para o hospital.

 

Ela pouco reclamou. Estava pálida. Sentia um desconforto no estômago daqueles que só se contava em filmes. Concluiu. O corpo deve estar se lembrando de algum filme. Deve ter esquecido que o final de semana acabou.

 

Foi para a sala do médico.

 

Entrou. Sentou diante dele. Ele ao lado. Apavorado. Olhava para o médico.

 

Ela explicava. Ou tentava explicar. Foi logo avisando sobre a teoria do esquecimento do corpo. Ou sobre o corpo confuso.

 

Solicitou alguns exames. De emergência. Já. Ela ainda tentou recusar. Mas a tontura a fez sentar de vez na cadeira.

 

Duas horas de espera - pelos resultados.

 

Enfim. O médico apareceu. Segurava alguns envelopes nas mãos. Avisou que precisava de mais um exame para confirmar a suspeita. Suspeita. Olhou para o marido que apertou a mão dela.

 

Entraram juntos. Ela deitou. Ele fazia o exame e olhava para a tela. Tudo que ela via era a cor sob muitas nuances. E movimentos. A esta altura já estava se sentindo mudando de espaço. E tão jovem. Quem diria.  

 

O médico sorriu. Para os dois. E falou. Não sei se o corpo esqueceu. Ou se o corpo lembrou. Mas são três. Três. Devem se lembrar em mais ou menos sete ou oito meses. Agora é seguir acompanhando.

 

O marido perdeu a voz.

 

Ela chorou.

 

Lembrou da amiga. A da teoria dos processos descobertos - e acelerados.

 

Riu. E todos riram juntos.

 

Estão lindos. Sim. Não param. Decidi comemorar. Quatro aninhos. E estão tão bem.

 

Ele está na natação. Ganhou uma medalha ontem.
Ele escolheu judô. Até incentivei. Para ver se sossega um pouco. Ele vive sob propulsão motora.  
Ele não. É tranqüilo. Adora ficar sem nada fazer. Adora uma cama e uma televisão no final de semana.

 

 

É verdade. Falou rindo. Eu nem lembrava mais disso.

 

 

 



Junho 28 2009

Nunca fizera algo sequer parecido. Sempre fora tímida. Recatada - como uma prima mais sarcástica a denominava. Quando queria ser mais cruel a chamava de recatadinha.

 

Estava sempre com expressão calma. Tão calma que até sugeria um conformismo. E devia ser. Porque de nada reclamava. Ou criticava. Enfim.

 

Vivia em um silêncio simples. Daqueles que nunca diz nada. Porque tem mesmo nada a dizer. Silêncio carregado de si mesmo.

 

Acordara cedo. Leu alguns jornais. Era um sábado chuvoso. Nublado. Cinza.

 

Ligou o computador.

 

Se alguém quisesse explicar o que seria um corte no tempo – ali estava. Materializado. Tudo mudara. Não o tempo. Estava ainda cinza e frio. Mas ela sim. Estava vermelha e acalorada.

 

Diante da tela. Agitada. Falando pelos dedinhos o que nunca falara pelos lábios. Pela vida toda. Na busca de encurtar o tédio usou a curiosidade. Nada melhor que a curiosidade para diagnosticar o tédio. E afastar as suas causas.  

Era uma sala de pessoas da mesma faixa de idade. Não do mesmo sexo. Nem da mesma disponibilidade. Mas estavam lá. Por certo com a mesma projeção que ela. Amparados pelos textos. Pelas palavras. Buscando mais semelhanças que diferenças. E encontrando mais diferenças que semelhanças.

 

Nem viu o tempo passar. Ele era mais objetivo. Perguntou o que queria saber. Respondeu o que queria ceder. Por horas ali ficaram. Tentando ler mais as entrelinhas que as linhas. Parecia um teste. Vocacional. Admissional.  Psico-social. Enfim passional.

 

Foi tudo tão rápido que já estavam até discutindo. Quase brigaram. Fizeram as pazes. Combinaram. Sim. Conheço. Vou lá ocasionalmente. Mas pode ser sim. O horário está perfeito. Até lá. Como assim. Vai ter que descobrir. Está certo. Saia vermelha. Só isso. Calça jeans não vale. Vou falar com todos lá.

 

Certo. Malha vermelha. Adorei. Combinado.

 

Desligou a tela. E parecia que ela se ligara. Numa voltagem alta. Porque começou a correr pela casa. Procurando saia. Blusa. Sandália. Sapato. Sandália. Alta. Baixa. Olhou para os dedos. Horríveis. Não os dedos. As unhas.

 

Telefonou para o salão. Não tinha mais reserva. Fez uma expressão de horror. A mocinha deve ter visto. Porque arrumou um horário em seguida.

 

Passou as mãos pelos cabelos. Não poderia ir assim. Telefonou de novo. Para o mesmo salão.  A esta altura a mocinha já estava permissiva. Foi um tal de pode sim. Claro. Pode deixar. Dá-se um jeito. Pode vir. Finalizou com um autoritário vem logo.

 

Obedeceu. Foi.

 

Sentiu um toque no braço. Você por aqui. Hoje. Que aconteceu. Você sempre tão sem vaidade. Decidiu assistir televisão de unhas pintadas. Riu.

 

Era a prima – a do recatada. Não poupava ironia. E se divertia. Parecia que nada mais tinha a fazer. A não ser perguntar e responder. Sim. Não aguardava por respostas. Satisfazia-se com as perguntas. Em parte. A outra parte era comentar a programação da noite. Não a convidaria porque sabia que ela não ia gostar. Poderia sentir sono cedo. E deixaria todos preocupados por voltar sozinha.

 

Por um segundo se calou. A prima do recatada. Talvez para buscar fôlego.

 

Procedimento correto. Porque foi nesta brecha que ela falou. E a prima quase- seriamente - perdeu o fôlego que – divertidamente - buscara.

 

Não iria. Obrigada. Por favor. Pinte de vermelho. Tenho um encontro. Hoje à noite. Pode deixar com cachos soltos. Não. Quero soltos. Nada de cabelos presos. Sim. Como ia dizendo. Tenho um encontro. Quando. Hoje. Pela manhã. Eu de camisola. Ele de cueca. Um encontro casual. Que deu certo.

 

Marcamos mais tarde. Para dar tempo de trocar a camisola. E ele cobrir a cueca. Depois explico com calma. Agora quero fazer uma massagem. E riu.

 

Riu mesmo.

 

Não desistiu. Não tremeu. Nem temeu. Escolheu a blusa. Colocou a saia vermelha. Combinado é combinado. Sandália. Fez o próprio reconhecimento diante do espelho. E saiu.

 

Ele chegou. Bela malha vermelha. Pensou mas não comentou. Ela se aproximou primeiro. Deu um beijo sorridente - mas cauteloso. Ele sorriu.

 

Falou qualquer coisa. Com o barulho do lugar ela não entendeu. Sorriu de volta. Ele indicou uma mesa. Ela aceitou. Escolheram bebidas. Ele fez um comentário. Você é sempre assim decidida. Ela negou. E se eu estivesse acompanhado. Ou esperando alguém. Por que você faria isso. Sabia que eu viria.  Ele fez um ar estranho. Ela notou. Mas desconsiderou.

 

De repente olhou para a porta de entrada. Do restaurante.

 

Lá estava. Bem ali. Um senhor. Com uma malha vermelha e um vasinho de flores. Pesquisava o ambiente por trás dos óculos.

 

Olhou para o seu parceiro de mesa. Entendeu as perguntas.

 

Riu. Só riu. Não tinha mesmo muito a fazer. Imaginou. Se a prima do recatada estivesse ali.

 

 

 


Junho 24 2009

 

Estava ali. Sentadinha. Parecia tão pequena. Tão frágil. Mas estava decidida. Isso a fazia mais alta. Mais forte.


Decisão sempre provoca uma tri-dimensão. Na expressão. Na fala. No gestual.  Vem de dentro para fora. Causa impressão e denuncia posição.  


Eram muitos hematomas. No tórax. Nos braços. Na face. Um ferimento no lábio. Parecia que sentia uma dor abdominal. Passava a mão sobre a barriga de minutos em minutos. Já não chorava mais. Talvez tivesse já consumido seu estoque conceitual de lágrimas.


Ela se aproximou. Tinha uma prancheta nas mãos. Levou-a até um lugar reservado.


Uma reserva relativa - o corpo expunha as marcas de uma situação.


Não sabia bem o que tinha dito. Achava que fora nada. Em excesso. Ou tão provocador. Mas ele estava irritado. E daí só se lembra da dor. No corpo. Muita. Lembra que pediu piedade. Usou esta palavra. Palavra errada. Ele se descontrolou mais. Quando escutou o pedido de piedade. Não parava. Ela caiu e levantou várias vezes. Até que não conseguiu mais levantar. Ele saiu.


Passou um tempo. Com ajuda de uma mesa próxima, virada, conseguiu ficar de pé. E pediu ajuda. Agora estava ali. Diante de exames e curativos. E perguntas. E desconfianças.


Sim. Sempre há quem olhe com desconfiança. Porta-se junto com as marcas – as possibilidades de culpa. Assim parecia ler no olhar dela. Mas nada falou. Estava cansada.  


Outra pessoa entra na sala - e avisa. Ele está aí. Quer falar com ela. Informamos que dependeria dela. Se aceita falar ou não. Ela terá que dar queixa para que alguma atitude Legal possa ser tomada.


Ela disse que não precisava repetir. Ela escutava. E estava ali. Falavam como se ela estivesse ausente. Mas ela estava ali. Sim. Poderia falar com ele. Poderia deixá-lo entrar. Alguém repetiu. Está certa disso. Ela confirmou com um meneio de cabeça.


Ele entrou. Olhou para ela com ar de surpresa. Tentou se aproximar. Ela ergueu a mão. Não. Só queria que visse de perto. O que fez. O resultado do que fez. Só isso. Agora vou registrar a queixa.


Ele repetiu o ar de surpresa. Por que isso. Não precisa. Perdão. Nunca mais vai acontecer. Você não sabe o dia que tive hoje. E depois ainda teve aquela ida rápida ao bar. Deve ter sido por isso. Deixa disso. Vamos voltar para nossa casa. Você não tem ninguém. Você sabe disso. Não vai ter quem cuide de você. Não vai ter quem lhe sustente. Vai morar onde. Nas ruas. Na casa de alguma colega. Sabe que não vai ter jeito. Esquece isso e vamos embora. Não posso perder meu emprego por uma bobagem de uma briga em casa. Faz favor. Nunca mais vai acontecer. Você sabe que lhe amo. E temos os nossos planos. Vou ao seu emprego. Digo que você ficou doente. Eles vão entender. Uns dias em casa e - tudo voltará ao normal.


Assim ele falou. Assim ela escutou. Sentada na maca. Tocando a barriga dolorida. Abrindo o olho com dificuldade.


Ele repetiu. Vai trabalhar muito. Vai ficar sozinha. Não vai ter quem lhe proteja. Não vai encontrar mais companhia. Vai viver na solidão. Esperando que alguém lhe queira um dia. Mas você não vai conseguir.


Falou já irritado. A enfermeira deu um passo à frente. Olhou para a porta. O segurança caminhava já em direção à sala. Ele falara alto.


Nessa hora ela riu. Ou esboçou um riso. Então era assim que seria a vida dela. Dali para frente. Não entendeu a diferença. Dali para trás. Sempre fora solitária. Trabalhava muito. Não tinha beijo. Não tinha abraço. E agora ele dizia isso. Enfim. Até ficou grata a ele. Ele formalizara o que ela vivia sem assimilar.


Mandou que ele saísse. Pediu um espelho. Chorou. Diante do espelho. Da sua imagem retorcida. Distorcida. Ferida.


Quando acabou o curativo e os exames necessários – registrou a queixa.


Muito tempo depois a re-encontrei. Tinha uma expressão tranqüila. Morava sozinha. Comprara sua moradia. Assim se referiu. Tinha sido promovida no emprego. Estava bem. Sorria com suavidade.


Não perguntei pelo percurso. Pelo discurso. Pelas dores. Nem pelos amores. Apenas a abracei. 


 


Junho 21 2009

Ele se fora.

 

Tempos depois que se deu conta. Nunca se sentira tão só na vida toda. Até aquele dia. Quando ele se foi. Solidão. Ampla e irrestrita. Fiel. Apegada a ela.

 

Na cidade para onde se mudara com ele não tinha parentes. Nem padrinhos. Nem comadres. Pensou isso e até riu. Tinha amigos. Mas não tinha ombro amigo. Isso veio descobrir na época. A diferença entre amigo e ombro amigo. É muito mais que filosófica. Ou conceitual. É material. Assim. Nua e crua verdade. Talvez melhor definindo. É factual.

 

Espalhou as cinzas onde ele pediu. Junto com os filhos. Ainda menores. Obedeceu ao pedido. Cumpriu as promessas.

 

E se viu só. Duas crianças. Sem a casa – ele vendera pouco antes de partir. Sem o carro – ele fizera o mesmo.  Num pequeno imóvel alugado. Desconfortável. Amontoado. Cobrira as janelas com um papel. Da rua se via a intimidade dela.

 

Sempre repetia uma frase. Página virada. Página virada quer dizer muito. Tem relação com o tempo. Tem relação com o espaço. Tem relação com o ato. E foi desse tripé que se amparou.

 

O tempo. Esse foi sua primeira intervenção. Noite e dia passaram a ter um só relógio. Nem sol. Nem lua. Rapidamente vistoriou papéis. Aprendeu a ler documentos jurídicos. A interpretar cantinhos de seguros. Leu todas as letras minúsculas – e põe minúsculas nisso – dos contratos. Estudou tanto que até discutiu com advogados. Com contadores. E os convenceu.

 

Vencer já era uma outra etapa. Agora precisava primeiro convencer. Convenceu. Isso em tempo recorde. Em menos de um mês deu entrada em protocolos nunca dantes imaginados. A cada resposta tediosa que escutava de é só aguardar – devia fazer um olhar especial. Especial de assustador.

Porque todos emendavam. E garanto que vai ser logo. Descobriu assim que se pode domesticar até o tempo.

 

O espaço. Concluiu antes de qualquer aviso. Não poderia continuar ali. Naquele lugar exposto. Eles que sempre foram tão recatados. E decidiu que iria ser dona de novo. Entendeu bem o significado de Casa Própria. Aí cabiam as letras maiúsculas. Aproveitou todas as brechas da sua profissão.

 

Montou um novo viés. A aceitação foi excelente. Juntou daqui. Catou dali. Economizou de lá. Em dois meses já estava se mudando. Desta vez para um lugar bem alto. Vigésimo andar. Devassado talvez por algum passarinho mais afoito. Apenas.

 

Eles ficaram felizes. Comemoraram o quarto novo. Individual. Com seus códigos e insígnias. Nesta noite dormiu tranqüila. Sentiu que albergando – se albergava. Antes de dormir olhou em volta. Sorriu. Discreta - chorou.

 

Dormiu com tanta segurança que pela manhã até perdeu a hora. Todos riram. Isso nunca acontecia a ela. E todos gostaram de voltar a rir em conjunto. Foi um desjejum perfeito. Do corpo e da alma.

 

O ato. Organizou a rotina. Horários. Compromissos. E cada um fizesse a sua parte. Para que todos pudessem usufruir de uma tranqüilidade comunitária. Esta virou a palavra em seguida ao ato. Não sabia se esta era a ordem certa. Palavra - primeiro.  Ato - depois. Ou, ato primeiro - palavra depois. Fazia tempo que não pensava mais no Fiat Lux. Agora a sincronicidade se fazia necessária e impositiva. Leis teriam que ser cumpridas. Os filhos entenderam.  Se não entenderam – aceitaram.  Isso era o de menos. O importante era prosseguir com maturidade.

 

Até ria quando pensava isso. Maturidade é coisa de quem tem tempo. Para ficar com pequenos devaneios. Para extrair grandes conclusões. Ela não tinha dedicação para tanto. Para a filosofia. Estava - cada dia mais - pragmática. E isso agora era amadurecimento. Pragmatismo. Que fiquem os desavisados com suas conclusões igualmente desavisadas.

 

Teve uma instante de contra-senso. Para dar conta – perdeu as contas. Em meio a papéis e decretos – comia. Barras e barras de chocolate. Nem sabia quantos. E a noite ficava mais doce. Esta a desculpa interior. Interior.

 

Porque o exterior se impunha sem desculpas. Foram quinze quilos. Este o saldo da tal página virada.  

 

Mãos à obra. Nada de excessos. Se auto-limitou. Lá se foram os quinze invasivos quilos. Cabelos cortados. Tingidos. Luzes. O que mais gostou.

 

Também era uma adoradora das metáforas. Luzes nos cabelos.

 

Com sua casa. Com seu carro. Com seus filhos. Com sua profissão em atividade. Deu conta.

 

Se perdeu algo nesse meio tempo – nem notou. Meio tempo. Assim poderia se resumir até de forma poética.

 

Meio tempo. Ação inteira. Espaço completo. Agora sim poderia dizer aquela palavra - que no começo se sentia tímida.

 

Ela vencera.

 

 


Junho 20 2009

Ela ia falando. Eu ia acreditando. Ela não era de criar contos. Ou de sublimar encontros. Era de efetivar desencontros. Se não estava bom – destituía. Por isso fui acreditando quando avisou. Acabou.

 

Ele ia viajar. Passaria trinta dias fora a serviço da empresa. Naquele país privilegiado. Boa música. Maravilhosas orquestras. Vinhos de especiais safras. Bosques. Rio com nome de valsa. Para completar - até aquelas tortas irrecusáveis. Era bem para lá que ele iria. E para lá ele foi.

 

Observou. Não sentiu saudade da parte dele. Nem uma mínima expressão de quanto-tempo-longe. Sentiu que ia feliz. E que surgira um certo ar juvenil. Juvenil até demais. Olhou. Mudou o ângulo do olhar. Quis ser a mais justa e o menos paranóica possível.  Respirou.

 

Decidiu pesquisar. No caso de estar errada – pediria desculpas. Mas não era mulher de julgamentos errados. Era boa nisso. A própria profissão lhe exigira e lhe qualificara desta forma. Era boa em avaliações. Por isso – mesmo sabedora antecipada – temeu. E tremeu.

 

Abriu a mala. A dele. Perto da hora da saída. Ele – desatento - dava os últimos retoques na imagem. Não a viu abrir. Ainda bem. Porque o olhar dela fora da ordem do selvagem. Do devastador.

 

Encontrou. Vários presentinhos. Que delicadeza. Deveria ser uma princesinha. Sim. Por certo não era para ele usar. Eis algo que tinha absoluta certeza. Esboçou até um risinho. Mas daqueles tetânicos. Com trismo. As crisálidas devem ter trabalhado só para aquelas compras. Eram realmente belas sedas. Suaves ao toque. Belas cores. Fortes. Sedutoras. Mas delicadas no recorte.

 

Agiu.

 

Fechou a mala. Deixou dentro as lindas caixinhas intactas – porém ocas das delicadezas. E ela. Ali. completamente fora - plena de tristeza.

 

Ele se despediu. 

 

Um abraço mais rápido. Um beijo menos efusivo. Não precisa me levar. O motorista virá. Fica em casa mesmo. Olhou para trás mais uma vez ao entrar no carro. Comentou algo sobre a casa. Deu mais um adeus. E saiu.  Assim. Como um ato perfeito de premonição. Ou como um ballet contemporâneo. Cada dançarino com seu ritmo. Mas num mesmo palco.

 

E assim pareceu ser.

 

Enquanto ele de lá se assustava. Ela daqui se mobilizava. Discussões. Exageros. Emoções. Desculpas. Perdões. Nada resolveu. Avisou que era já um assunto encerrado. Um mês se passou.

 

Comecei a rir. Não foi à toa que aquele filósofo diplomata Francês ganhou o ilustre prêmio.  Entendi muito bem o que ele explicava sobre o riso. É preciso exceder duas vezes o trágico para que seja cômico. Começou a ficar cômico.

 

Assunto encerrado é o termo mais flexível que se utiliza. Ou que se desconsidera. Todos buscam a nota de rodapé. Sempre se espera uma báscula. Ele não fugiu à tal regra.

 

Voltou.

 

Chegou com as malas. Tentou abrir a porta. Não conseguiu. A chave desobedecia. Ou a fechadura não reagia. Compreendeu de imediato. Esbravejou. Um homem tão ilustre. Esbravejou.

 

Ela firme – mas assustada - telefonou para aquele número hollywoodiano. Sim. Porque até aquele dia só o reconhecia por filmes. O tal número. Veio o reforço. Ele desconsiderou. Também fez outra ligação. Para o mesmo número. A esta altura já mais suburbano que hollywoodiano. Veio outro reforço.

 

Uma porta.

 

De um lado – de dentro – ela. E sua decisão.  

Do outro lado – de fora – ele. E sua intenção.

 

Para completar as malas. Duas policias. E a porta. Imóvel. Fria. Só não diria ausente porque esta palavra não cabia. Mas ficava ali. As policias negociavam entre si. Alguém tinha que ser convencido. Demorou. Mas enfim - um consenso.

 

A porta não abriu. Ele deu as costas e se foi. Ela foi para o quarto. 

 

Nesta noite chorou. Toda a noite. Se culpou. Se recriminou. Se descabelou. Se perdoou. E se curou.

 

Não cedeu. Sabia que a concessão lhe cobraria um preço maior que a possível solidão anunciada. E o que está destituído – não pode ser restituído.

 

Pensou algo por aí. Pensou muito mais. Talvez nunca tenha pensado tanto durante uma noite. E teve mais certeza quando a noite se foi. Concluiu. No final cada um é refém dos próprios atos. Que cuide muito bem, então, do próprio cativeiro.

 

Pela manhã abriu a porta. Saiu. Para o trabalho. Para a responsabilidade. Para os propósitos e os projetos.

 

Nada quis. Nada pediu. Só caminhou no percurso que escolheu.

 

E recuperou a si mesma. Por inteiro.

 

 


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