Blog de Lêda Rezende

Agosto 09 2009

 

A semana girara em torno da expectativa.

 

Até sorriu. Quando começou a entender. A expectativa em si – letra por letra – estava já sendo vivida. Já acontecia.  A existência do ato já era fato. É sempre assim. O difícil é enxergar. Vai lá saber por que. Quando uma programação se estabelece – já começa a ser vivida desde o primeiro passo.

 

E a rotina passa a ter outro colorido. Algo por aí.

 

Mas estava muito agitada para ser parcimoniosa. Com as idéias. Os pensamentos vinham desordenados. Não havia fila nem senha. Chegavam de qualquer jeito.

 

Sempre fora assim. Quando chegava esta época – ficava mais feliz. Muito mais feliz.

 

Quando criança – era o mês das reclamações.

 

As notas caiam. O boletim ia para o Departamento das Recuperações. O comportamento ficava um horror diante dos critérios aprovados. E lá se ia para o Departamento das Complicações. As queixas se sucediam.

 

Parecia que professores e coordenadores só sabiam o nome dela. Era o nome mais repetido do mês. Não se importava. Como se não lhe dissesse respeito. Muito menos autoria. Falava mais do que o costumeiro. Ria muito mais que já se conhecia.

 

Quando o mês acabava – voltava para o seu estado habitual.

 

Não que fosse de todo bem disciplinado – porém menos acelerado.

 

O tempo passou. Não tinha mais problemas de boletim. Nem de comportamento. Nem de coordenadores. Não frequentava mais os Departamentos. Mas continuava em seu festejo particular.

 

E desta vez não foi diferente.

 

Quando elas chegaram – todos já sabiam. Estava inaugurada a semana. Os festejos. As lembranças. As saudades. Os acertos. As surpresas. As noticias de todos os lados. As fotos antigas. O riso dela pelas fotos antigas. As escavações na memória. Estavam iniciadas as comemorações.

 

A mesa arrumada. A toalha branca. As flores. As cores da comida. A música bem escolhida. Elas vieram de lá. Saíram da rotina. Re-agendaram as tarefas. Para participar.

 

Eles passaram a semana tramando surpresas. Monitorando a organização. Para que nada faltasse. Para que tudo agradasse. A ela.    

 

Todos juntos. O espaço acolhia a todos. A casa parecia mais clara. Com mais luz.

 

Não faltavam abraços. Beijos. Piadinhas. As fotos assustadas. Agora não. Nem sorri. Apaga essa. Não fiquei bem. Essa - adorei. Me envia. Agora pode. Mais um pouco. Você fica aqui. O preferidinho é ele. Não. É ela. Ela faz assim. Eu que me desdobro. Sim. Ela sempre foi muito elegante. Não acredito. Mexendo com terra. Adora o sitio. Não o chalé. Certo. Cada um nomeia como quer. Mas ela mexendo com terra. Surpreendente. Quem diria. Então tudo bem. Luvas de borracha com grife. Agora a reconheço.

 

Falou sim. Falou que não estava bonita naquela festa. Eu escuto bem. Não faz mal. Eu me vingo. Ele também faz nesta época. Teremos que acertar tudo de novo. Sim. Diante do mar. Ia ser bom. Vamos organizar. Como assim eu quem decide. Sou submissa.

 

Estão rindo do que mesmo. Não entendi. De novo. Ela não esquece a tal Cidade Luz. Não tem assunto que não possa ser citada. Até unha encravada.

 

Sim. Outro brinde. Também achei. Delicioso. Que surpresa. É ela sim. Está ligando de lá. E no momento exato. Dos nossos brindes de aquém mar.

 

Que alegria. Você ligou para estar presente. Nem precisava. Você está presente esteja onde estiver. Além mar não é distância. É só localização. Sim. Todos também estamos sentindo sua falta. Que bom que ligou. Elas estão aqui sim. Haja ciúmes. Depois dizem que ciúme é bobagem. Sei.

 

Diante desse coral perfeito – ela parou. Sentou. Olhou para todos. Se sentiu a privilegiada. Repetiu uma frase costumeira. Bem baixinho. Alguém lá de Cima me adora. E balançou a cabeça. Grata. O prazer de estarem todos juntos era de uma obviedade que até emocionava.

 

E o dia exato ainda nem tinha chegado. E já tinha chegado. Lá se veio – de novo - a questão do tempo. Redundância perfeita. Mas ele proibiu. Não se pode dizer a palavra chave. Esta só no dia certo. Dá azar. E todos obedeceram a ele. Como sempre. Um avisou de lá. A Lei chegou. E todos riram. Obedientes. Lógico.

 

Agradeceu. A todos. A um por um. A elas que viajaram. A eles que se organizaram. E a ela - que mudou a rotina para contribuir com sua acertada arrumação.

 

Deu um beijo nele.

 

Concluiu. É o afeto que enlaça a alegria. E qualifica o Tempo certo.

 

O mais é calendário.

 


Agosto 06 2009

 

Eis a questão inicial. O tempo passa muito rápido. Não dava para acreditar.

 

Lembrei o poetinha favorito. De um versinho breve. Tão breve quanto a Vida. Algo sobre quem é aquele envelhecido ali que me olha. No espelho.

 

Pode-se até amor-daçar o desperta-dor. Pode-se esconder o objeto. Só o objeto. Por que o tempo fica ali. Servindo-se de si mesmo. E servindo-se do outro.

 

Impossível não pensar.

 

Como dizia a minha avó.  Sempre parece que foi ontem, menina, sempre parece que foi ontem.

 

Foi assim que me senti – de repente. A  serviço do tempo. Como uma habitante do seu cárcere privado. 

 

Mas os planejamentos já se iniciavam. Dava para ler nas entrelinhas das comunicações. Dos olhares. Das frases ditas com rapidez. Estilo ao bom entendedor. Cada ano vem com uma novidade. Uma orgia de criatividades.

Cada um expondo seus afetos de forma especial.

 

Lembro de uma vez. Quando cheguei de volta em casa. Ele havia iluminado a sala toda com pequeninas velas. Muitas. Nem dava para saber quantas.

 

Pareciam estrelinhas contratadas. Ali. Em cada lado que virasse – um pontinho de luz delicada. Da cozinha rescendia um odor quase onírico. A música fora escolhida com total adequação – havia sido a primeira música.

Lembro quando entrei na sala. E vi os brilhos no escuro. A música. O cheiro.

 

Passei um tempo em posição de surpresa. De pé. As duas mãos no rosto. Um riso assanhadinho entre as mãos. A mais pura expressão de prazer.

 

Lembro da pergunta dele. Não vai entrar. Na mesinha muitos pacotinhos enrolados com laços e papeis brilhantes. O vinho no balde. A mesa posta. O olhar dele. O riso. Uma festa. Entrei. Sentei. O difícil foi tirar as duas mãos do rosto. O riso foi fácil. Ficou para sempre.

 

Até hoje – quando lembro sinto o cheiro e vejo as cores.

 

Uma outra vez caiu num domingo.

 

Ele levantou antes. Desceu. Da cama escutei uns barulhinhos. Perguntei se estava tudo bem. Sim.

 

De repente muitos barulhinhos. E pés pela escada acima. Estavam todos lá. Ela também estava do lado de cá do mar. E ali. Dentro de casa. Todos. Risos e risos.

 

Me convidaram a descer. Estava lá uma festa. De flores. Um pacote enorme enrolado de branco com fita vermelha - descansava seu peso no sofá.

 

A mesa. A mesa estava linda. Toda arrumada. Com tudo que agradaria aos deuses gregos. E eles todos felizes. Ela só ria. E apontava a sua parte na composição. Para destacar o – lhe conheço bem.

 

Tantos anos que ela não participava deste festejo. A comemoração passou a ser múltipla. Não faltaram motivos. Desta vez a música era mais comunitária. Regida apenas por risos e vozinhas.

 

Naquele dia deu para entender o que falam sobre a magia do afeto.

 

Agora escuto os burburinhos. Vejo olhares enviezados. Desta vez ela não virá. O além mar está mais além. Mas hoje cedo já se fez presente.

 

Informou da celebração. Antecipadamente. Como contagem regressiva. Sempre atenta. E delicada. Já acordei rindo.

 

Foi aí que veio o tal de repente. Aliás veio duas vezes.  Sempre explico a ele porque gosto de ópera. Acho que ele já entendeu. Se não entendeu vai entender. Quando ler.

 

De repente o Tempo passa. E passa mesmo. Ciente da sua função. Com absoluto desprezo por reclamações. Vai lá fazendo um percurso que nem sequer é planejado. Lida com tudo com total despropósito. Este é o Tempo.

 

Mas de repente também o Tempo traz as respostas. Os retornos. Os possíveis merecimentos.

 

Entre esses dois de repente – discordei de mim mesma. Depois me convenci de mim mesma. Para depois entrar em estado de dialética.  

 

Diferente do meu poetinha querido, me reconheci.  E,feliz, dei um beijinho no espelho.

 

Não fiquei tão-somente a serviço do Tempo.

Também o fiz existir a meu serviço.

 


Agosto 04 2009

 

Pode parecer redundante. E é. Isso não se discute. Nem se tenta esconder. A emoção superou a emoção.

 

Se ele escutasse perguntaria. O que isso significa. Esta é uma pergunta que ele sempre faz. A pergunta pelo significado exato.

 

Não há frase escutada, nem texto lido - que a pergunta não venha acoplada. É tão justa que nem hífen interfere. Ou nem hífen tem autorização para cortar a questão. Junto com a postulação - algumas vezes até esboça um riso. Não sei se da tal pergunta. Ou da idéia alheia. Isso é sempre difícil de qualificar.

 

Cada um pensa o que decide. Mas revela apenas o que não censura. A si próprio. Ninguém gosta de se colocar em posição de resposta. Só em posição de pergunta. Uma boa escolha. Sábia. No mínimo - também - cautelosa.

 

Mas fiquei ali. Lendo e relendo a mensagem. Com a emoção superando a emoção.

 

Então tudo dera certo. Mesmo de tão longe. Mesmo sem participação materializada. Sem conhecimentos das faces. Ou das interfaces. Foi só indicar a vontade. Seguir a sequência. Obedecer aos comandos. E deixar lá.

 

E agora o retorno. Assim. Mais de repente que de repente. Ela avisava. Consegui. Chegaram. Estão lindos. A impressão é ótima. Até a embalagem de envio é muito bonita. E adequada.

 

Nem sei quantas vezes li e reli. Esse recadinho.

 

Já fui logo acrescentando. Na imaginação. Será que ela leu comendo bolo de nozes. Será que fez um cafezinho. Será que estava sentada na mesa da cozinha. Não faltaram - será.

 

E o mais engraçado é que nem respostas. As respostas - as tinha. Podia vê-la recebendo. Abrindo. Sorrindo. Podia sentir o entusiasmo. O acolhimento. A pontinha de orgulho por participar. Podia até ver a pressa em abrir logo. Mas sem perder a delicadeza. O cuidado. Para não rasgar o papel. Podia descolar ou desamarrar. Mas nunca rasgar.

 

Lembrei do mestre austríaco. Ele que comentava sobre o papel. O mais importante nem sempre é o que está escrito. E sim saber que a pessoa está passando as mãos no que foi escrito. Isso é belo. Alguém que nos conhece – toca nas frases que inventamos. Nunca o entendi tanto quanto hoje. Tantos anos de estudo. E um aviso decodifica toda uma teoria. Maravilha.

 

Mas foi assim. Ela fez o pedido. O pedido foi atendido. Em cima do que foi escrito. Tudo muito rápido.

 

Fiquei pensando no tempo. Ela saiu daqui. E foi para lá. Além mar. Tempo e espaço deslocados. Ou recolocados. Nunca se sabe.

 

Lembrei da minha avó. Ela falava sobre isso com uma seriedade não muito habitual. Cada vez que a via falar com aquela expressão - eu sentava. Como se o ato de sentar me fizesse mais atenta. Ou formalizasse com mais rigor. O que ela – meio à toa – falava.

 

Tempo e espaço não são relógio nem mapa, menina, tempo e espaço não são relógio nem mapa.  

 

Procede. Agora estava o conceito demonstrado. Ela – além mar. Eu – muito aquém do mar dela. Daqui escrevi. De lá publicaram. Ela escrevia o bilhete de recebimento. Eu lia o aviso de leitura. Dá até para ter confusão mental. Ri.

 

Pensei. Preciso comemorar. Preciso contar. Para quem incentivou. Para o mundo. Para mim mesma.

 

Foi o que fiz. Nesta ordem. O mundo estava ocupado. Com seu ritmo. Seus acertos. Sua rotina. Muito justo. Compreendi.

 

E fiquei com o mim mesma. Desta vez imitei o mestre francês. Fui para o espelho. Olhei e comemorei. Numa solidariedade afetuosa.

 

No final do dia - outro recadinho dela. Havia se descoberto lá dentro. Na dedicatória. Nos relatos. E informou. Ao receber - sentara na cozinha. Na bandejinha diante dela colocou um bolinho. Partiu duas fatias. Leu tomando um cafezinho com uma gotinha de conhaque. Sorrindo para as páginas.

 

Conferiu o tempo. A distância. Acreditou na simulação. Confiou na execução.

 

Entre além e aquém – esqueceu a Semântica. A Sociologia. Até a Filosofia. A fantasia apagou os mares. Ai esqueceu - por fim - a Geografia.

 

Assim me informou. Assim li. Assim entendi. E assim uma publicação - se fez ao contrário. Exatamente como deve ser.

 

À noite ele me trouxe flores. Fiquei - Muito Feliz. Com letra maiúscula.

 

Preciso marcar a data de hoje. Fui dormir - sorrindo - pensando nisso.

 


Julho 29 2009

 

O primeiro pensamento foi o habitual. Corriqueiro. Não acredito que isto está acontecendo. Até esboçou um sorriso. Mas no pensamento.

 

Sim. Rir de expressão facial seria arriscado. Todos que estavam ali dentro não tinham a menor intenção de rir. Ou de ver alguém a rir. A coisa parecia séria. As pessoas em volta pareciam assustadas. Somando tudo isso chegou a uma outra banal conclusão. Deve haver um risco.

 

Ajeitou-se melhor na cadeira. Buscou um mínimo de conforto. Nem que fosse pura fantasia. Conforto era objeto inexistente. Naquele lugar e naquela situação. Mas enfim. Buscou fingir que se aconchegava. E se aconchegou a si mesma. Não sem antes tomar uma atitude. Considerava-se uma pessoa de atitude. Agora era o momento de se provar isso.

 

Controlou o riso mais uma vez. Até se desentendeu. Devia ser alguma nova patologia. Porque ninguém em saudável raciocínio teria vontade de rir. Ali. Aquela hora. E com aquela temeridade. Mas permitiu a vontade. E proibiu a exposição da tal vontade. Se persistisse – prometeu. Buscaria uma ajuda profissional. Medicamentosa. Até cirúrgica. Mas alguma cura teria que ter.

 

Já que a esta altura já se sentia com a doença instalada.

 

Resolvido isso – mudou de texto. Abriu o ladinho da bolsa. Acrescentou aos pensamentos o objeto auditivo egóico. Seu tenor preferido a privilegiava com suas árias preferidas. Nem ousou pensar a palavra - perfeito. Ai já não seria uma patologia susceptível de cura.  Ai já seria buscar a ira do Universo. E isso já seria demais. Até para ela. Censurou na primeira letra da palavra. E ficou ali a escutar. A voz. A música. O coro. O relato dramático em decibéis corretos.

 

Por um segundo veio uma palavra nova. Legado.

 

Sim. Se a situação era de risco. Se a gravidade estava já denunciada e aceita. Qual seria seu legado.

 

Complicado. Aprendera algo.  O que foi dito – permanece. O que foi esquecido de ser dito – também permanece. Mesmo o sujeito oculto - continua sendo chamado de sujeito. E as pessoas complementam. Uns diriam – falei com ela hoje. Outros – faz tempo que não falo com ela. Mais alguns – passou o dia todo trabalhando. Mais outros - ela reclamava tanto do horário. De uns - condescendência. De outros - informações. De mais outros - considerações. As pessoas acabam por preencher com frases – as faltas materializadas.

 

Mudou novamente de texto. Porque lembrou deles. Sem comentários. Já que não podia rir – também não iria chorar. Deu - a si mesma - um titulo. Extremista. Fez até um discreto sim com a cabeça. Ninguém notou.  

 

Um senhor mais alto – de pé – informou. Foi um problema com o da frente. Algo que ver com os trilhos. A chuva está muito forte. Acho que vamos todos ter sair. E caminhar por aquela minúscula trilhazinha. Bem coladinha no paredão. Para subirmos.

 

Concluiu. Eu não. Não vou. Tenho horror de caminhar em lugar apertado.

 

E ele sempre diz que sou malcriada. Junto os dois e daqui não saio.

 

Aumentou o som. O tenor se espalhou. Melhor escutar aquela ópera. Que a outra que estava se construindo.

 

Ia fechar os olhos quando ela veio falando. Gesticulava alto. Queria organizar um motim. Sobre os trilhos. Dar queixa. E naquela situação. Não deu para segurar. Riu. A cena ficou patética. Amotinados no subterrâneo e sobre trilhos molhados. Nem aquele francês pensou nisso. E olha que ele adorava um fosso. Devia ter nascido aqui e agora. Ia se espalhar mais que o tenor nos  ouvidos dela.

 

Foi interrompida por outro. Com ar de sábio - levantou. Ergueu a mão. E a voz. Deu até um pigarrinho antes de falar. Pediu calma. Avisou. Excitação gasta oxigênio. Uma senhorinha sentadinha – até então alheia a tudo - levantou o queixo. O olhar. Em direção a ele. E balançou a cabeça – como se a frase lhe lembrasse algo já passado. O olhar pareceu mais distante que a saída.

 

Nova interrupção. Um gritinho fino informou. Subitamente. Matei. Matei. Passei agora para uma segunda fase. Todos se viraram. Tudo era sinal de perigo. Identificado o matador – todos voltaram a sua posição anterior. E ele feliz – acionava rápido com seus dedinhos as teclas do joguinho. E ria a cada possível mudança de fase.   

 

O frio foi cedendo espaço. Ao calor. E a maioria retirava casacos. Capas. Lenços. Uma semi nudez sem objetivo. Apenas o ato pelo ato. Como se bastasse um suar – para todos se despirem. Fez lembrar o mestre austríaco.

 

Veio uma suave voz - saindo por um tubinho com tela. Informou. Estamos re-iniciando o trajeto. Pedimos desculpas pelo transtorno. As chuvas causaram problemas. Mas já estamos com a situação sob controle. E avisou a próxima parada.

 

Ele começou a vestir o casaco e comentou. Com a absoluta segurança dos pessimistas. Lá em cima está bem pior do que aqui embaixo. Hoje ninguém volta para casa.

 

 

Impossível resistir. Ela riu. Alto. 

 


Julho 26 2009

 

Acordou com o dia já programado de véspera.


Adorava isso. A sua programação adiantada. Dormia sabendo o dia seguinte. Mais ou menos assim. Não era metódico. Nem obsessivo. Era programado. Palavras com sentido diverso. E funcionalidade ainda mais diversa.


E assim seguia seu estilo. Alguns até opinavam. Faziam elucubrações carregadas de teorias sobre o ato em si. Dava de ombros. Escutava mas não antagonizava.


Alguém um dia lá sugeriu. Vai ver é uma aposta na vida. No dia seguinte estará vivo. Vai ver é isso. Funciona como ordem prévia. De rotina a ser cumprida. Nada afastando a possibilidade da interrupção. Da já cuidada rotina. Desde a véspera.


Desta vez acatou. Não que estivesse em total acordo. Acordo era muito difícil de conseguir com ele. Sempre tinha um se ou um mas. Os mais próximos até se surpreenderam. Ela perguntou. Não vai falar que não. Riram. Ele não riu.


Ficou pensando. Não dizia refletindo porque cansara desta palavra. Deste verbo. Refletir passou a lhe sugerir uma observação superficial. Como uma leitura das primeiras linhas. Desconsiderando todo o parágrafo. Como uma alegoria. Sempre cabia mais imagem do que texto. Uma idéia particular. Mas não abria mão.


Assim fora mais aquela noite. A roupa da manhã já separada. A chave do carro sobre a mesa. O café da manhã já deliberado. E dormiu.


Pela manhã já se sentiu reconhecido. Tudo estava conforme o planejado. Logo era muito mais uma questão de reconhecimento. Do que de conhecimento. Assim acreditou. Tinha lá seus instantes de credulidade. Quase lúdica.


Saiu. Foi cumprir o já agendado.


Parece que alguém não entendeu muito bem. Ou se fez de desentendido.


Em meio ao rumo determinado – um susto.


Ela veio de lá. Desconsiderando listas. Projetos. Estilos. Ordens prévias. Obstáculos. Vai lá saber o que programara na véspera. Mas foi uma pancada só. E um estridente grito do metal com metal. Como uma cruel dor aguda e cortante.


Seu carro restava ali. Como diriam os poetas do além mar. E restava era a palavra mais correta. Uma parte se fora. E a que restara não se sustentava. Qual um doloroso divórcio. Onde um não sabia o que fazer sem o outro. Mas já se entendendo separados. As partes destacadas estavam bastante machucadas. Para fazer uma analogia - novamente - poética.


Olhou rapidamente para o relógio. Olhou com calma para si mesmo. A parte externa estava íntegra. Nada parecia ter sido perdido. De si mesmo.


Ela veio. Com um manual de explicações. Sim. Do jeito que falava parecia ler o Manual do Descontrole. Falava alto e ritmado. Fazia as pontuações de forma correta - mas desordenada. Explicava o por que do acidente.


Por um segundo o pensamento se deslocou. Achou maravilhoso. Que alguém soubesse explicar acidentes daquela forma.


Mas logo se recolocou. Respondeu com monossílabos. Objetivos. Claros. Talvez apenas não muito polidos. Mas para uma dama descontrolada – era o máximo que podia conter. Ela era a responsável por toda uma quebra. De metal a trato. Desconsiderando por total o dia seguinte - dele. 


Os meios de solução chegaram. Foi tudo resolvido protocolarmente. Protocolarmente.


Seguiu para a rotina. De taxi. Voltou para casa de noite. De taxi. Quando chegou informaram. Não tinha luz. Subiu as escadas. Muitas. Pela primeira vez se arrependeu. A vista era bela. Sim. Os braços abertos Dele pareciam mais próximos. E acolhedores.


Ficava mais lindo visto da sacada. Mas as escadas eram infinitas.


Superada mais esta etapa - entrou. Nada poderia mais ser feito. À falta da energia elétrica se agregaram muitas outras faltas.


Encontrou uma daquelas lanterninhas de página. Decidiu. Vou vencer mais este inesperado. Abriu um livro que recebera. Começou a ler. O texto falava sobre idéias num carro. Ou sobre a falta de micro num carro. Algo por aí. Na segunda palavra carro do texto – fechou o livro.


Precisava apenas repensar sobre o susto.  E todas as suas variantes. Sobre o evitável - previsto. Ou o inevitável - imprevisto. Ou o inevitável - previsto. Ou ainda sobre o evitável – imprevisto.


Riu. Concluiu. Foi tão somente uma discordância de tempo. Ou de espaço. Só isso. Nada tinha que ver com a véspera. Ou com o programado. Com a tal lanterninha – começou a organizar o dia seguinte. Agora com algumas novas adequações.


E foi dormir. Sem maiores nem menores - reflexões. 


 


Julho 25 2009

 

Os debates ficaram agendados. Os temas estabelecidos. O grupo se reuniu para o proposto.

 

A questão – naquele momento - era básica. Ele tentou formular com sobriedade. A traição está em que Lugar. Na emoção. Na omissão. Na materialização. Ou na obviedade da informação. Ou pior ainda. Na ambigüidade de um riso sorrateiro e explícito.

 

Ao final desta longa frase dita de forma entrecortada – um silêncio adequado se fez.

 

A cada um coube um pensar. Mas a ninguém parecia caber um responder. Pelo menos de imediato. Não houve um só já sei. Parecia que cada um se perguntava muito além da demanda.

 

Ela decidiu. Nada de tanto silêncio. Parecia indignada. Por que ninguém responde. Onde já se viu. Quem nunca se sentiu assim. Traída. Sofrida. Rejeitada. Revoltada. Quem nunca disse - eu que me dei tanto.

 

Surgiram alguns risinhos disfarçados. Parecia ser este exatamente o resumo das perguntas entrecortadas. Mas ninguém se atreveu a falar. Sequer a insinuar. Não era caso de gracejos. Era. Mas não para ela. Mais ou menos assim. Respeitaram a seriedade dela. Calaram-se e escutaram.

 

Traição é fato de escuta. Muito mais do que de fala.

 

Estava tensa. Mexia a colher do cafezinho como se cavasse a terra. Parecia querer exumar alguma mágoa antiga. Para vê-la – talvez - transformada em esqueleto. Ou em pó. Vai lá saber. Apertava a colherzinha com tanta força que os dedinhos até estavam esbranquiçados.

 

A voz começou rouca. Traição não é questão de Lugar. Nem de lugar. É mais uma questão de falta de assento. De falta de olhar. Traição é esvaziar uma pessoa. Totalmente. Expondo sua intimidade a outro. Traição é da ordem do visceral. Por isso dói tanto.

 

Parecia conversa de intelectual daquele país. Lá sim. Cada fala tinha uma total ausência de significado. E ampla plenitude de linguagem. Quem de fora estava - sempre concluía. Entendi nada. Mas sei que é importante. Muito importante. E não faltaram publicações e mais publicações sobre estes tão importantes- nada entendido.

 

Alguém teve uma idéia na sequência da escuta.  E expôs rapidamente a tal idéia. Aqui também tem vinho. Olharam para ele. Riram aliviados.

 

Optaram pelo vinho. Mesmo correndo o risco daquela frase em latim. A esta altura qualquer risco parecia menor que a exumação. Foi a sensação que deu.

 

Alguns se levantaram. Caminharam pesado. Como se cobrissem algum túmulo com os pés. Outros se recostaram na cadeira. Como se buscassem um conforto. Um ou outro olhou para fora da janela. O olhar parecia invejar quem passava isento.

 

Ela sentou. Dispensou o café. Fosse a colherzinha um ser vivo e estaria grata. Até poderia respirar de novo. Ergueu a mão. Firme. Quase todos a olharam. Menos os que observavam os isentos passando na calçada.

 

E calma, muito calma, se dirigiu para a bandeja das taças. No rosto estava uma expressão de falei o certo. Pegou uma taça de vinho branco. Bem gelado. O copo solidário suava o excesso.

 

Comentou. Que cada um exponha seu recato. Eu de minha parte, decidi enterrar o meu. Continuou. Acho que virá um temporal. Pegou mais uma taça da bandeja. Fez um quase ballet na volta. Sentou com uma expressão de falei forte. Falem vocês agora. Ordenou.

 

Vai lá saber por que – acabou de ordenar e sentar - a cadeira virou.

 

Virou e caiu. De costas. Com ela dentro. Colada nas costas da cadeira. Pernas não tão coladas assim. A saia confirmando a existência da lei da Gravidade. Uma nova maquillage inaugurava o rosto. Refrescado pela rápida colaboração do vinho. Um susto. Um grito. Um desacato.

 

Levantou-se com ajuda. Recolheu o mais exposto. Secou o rosto.

 

Quando riu – todos riram. E as respirações retomaram o ritmo correto.

 

Traição, traídos e traidores voltaram ao seu devido Lugar. Entre risos e piadinhas cada um revelou e disfarçou seu pudor. Houve uma inútil tentativa de falas e pequenas pontuações sobre gestos e atos.

 

Em meio ao ocorrido - ficou encerrada a temática. Mal solucionada pelas palavras. Mas muito bem explicada por um objeto. Procedia.

 

Muitas vezes uma súbita performance se faz  necessária. E elucidativa. Foi o que concluíram de mais imediato.

 

 


Julho 14 2009

Daqui dá para ver com clareza. O gestual dele. O aspecto excepcional. A tranqüilidade de alguma forma adquirida. A ocupação de alguma forma conquistada.

 

Ficava ele ali. Na janela. Por horas. Brincando de bolhinha de sabão. Um potinho. O arco. E as bolhinhas se fazendo, voando e se desfazendo. Umas - maiores.  Outras - menores.  Não tem hora. Não tem turno. De repente ele começa a sua possível tarefa. Dentro da impossível ordem.

 

Sopra com delicadeza, embora o corpo seja forte e pesado. A cada bolhinha para e observa. Inclina-se um pouco para frente. Como um observador do percurso. Segue com o olhar. Talvez esta seja sua única forma de se libertar.

 

Diante de todo um contexto aprisionado.

 

Quem sabe expressa sua imobilidade assim. Pela mobilidade das bolhas. Ou se faz identificado. Pela curta mobilidade. Iguais a ele – elas também têm o caminho limitado. Ou o tempo. Mas diferentes dele – elas podem sair e voar. Mesmo que depois desapareçam. Como fora de si – e conduzidas pelo vento - partir.

 

Não parece ser importante o tempo de vida. Das bolhinhas. Mas o tempo de fabricação. Assim se pode chamar. O tempo que começam a voar por determinação dele. Libera as bolhinhas. Dá uma espiadinha. Vê a saída delas. E já retoma a produção. E repete o gestual. Por horas. Calmo. Sereno.

 

Como deveria ser todo autor. Diante da própria produção.

 

Houve uma vez uma festa de Natal. Podia se escutar as vozes. Os barulhos. Observando bem podia até escutar o olhar dele. O olhar vibrava. Ansioso pelo presente. Mexia as mãos. O corpo dançava um para lá e para cá com ritmo compassado.

 

Entregaram.

 

Alguém veio. Abriu bem a janela. Ele acompanhou. Prepararam. E ligaram a máquina. Uma máquina de fazer bolhinhas. Assim. Prática. Ligava e elas saiam. Simples. E numerosas. Saiam aos montes. Muitas. De uma só vez. E voavam pela janela a fora. Com altivez. Independência. E com um barulho próprio. Uma mágica ao alcance de um aperto de um botão.

 

A princípio ele olhou. Parado. Nem ergueu as mãos. Nem acompanhou com o olhar.

 

As bolhinhas saíram pela janela e ele entrou para a sala. Assim. De imediato. Como um ballet sem música. Sem tempo de perdas. Mas carregado de perda de tempo. Com sincronicidade. Mas sem simultaneidade. Assim ficou diante da máquina. Que independia da vontade dele. Que substituía sua rotina por um aperto de botão. Não sabia como lidar. Parecia temeroso. Como se tivesse perdido o controle. Da sua vida. Da sua janela.

 

Não comandava mais. Havia uma validade na quantidade. E a ele agora não mais pertencia. Vivia sob controle. Agora perdera seu único comando.

 

Assim parecia expor. Com a saída da janela. Com o descaso com as bolhas soltas. Dispersas. Aos montes. De repente deu as costas para elas. E sumiu para dentro da casa.

 

A máquina, solitária, lá ficou por um tempo obedecendo ao botão.

 

Parou de brincar. A janela se fechou. Não mais aparecia.

 

Um dia a janela foi aberta. Ele veio feliz. Parecia feliz. Com o potinho. O arco.

 

Mas algo se modificara.

 

Antes já chegava libertando as bolhinhas. Desta vez - primeiro olhou. Em volta. Para cima. Para baixo. Para os lados. Até para dentro da casa. Segurava o potinho com um gesto protetor. O arco entre eles. Apertadinho na mão. Talvez buscasse a traição. Ou o descontrole. Parecia procurar pela ausência, muito mais que pela presença. Buscava uma certeza. Talvez tenha aprendido que até as certezas oscilam. E nem sempre estão do lado favorável.

 

Depois de todo esse cuidado colocou o potinho na murada. Acariciou o arco. Mergulhou no potinho. E sorriu. As bolhinhas saíram pelo mundo afora. De novo. Mas desta vez sob sua orientação. Sob sua guarda.

 

E manteve a produção de acordo com a própria vontade. Exibindo no rosto a expressão feliz de quem cria. Mesmo que depois perdesse o controle. Não importava.

 

A criação é mais importante que o prazo da entrega. Ou da durabilidade.

 

 


Julho 12 2009

Ela me telefonou. A noite mal se instalara. E ela agia como madrugada afora.

 

Passara a semana toda pensando o que fariam. Na sexta. Mil programações.

 

Tinham duas comemorações pessoais. Acreditou. Ele viria mais cedo. Para comemorarem.  Organizou o roteiro. Escolheu os cardápios. Organizou o vestuário. Seria uma noite festiva.

 

Fazia tempos que eles não tinham tantos motivos. Para festejo. Para celebração. Sim. Esta a palavra certa. Celebração. Decidiram por celebrar os bons acontecimentos da semana.

 

Quando me telefonou estava emocional. Passional. Parecia filme italiano. Podia ate vê-la gesticular.

 

Ri baixinho. Não queria provocar mais emoções fortes. Quando ela se desacreditava ela se descomprometia. Com o mundo. Com as etiquetas. Com as regras.

Parecia que entrava em narcose. Porque todo o jeitinho calmo e suave se transformava.  Em explosão.

 

Lembrei a minha avó. Ela dizia sempre. Cuidado com as pontuações, menina, cuidado com as pontuações. Nunca vi ninguém que se adaptasse tão bem ao tal aviso de alerta.

 

Falava sempre doce. Com vagar. Nas frases dela continham de tudo. Desde hífen até exclamações. Mas tudo muito suave. Compassado. Parecia uma harpa. Com toda a leveza musical. Como um dedilhar pelas cordas.

 

Até a hora que se desacreditava.  Ai sim. Nem toda bateria faria tanto efeito. Era um ressoar de múltiplas sonoridades. Simultâneas. Sincrônicas. Um outro tipo - de pontuação - surgia.

 

Uma amiga a tinha convidado. Teriam um encontro para um café. Um vinho. Qualquer líquido acessório. Cancelou. Cancelou. Ele avisou que viria cedo. Preferiu esperar por ele. E não fazer encontros com pressa.

 

E ficou sozinha em casa.

 

Nem acreditou. Depois daquela semana só de problemas. Tudo bem. Nem lembrava mais se tivera problemas. Mas isso não importava. Assim foi logo dizendo. Quando perguntei pelos problemas. Importava que ficara só. Numa noite de sexta.

Dormiria sozinha. Conversaria sozinha.

 

Já estava na fase da bateria. Esta é uma fase onde só produz sons. Não escuta sons. Mais ou menos assim.

 

Mas houve um segundo de silêncio. Um segundo bem fugaz. Por onde pude dizer uma palavrinha. Uma frase. Por que não deixa para reavaliar amanhã. Nada melhor que o dia seguinte. E ainda é cedo.

 

Não respondeu. Ou melhor, não deu tempo de responder. Acho. Porque de repente escutei um som estranho. Algo como um gritinho. Um risinho. Difícil decifrar sons ao telefone. O som seguinte foi um estalinho.

 

Ela voltou a falar com uma voz doce. Aquela de sempre. A pré-bateria. Ele voltara. Não atrasara muito. O trânsito que atrapalhou a pontualidade do relógio. Não a dele. Até contou isso rindo. Estava cheia de graça. Graça até demais.

 

Antes de desligar escutei a explicação. Dela para ele.

 

Foi ela que estava preocupada com você. Ainda me perguntou se eu não me desconfortava. Por você marcar e não vir. Ou por estar em festinhas com suas colegas de trabalho. Imagina. Logo você. Sempre cuidadoso. Afetuoso. Coisa de amiga. Eu estava apenas lhe esperando e lendo. Quando ela telefonou.

 

De novo o som seguinte foi um estalinho. E o telefone foi desligado.

 

Do lado de cá – ou de lá – pensei. Preciso comprar uma tuba.  Vamos ver onde a harpa ficará nesta orquestra.

 

 


Julho 10 2009

A frase veio com néon. Assim ficou. Penduradinha. Brilhando. Questionando sem pudor. Nem constrangimento. E com insistência.

 

Sim. Outros pensamentos vieram - mas ela não saia. A tal frase. Não respeitou ordem. Não aceitou um mais tarde. Muito menos um logo depois.

 

Até um desapareça foi ensaiado.

 

Nada resolveu. Ficou.

 

Parecia decidida a ter uma resposta. Ou uma conclusão. Alguma solução teria que ter. Mas dali não se retirava.

 

Ficara o dia todo. Desde o despertar. Até deve ter sido a causa do despertar. Foi começando meio sem brilho, meio enevoada. Formulada em sílabas separadas. Com o despertar completo parece que se incorporou. Encheu-se de força e poder. Sim. Muito poder. Só este excesso de poder para vencer as abstrações. Aliás, só um excesso de poder para desconsiderar constrangimentos.

 

Podia-se até recordar as palavras do mestre Francês. Ele dizia que não entendia. Como se sabia que o pensamento vinha de dentro. E não de fora.

 

Eles são assim. Só jogam o indecifrável. O mestre austríaco queria desnudar a alma feminina. O mestre francês queria desacreditar o pensamento.

 

Enfim. Nem mestre austríaco. Nem mestre francês. Nada afastou a tal frase. Continuou ali. Brilhando a sua pergunta. A interrogação parecia bem maior que a frase.

 

Lembrei a minha avó. Ela sempre repetia isso. Como um alerta. Não tem pergunta que a formulação seja maior que a interrogação, menina, que seja maior que a interrogação.  

 

Em determinados momentos a interrogação se destacava. Em outros a frase sobressaia. Mas olhando atentamente. Não havia uma frase com uma interrogação no final. Na realidade havia uma interrogação arrematando uma frase. Pode parecer igual. Mas não é.

 

Como se faz para des-impregnar a retina.

 

Esta a pergunta. Esta a interrogação.

 

Passa-se a vida toda impregnando. De imagens. De cores. De situações. Todo um novo conceito apreendido. E fixado na retina.

 

Começa-se por imagens. E por imagens se termina. Mais ou menos assim.  

 

Em meio a elas permeiam as letras. As cores. Os brilhos. As nuances. Os adereços. Mas as imagens sempre lá. Tudo o mais gira em volta delas. Das imagens. Nomes. Endereços. Até números de registro. Estilos. Sons.

 

Inclusive o da voz.  Quantas vezes se repetem. Posso até ver. Quando fala assim - sei bem o jeito. Até quem não pode ver. Vê pelo tato. E compõe a imagem. Sabe quem é pela imagem táctil. Mãos e retina se fundindo num só arquivo.

 

A imagem autoriza. Desautoriza. Repete. Há uma genética envolvida. Uma exacerbação. Um desafio. Não se lembra de mim. E a resposta sempre vem rápida. Sim. Mas você mudou tanto.

 

Há todo um referencial pela imagem. Ela vai acompanhando, na retina - as mudanças. Ou a retina vai gravando as mudanças – na imagem. Como um jogo de slides. Mas personificado. Para cada um – seu estojinho de slide.

 

Para cada um – a retina individual faz seu álbum.

 

Como se faz para des-impregnar a retina.

 

Se a imagem desapareceu. Como ensinar a retina a não mais procurar. Como se apaga um entalhe cinzelado. Como se treina ao contrário uma retina.

 

A pergunta ficou. E ficará.  Por um tempo. Como a busca da imagem.

 

Mas introjetará algum dia. Por certo. Assim se espera. Neste dia a frase apagará o neon. O poder se fará compreensão. E a interrogação se fará um ponto. Final.

 

Com mais tranqüilidade a retina aceitará. A resposta.

 

A impregnação é para sempre. Mas não para o cotidiano.

 

 


Julho 08 2009

Acordou no horário habitual. Com a reclamação habitual.

Já. Nem vi o tempo passar. Nem vi o sono passar. Nem deu tempo de sonhar.

 

Isso é um absurdo. Um contra-senso.

 

Os sonhos já devem estar fazendo fila para poder sair. Vai ter sonho atropelado. Empurrado. Ou, quem sabe, caidinho fora da fila. Até os sonhos - sempre tem algum deles mais esperto. Outro mais lento. E vai vencer o mais sábio. Ou o mais amadurecido. O amadurecido observa mais tranqüilo. E sempre chega na hora acertada. Sonho jovem sempre é impetuoso.

 

Deve ser assim a formação do pesadelo. É apenas uma falta. De logística. De hierarquia. De ordem na saída. De respeito na fila. Enfim. Assim se constróem os pesadelos. Da falta de liberação organizada.

 

Mas assim fazia. Todos os dias. As mesmas queixas. Desta vez uma pequena diferença.

 

Resolveu dizer isso a ele. Talvez para dar vazão aos sonhos impossibilitados de sucederem. Resolveu formalizar verbalmente a queixa. E naquela hora. Tão cedo.

 

E formalizou. Ou melhor, tentou formalizar. Se assustou. Nada saiu da garganta. Ficou a princípio preocupada. Seria por conta do amontoado de sonhos. Alguma sufocação por excesso. Sonhos reunidos impedindo a realidade. Dava até para ser slogan.

 

Repetiu. Nada de novo. Simplesmente assim. A voz não saia. Não saia.

 

Tocou nos lábios. Precisava ter certeza de que se moviam. Sim. Moviam com segurança. Mas a voz não saia.

 

Ele dormia feliz e ausente de toda aquela mais nova alteração.

 

Acordara sem voz. Vai lá saber exatamente por que.

 

Lembrou. O dia tinha sido terrível.

 

Se somasse as horas de fala sem parar dariam quase sete horas. Explicara métodos. Avisara riscos. Complementara orientações. Recomendara prudência. Lembrou até de uma orientação filosófica. Disse a ela. Melhor relatar apenas o que fez e o que viu. Se externar opinião já virou pessoal. Lembre-se disso. Não esquecia o olhar dela. No início tão feroz. Olhar de salto alto. Depois tão temeroso. Olhar já de chinelinho. Enfim.

 

E ainda teve aquele telefonema. Tarde. Bem tarde. Ficou tensa. Com ela. Sabia dos perigos. Das causas e até dos efeitos. E se confirmasse. Como poderia ajudá-la. As dores da alma se somando às dores do corpo. Dela. Delas.

 

Lidou com idiossincrasias. Verossimilhanças. Teve de tudo. Só podia dar nisso.

 

Chegou de volta no final do dia. Cumpriu todo um ritual. Já estava até se acostumando. Era algo que detestava. Viver de véspera. Mas como o dia começava muito cedo não tinha opção. Ou o dia começaria mais cedo ainda. Fez o que tinha que ser feito. Organizou o dia seguinte.

 

Foi assim que adormeceu. Depois de um dia intenso. E um ritual cumprido.

 

Quase um cochilo. Foi nisso que pensou quando acordou. E recompôs toda a

véspera.

 

Riu. Na véspera reclamava. De viver de véspera. Agora reclamava. De viver do dia anterior.

 

Não deve ter sido à toa. Que acordara sem voz. Tentou novamente falar com ele. Desistiu. A voz não saia. Assunto encerrado.

 

Saiu ela - então. De corpo inteiro. Ou quase inteiro. Pensou. Se a voz emudece – o corpo cala. Mas não tinha certeza disso. Nem do contrário. Concluiu. Sem voz e sem sonho – a vida fica mais complicada. Riu. 

 

Seguiu os tais trilhos. Sem bondade e sem voz. Sem sonho. Mas com sono.

 

Enfim algo tinha. Não estava esvaziada de tudo. Tinha sono. Muito sono.

 

Com o passar do dia a voz deu algumas notas de presença. Tímida. Mas audível. O sono se foi.

 

Na volta para casa riu. Eis um dia diferente. Não dá para reclamar pelo menos de uma coisa. Monotonia. Isso jamais.

 

Torceu por muitos sonhos. Nesta noite.

 

 


Julho 07 2009

 

Decisões são da ordem da auto imposição. Assim fez. Nem bem tomou a decisão e já pôs mãos à obra.

 

Termo bem adequado. Parecia uma obra. Uma construção.

 

Já acordou pensando. Vou arrumar os livros. Nem sabia explicar por que a decisão. Detestava arrumação. E por um motivo simples. Bem simples. Detestava ver a desarrumação que uma arrumação provocava.

 

Alguém havia lhe dito. O por que desta reação. Lembrava, certamente, a desarrumação interna. Como um espelho. Por isso se angustiava.

 

Na época até ficou atenta. Agora decidiu deixar a interpretação de fora. Ao menos naquele momento. Mal dava conta da idéia. Imagina da etiologia da idéia.

 

Riu e prosseguiu na decisão. Cedeu a este primeiro pensamento do despertar. Se tinha um motivo – descobriria.

 

Começou pela estante da frente. Alguma ordem tinha que ter. Para enfrentar a desordem. Escolheu a ordem decorativa, digamos assim.

 

Auxiliada por um paninho, álcool e óleo para couro – lá se foi. Se sentiu uma restauradora daquele famoso Museu. Não faltou nem a máscara descartável. Afinal. Nem só de restauração vivem os alergistas. E vale mais uma vez o contrário. Em parte.

 

Uma idéia realmente de mosteiro. Estilo auto flagelação.

 

Parecia ter tido um começo. Em algum momento começou. Mas confirmava nunca ter fim. Em algum momento assim pensou. Sim. A cada livro retirado para ser adequadamente catalogado – uma nova fileira tinha que ser remanejada.

 

E quando remanejava e dava por encerrado - descobria um volume perdido. Que pertencia justamente – à prateleira que já tinha encerrado. Foram muitas idas e vindas. Sobe e desce. Desvira e vira.

 

Já mais calma resolveu – vai lá saber também por que - abrir os livros.

 

Viu que todos – ou quase todos - tinham datas. E local onde os comprara.

 

Alguns até com dia e hora. E a estação do ano. Até riu. Nem lembrava mais - assim fazia.

 

E assim fez por muito tempo. A cada livro comprado registrava. Os dados do dia da compra. Até o boletim meteorológico. Riu de verdade. Mas não deixou de achar muito boa a idéia. Congratulou a si mesma. Em um deles viu que tinha escrito. Primavera sem flores e com muita chuva. Viu o ano. Será que fora mesmo. Ou seria ela que estava se sentindo assim. Deveria ter anotado melhor. Em um outro estava lá. Dia de sol, final da tarde - a livraria estava vazia. Novamente não sabia se era a sensação dela com ela mesma.

 

De repente caiu um papel. De dentro de um outro volume desgarrado. Amareladinho. O papel. Meio amassadinho. Ou melhor, enrugadinho. O tempo não poupa nem os papeis, pensou.

 

Lembrou daquele poeta. Ele falava isso num poema. De um papel amarelado encontrado num livro. Mas que rasgara sem abrir e ler. Não queria mexer com o passado. Mais ou menos assim, pelo que recordava da poesia.

 

Fez diferente. Abriu. E leu.

 

Era um bilhetinho dela. Avisando que tinha adorado a temporada que tinha passado lá. Que fora muito bem acolhida. E que a adorava muito. Que se sentiu fazendo parte real da família. E que estava com saudades.

 

Quase chorou. Incrível. Ela agora estava casada com ele. E fazia realmente parte da família. E escreveu esse bilhetinho ainda tão criança.

 

Foi em meio a tudo isso que teve uma luz. E que luz. Tirou até a tal máscara. Melhor espirrar que sufocar. Quando a luz vem é preciso se estar exposta. Ficou até de pé.

 

Estantes. Uma real autobiografia. Ou uma prova autobiográfica. Os próprios livros. Estes que se compram e guardam em alguma prateleira. Os lidos e até os não lidos.  Porque são resultado de uma escolha. Denunciam a evolução. A formação do pensamento. De época em época. O crescimento emocional. Não importa o estilo. Importa esta composição.

 

Pelas datas relembrou lugares. Pessoas. Estados de espírito. Movimentos. Ideologias. Filosofias. Entendeu as que ficaram. Compreendeu as que se foram. Assimilou as que se construíram. Avaliou as que sucumbiram.

 

Olhou para os livros como para si mesma. Passou a mão de leve pelas capas. Leu com carinho seus registros. Foi assim organizando - com súbita tranquilidade - toda a estante.

 

Entendeu o próprio pensamento.

 

Ali. Sentada. Diante da tal estante da frente. E de frente para a estante. Ali viu sua vida. Suas buscas. Seus achados e perdidos. E deu um riso particular. Para esta sua idéia ao despertar. Do despertar.

 

Procedia.

 

 


Julho 06 2009

Fiquei olhando para ele. Sentado próximo a mim. Quase em minha frente. Quase. Falando. Por horas.

 

Vi quando chegou. Foi pontual. Na hora agendada – estava lá. Era o que parecia. Estar lá. Deveria conviver com aquele grupo há muito tempo.

 

Havia uma certa desenvoltura no caminhar entre eles. E todos o conheciam. Mas poucos se dirigiam a ele. Ou poucos ofereciam um espaço a ele. Ele cumprimentava efusivo. Exagerado - até poderia se dizer. Recebia de volta um riso social. Formal e polido. Mais ou menos assim.

 

Não sentou. Circulava entre o ambiente. Os passos fortes e rápidos. Mais fortes e rápidos que a situação solicitava. Carregando, sobre os sapatos, o verniz escuro da ansiedade.

 

A postura lembrava a de uma emergência. Como se tivesse vivendo um prazo a expirar. Passava de um canto a outro. Da porta à janela. Da janela à porta. Seu corpo parecia saído de uma dança flamenca. Esguio – mas exausto.

 

Esta a idéia que sugeria. Girava sobre si mesmo. Olhava para os lados. Para cima. Para baixo. Dava uma idéia de agitação. Muito mais interna que externa. A externa apenas coreografava a interna.

 

O olhar seguia o ritmo dos passos. Da dança. Cansado. Mas curioso. Olhar ávido. Ávido por retorno. Ávido por espaço. Ávido – talvez muito mais - por espelho. Mas era um olhar ambíguo. Como os passos. A busca parecia já vir com a certeza. Parecia conformado. Como se soubesse desde sempre o acolhimento que teria.

 

Comecei a entender. Atuava para si mesmo.

 

Ainda tinha o riso. Vez ou outra escapulia. Um riso alto. Frenético. Mas parecia ter o fim determinado. Como se o riso não tivesse destinatário. Era apenas uma obrigação do remetente – para o remetente. Os lábios continham o riso com a mesma força e rapidez dos passos.

 

Por fim escolheu uma mesa. Fazia dos objetos - íntimos companheiros. Acariciava a caneta. Dobrava e desdobrava o guardanapo. Percorria os dedos pelo copo de cima a baixo. Passava de leve os dedos pela toalha sobre a mesa. Assim - também - se amparava. Muito mais que nos passos - alegóricos em sua rapidez. Ou no olhar - míope de si mesmo. Menos ainda no riso aleatório.

 

E tão rápido quanto a escolha - começou a falar. Começou a expor.

 

Sentou-se diante deles. Ofereceu-se como um totem. Desfilou tabus.

 

Lembrei o mestre austríaco. Teria se encantado. Ou se desiludido de uma vez. Vai lá saber. São muitas as nuances da interpretação. Cabem – sempre - todos os tipos e gêneros.

 

Falava a idéia e contrapunha – sozinho - a idéia adversária. Fez um diálogo monologado. Ou um monólogo dialogado. Diante de todos. Discutiu. Concordou. Discordou. Recitou. Foi enfático em alguns momentos. Depois eufêmico por poucos instantes. Em seguida alheio. E repetia – quase matematicamente - esta sequência.

 

Sugeriu grifes. Citou filósofos. Redesenhou telas. Criticou conceitos. Exortou preconceitos. Ofereceu banquetes. Em nome da audiência. Fez da retórica uma dialética. E vice-versa. Desafiou paradoxos. A dança parecia não mais ter fim.

 

Alguém tentou um aparte. Ia discordar. Começou a fala com a palavra não.

 

Incauto. Ou inocente. Não se desafia um totem. Corre-se o risco imediato de ser imolado.

 

E assim foi. Não acabou de registrar a primeira nota e a regência se fez violenta. Alterou o tom de voz. A salada quase saiu do espaço que a continha. Uma taça balançou. O guardanapo encolheu.  

 

A vítima se recolheu. Se acautelou.

 

Notei que a mulher que o acompanhava apertou-lhe o braço. Num sinal de alerta. Sempre atentas. As mulheres. Não deve ser à toa que a preservação da espécie gira em volta delas.

 

Olhei para ele mais uma vez. Desta vez de forma bem mais disfarçada. Temi por outra imolação.

 

Diante da fala. Dos gestos. Dos objetos acariciados. Da luz do sol que vinha da janela. Diante de tanta citação. De tanta teoria. Não me lembro. Jamais. De ter visto alguém mais triste e solitário.

 

E o imitei. Concordei comigo mesma. Igual a ele. E desta forma me fiz mais próxima. Mesmo silenciosa. Tentei diminuir a solidão dele. Ao menos diante de mim para mim. Novamente igual a ele.

 

Conclui. Melhor mudar de mesa. Levantei e ri. Desta vez de forma bem menos disfarçada.

 

Ele me olhou - não devolveu o riso. O almoço acabou. Sai pensando. Se a solidão tem culpa. Ou desculpa.

 

 


Julho 05 2009

 

Querido:

        Não esqueça  de escovar os dentes deles.
  Falar para a médica sobre a vacinação, a carteirinha está na sacola
  Fale sobre as manchinhas atrás das orelhas deles

  Fale sobre a alimentação

  Pergunte se ela vai passar alguma vitamina

  Fale do dedo que a Marina não tira da boca e já está até machucado – (o que fazer?)

  Pergunte se já está na hora de sair das fraldas (o que podemos fazer?)

  Leva os exames – já coloquei na sacolinha, não achei o comprovante para pegar os outros. Acho que você levou para a Empresa e não trouxe. Leva as carteirinhas que dá para pegar.

  Lave o cabelo do Paulinho.

  O cabelo da Marina é só prender. Fala pra minha mãe fazer dois rabinhos que ela sabe.

  Dá um banho bem dado nos dois, tá?

  Ah! Traz o papelzinho que marca a altura e o peso deles para eu marcar depois na carteirinha...

  É isso. Estou indo sem querer, mas fazer o que... logo estou aí

  Um beijo

 

 

Gêmeos. Foi um susto a noticia. Eles mal tinham saído do juramento na saúde e na doença e lá estavam. Na alegria e na certeza. Sim. Eram dois. E um casal.

 

Entenderam a Vida. A arte da Vida. E a razão de viver. Entenderam tudo isso ao mesmo tempo.

 

A consulta era de rotina. Estava atrasada a fisiologia. Mas devia ser o cansaço. Viajaram logo depois da cerimônia. Na volta foram cuidar de organizar a casa nova. E isso incluía documentos e volta à rotina do trabalho. Nem se preocupou. Tinha engordado um pouco. Devia ter sido pela ansiedade. Da festa. Da viagem. De toda a mudança de vida. Da volta ao trabalho. Dos horários mudados. Estava explicado.

 

Quando a certeza é garantida - é sempre bom duvidar. A experiência é a arte de carregar – com segurança - muitas dúvidas. Assim foi a sabedoria do médico. Achou segurança demais.  Examinou. Solicitou um complemento. Era rápido. Eles, tranqüilos. Conversando e rindo.  

 

Veio o resultado. Foi cuidadoso. Perguntou se já tinham a vida arrumada.

Escutou que sim. Se estavam empregados. Escutou que sim. Se pensavam em ter filhos. Escutou um sim – mais tarde. Entendi.

 

O que vocês acham de sete meses. Acham muito tarde. Muito cedo.

 

Os que riam – silenciaram. O que silenciou – riu. Gêmeos.

 

Saíram do médico e voltaram para casa. Já da porta - no abrir da porta - a casa já não era a mesma que tinham deixado. De repente parecia tão pequena.

 

Horas antes sobrava espaço.

 

Foram a caminho do hospital combinando a decoração. Pensaram em comprar mais uma poltroninha. Quem sabe incorporar um dos quartos à sala. Seria o local da música. Mais um sofá. No terracinho – uma churrasqueira. Teriam tempo. Com calma a casa ficaria como queriam.

 

Na volta já era outra casa. Não a que eles fecharam a porta. E deram as costas. Agora abriam a porta. Olhavam de frente. Tão pequena. Não cabia mais nada. Nem poltroninha. Nem churrasqueira. Naquele minúsculo terraço. Nada mais de som. Muito menos de quarto incorporado.

 

Incorporada estava ela. Duplamente incorporada.  

 

De repente se deu conta. Nem soube dizer por que. Mas entendeu.O mundo das listas.

 

Havia este mundo paralelo. A lista do chá de cozinha. Depois a lista do casamento. Passando por uma lista de convidados. Até a empresa de turismo cooperara - uma lista de hotéis. Teve a do chá de bebê. Bebês. Duas listas. Com direito a cor. A lista das compras. Então assim era o mundo. Só não sabia como não tinha percebido. Que listas não finalizam. Nunca.

 

Agora estava ele ali. Mais uma vez – diante de uma lista.

 

Seguiu – rigorosamente. Com toda a atenção que uma lista merece.

 

Estava com os “listados” no colo. Lindos. Os rabinhos dela maravilhosos. Cheirosos após um banho bem dado. Dentinhos limpíssimos. Feliz. Felizes.

 

Na saída pegou o papelzinho com o peso e a altura para colocar - na lista de acompanhamento deles.

 

Riu. Se sentiu integrado ao mundo.

 

 


Julho 03 2009

Assim as cenas se fizeram. E se desfizeram.No meio da tarde. De um dia calmo. Quente. Rotineiramente útil. Formalmente inútil. Subserviente.

 

Assim pensaram.

 

Por um momento a escuta.

 

Ela aparentava ter dez anos de idade. Os demais entre seis a nove anos. Deveriam ser ao todo nove. Ela foi avisando. Vai ter que calar. Obedecer. Não tem ninguém aqui para lhe defender.

 

Ele parecia ter menos de oito anos de idade. A frase não foi pior do que o olhar dele. Solitário. Assustado. Mas capturador. Dividiam uma certa quantia. Saldo de pára-brisas e flanelas.

 

Quando o nível emocional sobe – o racional vem em auxílio. Só o contrário é que nunca acontece. Esta é uma das poucas certezas que se acumula com o tempo. Racional em excesso produz excesso de racional.

 

Parecia uma pessoa - dois olhares. O mesmo olhar assustado se transformou. Rápido. Olhou sério. Frio. Para o outro que estava ao lado. E foi completando. Se cuida você também. Quando ela sair - eu que vou comandar. E a voz era rouca. Muito rouca.

 

E assim os olhares continuavam. Trocando de assustado em assustador. Como um efeito progressivo. Ou uma contaminação progressiva.

 

No momento seguinte a correria.

 

A chuva veio súbita. Forte. Impetuosa. Sumiram os olhares. Os comandos. A voz rouca. As idades se dispersaram.

 

O temporal veio como um deus feroz. Arrancou proteção individual. Mostrou o avesso do esperado. Não havia cobertura eficaz.  Nem coletiva. Nem social. As águas tomaram conta das calçadas. Das ruas. Das casas. Até dos elevadores. Invadiu onde pode. Alcançou onde não se acreditava. As luzes apagaram. A sinalização se foi.

 

No inicio não havia movimentos.  Além da chuva. Do vento.  Parecia mágica. Pontos de venda de emergência surgiram. Muitos. E muitos tentando comprar uma garantia. Bolsas e carteiras expondo com rapidez a possibilidade da solução. Como o teatro do Absurdo.

 

Logo depois a dança.

 

Objetos voando. As mãos. Muitas mãos. Como um ballet de mãos para o alto. Mais para o alto. Uns erguiam os braços. Outros mais afoitos pulavam. Tentavam trazer de volta o que virava para o lado errado. Ou que partia para um destino ignorado.

 

Uma dança quase filosófica – não fosse a explícita realidade dos fatos.

 

A chuva - impedia a visão direcionada.

O vento – impunha as desordens com frivolidade.

Os raios - pichavam impunemente o céu.

As mãos - dançavam soltas sem regência.

Os objetos - voavam experimentando a liberdade de expressão.  

As sirenes - cumpriam a sua função de cuidado.

As luzes vermelhas - tentavam cortar caminhos sem solução. 

As portas - fechavam com rapidez.

 

O espaço sumiu. Desapareceu por um tempo. Submergiu. Não havia mais limites. Nem degraus. Aqui eu piso. Ali você passa. Era tudo uma falta só. Não sei onde piso. Você não sabe onde passa.

 

Os corpos se fizeram marcados. Pela água. Pela roupa deslocada. Sem pudor. Sem escolha.

 

Por fim um retorno ao primitivo.

 

Sob uma marquise muitos em busca do abrigo. Empurrando. Disputando. Trocando olhares frios.

 

Já que ali não tinha quem defendesse. Só restava impor. Foi o que pareceu.

 

Cada um ao seu modo. Salvaguardando o que mais interessava. Naquele momento a própria segurança.

 

Mais profundamente – a própria existência. Igual à partilha. Foi o que pareceu.

 

 


Julho 01 2009

Lembrou daquele texto. Ele falava mais ou menos assim - a pena parou.

 

Como se no meio do texto a pena tivesse parado. Ali. Estancada. Sem nada a dizer. Muito menos a declarar. Fez-se paralisia. Congelou. Atos. Não sentimentos.

 

Os sentimentos estavam tão abalados que não se davam conta. Não podiam continuar. Atropelavam-se. E ao mesmo tempo paralisavam. Sensação estranha.

 

Parecia que os fragmentos do tempo se afastavam. Deixando pedacinhos soltos. Como mosaicos abandonados – decompondo sua forma. O que era para ser continuação – virou passado. E como passado foi reportado.

 

Tudo numa mesma declarada inversão. Onde tinha que ter não tinha. Onde tinha que estar – já não mais existia.

 

De repente tudo ficara sem cor. Sem lastro. O alcance tinha sido maior que pudera imaginar.

 

A notícia viera junto com uma lágrima. Ficou ali escutando. Dizem os entendidos - em situações limites - falta chão. Parece uma metáfora sem importância. Ou uma analogia. Ou apenas uma comparação banalizada. Mas se é verdadeira não se sabe. Porque ali parecia o contrário. Sobrava chão. Muito chão. E não se sabia que lugar pisar. O que faltava era ar.

 

Se sentiu sufocada. Presa em algum ponto do discurso dela. Ficou assim. Suspensa na palavra. Presa na angústia. Paralisada na dor.

 

E ela em frente. Contando. Contendo. Relatando. Expondo a sua dor. A sua falta. O seu desamparo. Mostrando no corpo o resto inútil que lhe ficara.

 

Lembrou o Francês. Se uma perda é muito grande – a perda seguinte é das palavras. Procede. Teve abraço. Teve choro. Mas não teve palavra. Pelo menos a palavra certa. Deve existir uma só que seja. Que se diga. E que acalme. Proteja. Explique. Console.

 

Mas isso já é pedir demais a uma palavra. Ela vem em auxílio - em auxílio. Nunca em função. Parece que a palavra não tem função. Tem regra. Tem sinônimo. Tem antônimo. Tem até acento. Mas não tem função. Descobriu isso na hora. Na hora de verbalizar. Por que verbalizou silêncio.

 

Fez um esforço enorme. Para mover os lábios. Começou pelas letras. Tentou formar a palavra. Construir uma frase. Assim, desta forma. Como quem engatinha. Pensando em andar. E perdida naquele excesso de chão.

 

Não conseguiu falar. Ou melhor, conseguiu falar. Não conseguiu dizer.

 

Dizer da enormidade da dor compartilhada. Da compreensão da dor individualizada. Da certeza de uma dor materializada. Que até – de tão forte - podia ser tocada. E que não faltava chão. Sobrava espaço. Tinha agora ali, diante delas - um lugar vazio.

 

Foi tudo isso que quis dizer. Letra por letra. Mas só disse silêncio.

 

E paralisou diante da dor. Da ausência.

 

Quando ela saiu não sabia o que fazer. Com o dia. E fez o que tentou fazer com a palavra. Fez minuto a minuto. Depois as meias horas. Para depois completar o ciclo das horas. Seguiu então o compasso das horas inteiras. Fez o dia - apenas - cronológico.

 

E levou consigo os dias que não virão. Junto com este dia encerrado.

 

Haverá sempre um chão sobrando. Uma presença faltando. Haverá a ligação. Pelo elo faltante.

 

Uma ligação pela ausência. Fazendo assim bascular a impossível presença. Mas ainda assim - presença. Ou ainda assim – ausência.

 

Quando uma ordem é invertida – toda uma nova equação tem que ser estabelecida. E todo um tempo novo precisa ser – existencialmente - acreditado.

 

Ficou - em meio a este passar de dia cronológico - pensando nas idéias do filósofo alemão. Ele garantia que só a dor é positiva. Devia saber o que falava. 

 


Blog de Crônicas - situações do cotidiano vistas pelo olhar crítico, mas relatadas com toda a emoção que o cotidiano - disfarçadamente - injeta em cada um de nós.
Para os mais curiosos:
pesquisar
 
Comentaram o que leram!! Obrigada!!!
Casaste?
Estou bem obrigado
Olá Leda, tudo bem?
Olá LedaVocê está bem?Um Beijo de Portugal
Olá!!!Não consegui encontrar o teu blog no blogspo...
Parabéns pelo seu post, está realmente incrivel. V...
mau e excelente!!!!
Ótimo ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||...
Gostei.
COMO PARTICIPAR NAS EDIÇÕES DO EPISÓDIO CULTURAL?O...
Julho 2014
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5

6
7
8
9
10
11
12

13
14
15
16
17
18
19

20
23
24
25
26

27
28
29
30
31


subscrever feeds
blogs SAPO