Blog de Lêda Rezende

Outubro 17 2009

 

O almoço fora programado com antecedência.

 

Os convites distribuídos em tempo dito hábil.  As agendas adequando-se a uma quebra da rotina.

 

Assim foi durante a semana. A comemoração antecipada visava uma homenagem. Aos que lá trabalham. Cumprindo suas funções. Minimizando dores. Provocando risos. Acalmando angústias. Acolhendo aflições.

 

Sejam quais forem as incertezas. Partindo de onde partirem. Há toda uma metodologia para diminuir ou impedir sofrimentos.

 

Um almoço comemorativo. Assim ficou acertado. Em tal dia. Em tal hora.

 

O salão foi aberto pontualmente. Como deve ser. Uma disciplina é sempre requerida. Seja no festejo. Seja no cotidiano. Não importa. Disciplina também é uma das formas de expor respeito. E dispor hierarquia. Enfim. Na hora exata - abriram o salão.

 

As mesas estavam lindas. Toalhas vermelhas sobre forro branco davam um brilho de alegria. As taças avisavam cores e sabores. Os mais próximos se agrupavam em volta de lugares escolhidos. O riso e o murmurinho lembravam que nem só de pão.

 

A camerata se postava em frente. E ao suave e doce som dos acordes – foi iniciado o ato festivo. E daqui e de lá se escutavam cumprimentos e confraternizações.

 

Convidado – ele subiu para o pronunciamento.

 

Lembrei dos milhares de discursos que já escutei. Das inúmeras falsas analogias e eufemismos que sempre os discursos carregam. E das muitas e muitas delongas que tanto desconfortam.

 

Mas não desta vez.

 

Assim começou. Com citação em Latim. Primo non nocere. Primeiro não prejudicar. Primeiro não ferir. A frase atribuída ao primeiro de todos – foi repetida diante de todos nós. Seguidores no juramento e no trabalho.

 

Foi um belo discurso. Adequado ao fato. Identificado com o ato. Qual um recordatório. Mas sem demandas.

 

Fiquei pensando na frase de abertura.

 

Nos que ali estavam. Ocupando e agilizando o próprio Lugar. E nos que já se foram. Mas que de vazio deixaram apenas o espaço. A memória preenche muitas falas. Como disse o poeta. Ressuscitar começa pela palavra – do outro. E ao escutar os nomes dos que se foram – senti uma presença não da matéria. Essa já não importa. Mas do contexto. Do trabalho exercido. Sem a nítida separação de dia e noite. De casa e trabalho. De segunda ou feriado.

 

Convocados em seus nomes – deixavam a força do seu profissionalismo exposto. Perfeito.   

 

Enfim. Passeei pelos caminhos das escolhas. Olhei para ela que estava ao meu lado. Vi que – emocionada com a escuta- disfarçava uma lágrima afoita.

 

As expressões mudavam. Cada um convivendo com o próprio registro.  Com a vocação descoberta sabe-se lá como. Por isso mesmo - misteriosa. Não há resposta satisfatória para quando alguém requer uma explicação objetiva. Um porque.

 

Não se sabe exatamente a época. Não se entende perfeitamente os motivos. Vai muito além do pragmático. E de repente a decisão surge. E uma elaboração prossegue. E todo um novo equilíbrio se faz necessário. Desde a primeira aula. Desde o primeiro aviso. Desde o primeiro morto que ensina.

 

E uma vez diante de quem pede alívio – nunca mais se desprende do ato em si.  

 

Lembrei de um comentário que ele me fez. Há muitos anos. Num daqueles dias de final exaustivo de trabalho que se ameaça um – para mim chega. Ri. Ele me viu organizando um jantar. Um simples jantar.

 

Olhou para mim. E muito sério falou. Ou, melhor, fez uma observação. Com tom de voz calma. Uma vez pertencente a esta categoria – jamais se libera. Você está arrumando um jantar. Mas não apenas organizando pratos e talheres. Você está organizando como quem cuida. É isso que faz de você – a sua escolha.

 

Lembro que fiquei em silêncio. Uma espécie de siga a seta. Mas me senti acalmada. E feliz.

 

Primeiro não ferir. Primeiro não prejudicar. Seja no que for. Seja da forma que for. Mas é preciso estar em estado de - para entender. Para introjetar. E acatar. Há todo um sentimento não esclarecido. Mas nem por isso menos estabelecido.

 

Aplaudi a fala do colega que discursou – com batimentos felizes de aurículas e ventrículos. E sinceras sístoles e diástoles.

 

Voltei na hora certa para cuidar da agenda. Subi rindo as escadas. Foi uma bela comemoração.

 

 


Outubro 16 2009

 

É passional. Muito passional.

 

Sempre agiu assim. Já o conheci assim. Com o vermelho da emoção sobrecarregada – colorindo o rosto de linhas bem marcadas. Belo. Contrastando com o grisalho dos cabelos e o esverdeado do olhar. Um colorido explícito. Denunciava a alma – sem texto. Incrível. Foi a primeira palavra que me veio à mente.

 

Algumas vezes até o senso de justiça ficava um pouco de lado. Mas era atento. A injustiça lhe feria até a alma. Tentava sempre uma parceria. O passional com o racional. Nem sempre conseguia. Mas nunca desistia. E com o passar dos anos – foi ficando cada vez mais atento.

 

Tem um dom. Especial – como todo dom. Tem uma sensibilidade ímpar. Enxerga além do previsto. Ou até do malvisto. Mas só se expõe quando quer. Quando não – comporta-se como um trabalhador braçal. Enche-se de tarefas e silêncios. E age como se nada importasse. Assim se ampara. Assim se enfrenta.

 

Divide um estilo entre a timidez e a ousadia. Não sem alguma dificuldade na dosagem certa. A balança pode pender para um lado mais afoito. Ou menos objetivo. E – muitas vezes – o resultado foi negativo. Errou talvez mais do que acertou. Ou o contrário. Nunca se sabe mensurar com a certeza. Venceu grandes batalhas. Perdeu boas oportunidades. O tempo é autoritário.

 

Descobriu também depois. Mas aprendeu a conviver com o que não pode ser resgatado.

 

Este é mais um dos seus traços. Acata. Não se rebela se a luta é desleal. Lutar contra o Tempo – já se entra perdendo. Lutar contra as perdas – impede as novas conquistas. Nisso é um sábio. Nada de ficar correndo atrás de prejuízos. A vida caminha para frente.

 

Expõe a alegria pessoal com recato. Impõe solidão nos momentos de grande tristeza. Sobreviveu a dores e amores. Aos possíveis erros de avaliação. Às possíveis punições da credulidade da juventude. Agora – bem mais cuidadoso – se preserva. Melhor um pouco de charme bem dosado do que o coração aberto por inteiro.

 

Não perdeu um mínimo que fosse da característica sedutora. Ou da sensualidade. Sedução e sensualidade. Para ele – forças vitais.

 

Tem um olhar curioso sobre o Universo de uma forma geral. E um olhar disfarçado sobre as belas particularidades do mundo. Divide o que sente – com quem sabe escutar. Cala-se diante do desatento. Ou do seletivo. Não quer ser apenas instrutor. Quer mais. Quer talvez ser provocador. Provocar projetos. Provocar futuros.  

 

Tem ternura na alma. O desconforto do outro lhe causa dor. Enfim. É suave e forte. Como um poeta. Como um músico. Muito mais lhe importa a sonoridade das palavras. O brilho das cores. Ou o simbólico dos detalhes.

 

Aprendeu que nem tudo que é belo é real. E nem tudo que é triste é sofrimento.

 

E assim vai seguindo o caminho. Perseguindo os objetivos. Contornando as imperícias. Regozijando-se com as conquistas.

 

Foi o que pensei ao vê-lo hoje. Decidido. Já foi logo avisando. Desde cedo.

 

Não importa o Tempo. Muito menos a temperatura. Não importa se aquece. Não importa se esfria. Vou relaxar diante das águas. Vou ficar diante do vento. Vou buscar o equilíbrio. É só o que permite que se fique numa vertical. Assim. Entre o vento e a água. Vou dominar com os braços. Vou firmar com os pés.  Vou vencer sem contradizer. Vou entender a favor – estando contra. Ou vice-versa. Tanto faz. Vou aprender a ser. Muito mais do que a estar.

 

No começo pode-se cair. Músculos e pensamentos nem sempre andam de mãos dadas. Podem até se desentender. Mas assim é em qualquer aprendizado. Para cada código há uma leitura específica.

 

Por um segundo ainda olhou para trás. Ainda pensou em voltar. Mas este também não era o estilo dele. Uma vez diante de uma criação – seguia. Confirmava.

 

Quando uma ideia chegava de súbito – respeitava.

 

E esta viera assim. De repente. Num amanhecer cansado. Ou por um dormir angustiado. Vai lá saber. Mas viera. Isso o que importa. Iria sim. Buscaria os meios. Transformaria ideias em atitudes. Este outro dos seus traços.

 

E de traço em traço – como que deliberadamente – vai se compondo. Refinando a sinfonia interior. Tentando desenhar seu próprio destino. Cuidadoso. Como se utilizasse um pincel com um único pelinho. Pintando com delicadeza e sutileza. Mas com firmeza - e vontade própria - no risco.

Sempre fiel e leal – consigo mesmo. Com o vermelho no rosto. Ocasionalmente.

 

Inegável e proporcional. Além do sentimento afetuoso - o admiro tanto quanto o invejo.

 


Outubro 11 2009

 

Encerrou a fala desta forma. Com este comentário.

 

A frase ficou em destaque. Por alguns minutos. Ou horas. Vai lá saber. A palavra sempre dispõe do tempo ao seu bel prazer. Enfim.

 

É uma pena.

 

Assim disse. E nem parecia muito concentrada. Parecia em estado de ausência. Estava assim ultimamente. Como se numa nova parceria – mais efetiva. Ou quem sabe conquistada - entre ela mesma e o mundo.

 

Devia ter lá seus motivos.

 

Motivos. Esta uma palavra multi-dimensionável. Especialmente para ela. Adequa-se bem. Cabe em qualquer espaço. Justifica possíveis transtornos. Pressupõe adiáveis desconfortos. E já disponibiliza desculpas.

 

Era afável. Divertida. Solidária. Desde que a conheci. E lá se vão tantos e tantos anos. Mas tinha motivos para tudo. Do emocional ao físico. Fosse o que fosse - tinha motivos.

 

Acompanhava sempre um - de sobra. Este - de sobra - parecia mais fundamental até do que os tais motivos. Era pronunciado com mais ênfase. Como se precisasse se servir de uma acústica. Ou a acústica estaria a serviço dos excessos. Algo por ai.

 

Passava – com tranqüilidade - uma sensação. A de que motivos e sobras são de ordem impessoal. Quase relativizada. Não precisa ser determinada. Muito menos qualificada.

 

Motivos e sobras são questões tanto estéticas quanto funcionais. E sugerem um lugar mais universal do que pessoal. Nunca a escutei se referir aos tais motivos de sobra - dentro de si. Sempre eles estavam - de fora.

 

As sobras pareciam vir como paradoxais contribuições externas.

 

Mas também não era o momento para digressões teóricas. Até dera vontade de rir. O que mais sobrava eram digressões e teorias. As faltas estavam circulando por outra esfera. Não importava se mais ao alcance ou se muito além do alcance. Apenas circulando - como toda falta.

 

Mas assim falava. Assim se expressava. Relatava a situação. O motivo da ligação. Parecia um não mais acabar de queixa. Nada era tratado de forma pontual. Muito menos sugerindo uma continuidade. Sim. Parecia mais um possível excesso de ponto e vírgula.

 

Foi nesse momento que entendi a força dos motivos de sobra. Como cravados dentro de um vazio. Os motivos. E as sobras.

 

Lembrei a minha avó. Se sobra motivo é porque falta razão, menina, se sobra motivo é porque falta razão.

 

E ali fiquei. Entre a palavra e a expressão. Tentando ultrapassar a linha que cruza o ato e a fala.

 

Dizia o mestre francês que primeiro vem a palavra. Depois o ato. Tão difícil simplificar.

 

De repente me veio uma curiosidade. Talvez por que escutei um barulho reconhecido. Perguntei assim. Sem mais nem por que. Onde estava.

 

Respondeu tranqüila. Suave. Sentada naquela praia que você gosta. Sob um quiosque. Olhando o mar. O final de tarde está lindo. O inverno aqui está uma beleza. Sol, céu e mar. Nada de frio.

Por isso lhe liguei daqui. Faz bem reclamar do interno diante de um externo tão belo.

 

Tenho motivos de sobra para falar daqui. Sem me preocupar quem escuta. Ou quem interrompe. Ela sempre volta na hora exata. Parece que adivinha que preciso falar. E já chega cheia de perguntas e demandas. Lembra até aquela sua amiga. A que nunca podia conversar ao telefone. Porque os filhos a interrompiam. Você deve se lembrar disso. Sempre comentávamos. Agora pareço com ela.

 

Ela já vai entrando e avisando. Pare o que está fazendo. Desliga o telefone. Preciso lhe falar. Como se fosse uma emergência. Você sabe. Ela sempre age assim. E sem motivo algum.

 

Ri. Muito. Achei perfeito. Pensei isso enquanto fechava a porta da varanda. Para que a chuva e o frio não se transformassem em meus hóspedes.

 

Ela continuou. Depois de um fôlego só - avisou. Agora me vou. Acabou o pôr-do-sol. Está escurecendo. Vou voltar. Amanhã vai ser um dia complicado no trabalho. Se eu enlouquecer acredite – não teve jeito. Terei motivos de sobra.

 

Tem feito dias tão lindos. Se você estivesse aqui iria adorar. Mas está ai no frio. É uma pena. E rindo – se despediu.

 

E rindo – me despedi.

 

O frio aumentara. Peguei um casaco. Entrei em Estado de Força Educadora. Sim. Comportada. Recatada. Até repressora. Sem desconsiderar o valor da Força Amistosa.

 

A palavra pena não teve seu contraponto. Nem uma resposta mais diferenciada. Em linguagem talvez não tão ortodoxa – digamos assim.

 

E – pensando bem – sem motivos ou sobras.

 


Outubro 01 2009

 

Decidiu. Será este final de semana.

 

Ganhara de presente. Os cinco se juntaram e deram a ela. Vai passar o dia lá. Sendo cuidada e mimada. É só escolher a data. Adorou.

 

Telefonou, agendou. Comemorou feliz. A decisão própria combinava com a vaga oferecida. Em acordo. Fuso horário acertado. Era só deixar acontecer. Não teria participação efetiva. Eles lá saberiam a sequência a ser cumprida. Enfim. Riu.

 

Acordou e já foi logo preparando a alma. O espírito. Ou o humor, para ser mais ampla. Do corpo eles lá dariam conta. Ao menos este era o combinado. Através do corpo - liberar a emoção.

 

Quase uma filosofia.

 

Um dia inteiro a fazer nada. E a aguardar as ordens.

 

O lugar era especial. Massagens de todos os tipos. Esfoliação. Relaxamento. Imersão em ofurô. Pétalas de rosas vermelhas. Margaridinhas. Chazinhos. Toalhas aquecidas. Uma delicadeza. Música transcendental. Perfeito.

 

Um aroma suave percorria desde a salinha de espera até os ambientes fechados. Qual um labirinto misterioso. Como devem mesmo ser os caminhos que liberam a emoção. Por um aroma, vai se chegando diante de portas - fechadas. Abertas – revelam o dinamismo a seguir. Interessante.

 

Foi esta a primeira palavra que pensou. Talvez desde o momento que acordou. Até se surpreendeu. Parecia mesmo há algum tempo sem pensar. Interessante de novo.

 

E de porta fechada a porta aberta - foi se descontraindo. Feixe muscular por feixe muscular. Ela até avisou. É muito tensa. Mas estou desfazendo os nós.

 

Desconsiderou.

 

Estava ali para ficar desconcentrada. E ia cumprir a proposta. A tal filosofia que a entrada sugeria.

 

Foi nesse vai e vem que notou a luz vermelha do celular. Mensagem à vista. Resolveu verificar. Que chamado, externo, a re-localizava no planeta.

 

Ele se desculpava. Queria ter falado ontem. Mas os afazeres práticos e nada agradáveis o tinham impedido.

 

Resolveu se divertir. A desconcentração permitia. Avisou. Desculpas mis. Plebe rude. Estou sendo esfoliada e me dirijo no momento para um ofurô. O mundo pode esperar. O ofurô não. Nem eu. Risos.

 

Assim. Objetiva. Divertida. Leve. Mas séria. Sem som. Só com as letras. E enviou a mensagem.

 

A massagem prosseguia. Novamente a luz vermelha. Mais uma vez decidiu ler o que de lá vinha. Afinal – o mundo não a esquecera lá dentro. Nem ela esquecera o mundo lá fora. Riu. A linha podia até ser tênue – mas existia. E se e quando existe - sempre pode ser pulada.

 

Já começou a se sentir incorporada ao Lugar. Estava se transformando numa verdadeira filósofa de esfoliações e ofurôs. Se parabenizou.

 

Mas desta vez foi impossível. Não conseguiu manter a seriedade absortiva. Expressar ausência de si mesma. Fingir que estava apenas ali. E que o mundo tinha acabado.

 

Ele respondeu. Desculpa a nobreza. Mas estou aqui também. Esfolado. Com um furuncô.

 

Riu. Alto. Assim. De repente.

 

As pétalas de rosa na água quase voaram. A mocinha que esfoliava tomou um susto. Perguntou por cócegas. Com a resposta negativa – iniciou alternativas. Se queria mais luz. Menos luz. Não sabia bem como lidar. Com o riso. Vai ver fosse um pranto e saberia o que fazer.

 

Isso é comum. Rir é incomum. Seja onde for. E muito mais numa esfoliação. Vai ver até culpou o Marquês. Mas enfim. Riu alto. Seguidas vezes.

 

A mocinha continuou o que fazia. Porém com mais cautela. Dava para sentir isso pela fala. Pelo gestual. E pela súbita pressa. Até temeu uma expulsão. Onde já se viu. Rir num lugar de silêncio. De faixa zen com alfa. Ai sim. Deu até mais vontade de rir. Mas se controlou. Ou tentou.

 

Avisou a ele. Você está desconcentrando a minha desconcentração.

 

Nova resposta. Novo riso.

 

Desistiu. Não ela. A mocinha. Encaminhou para outra sala. Mais uma porta fechada se abriu. Um divã estava lá em meio à meia luz. Orientou alguns momentos - sozinha. Escutando a música e sentindo o aroma. Colocara um aroma relaxante.

 

Ficou lá inspirando o tal aroma. E rindo. Quando acabou o dia – estava calma. Muito calma.

 

Vai lá saber. Qual das massagens foi benéfica. A de fora. Ou a de dentro.

 

Ele foi buscá-la. Desceu com ele de mãos dadas. Contou o que aconteceu. Riram juntos.

 

A chuva fina que caía lembrava que o mundo tem múltiplos e surpreendentes encantos.

 

 


Setembro 29 2009

 

Sim. Adorava a Lua cheia.

 

Estivesse onde estivesse – parava. Olhava para a Lua. Como se a visse pela primeira vez. Como – talvez - teria olhado a primeira pessoa. Com o olhar curioso. E a expressão surpresa. Diante da beleza de uma Lua cheia.

 

Brilhante. Como um farol - na noite universal.

 

Sempre pensava nas distâncias. Nas pessoas que estariam olhando. Em que outros lugares. Comentando com outros idiomas. Com outros sotaques.

 

Que contornos estariam sendo destacados. De flores em um jardim. De barcos em algum mar distante. De alguma casa simples num lugar deserto. Em algum pinheiral envolto em neve. Ou um simples terraço de um prédio. Urbano. Como estava ela ali. A Lua com qualidades altruístas. Dava-se. Expunha-se. Só isso.  

 

A cada Lua cheia - se sentia presenteada. Pela natureza. Pelo Universo. Até pela Vida em si. Não importava. Funcionava sempre como um momento de paz. Total. Absoluta.

 

E foi assim.

 

Estava descendo a escada. Viu que os degraus estavam claros. Uma luz vinha de cima. Olhou para cima. Despretensiosa. Até desatenta. Olhou como se olha. Sem preocupação de enxergar. Virou a cabeça.

 

Ficou surpresa. Fez até aquela voz que as crianças fazem. Um sustinho de alegria. Viu a Lua. Redonda. Linda. Pura luz. Atravessando o vidro do teto da escada. Subiu de volta. Já atenta e cheia de pretensão. Foi para o terraço aberto.

 

Deitou em uma cadeira. Ficou ali. Imóvel. Olhando. Como se diante de um espetáculo. Como se diante de um aviso. Silêncio. Onde qualquer movimento poderia prejudicar o efeito. Mais ou menos assim.

 

Lembrou de tantos lugares onde já tinha parado - para olhar a Lua. As lembranças vieram felizes.

 

Lembrou da primeira vez que foi lá. A cidade eterna. Subiu numa colina. Encostou-se na estátua da mulher heroína e ficou lá. A Lua cheia contornava a figura de pedra. A altivez da escultura parecia se submeter. A todo aquele brilho. Pensou. Nunca quero esquecer este momento.

 

Ordem dada. Ordem obedecida. Nunca esqueceu.

 

E já se iam tantos anos. Na época ainda era muito mais crédula do que observadora. Hoje era o contrário. Era muito mais observadora do que crédula.

 

Mais ainda olhava a Lua com olhos de infância. Quando tudo é simples e possível. Onde a beleza é apenas beleza. Sem questões de estética. Sem filosofias sobre a existência.

 

Lembrou também de quando estava lá ainda. Na cidade de onde viera. Lembrou do risquinho delicado da luz da lua no mar. De longe – lá do horizonte - até a espuminha da água na praia. Até a areia ficava mais clara. Branquinha. E quando criança saia em noites assim para catar as conchinhas. Conchas da noite são mais belas que as conchas do dia. Assim explicava. Vai lá saber por que.

 

E foi um tal de lembrar de Lua – e de luar -  que não acabava mais.

 

Lembrou até dos índios e a sua conta de nascimento. Quantas luas.

 

Lembrou dos contos assustadores. Sempre partindo das ideias dos adultos. Como se temessem. A luz de cima em meio à noite. Como se esta luz permitisse – expor o que não podia ou não devia.

 

A luz da Lua contornando também as maldades. Nunca havia pensado nisso. Só ali. Naquele instante.

 

O céu estava claro. Muito claro. Muitas estrelinhas. Desconsideravam a tal urbanidade. Não competiam com a luz dos prédios.

 

Um ou outro avião cruzava entre elas. Ficou imaginando se as pessoas dentro olhavam e sorriam emocionadas. Diante de tão perto da Lua.

 

Riu quando lembrou a amiga de além mar.

 

Uma noite ela falou via a comunicação habitual. Por letras e barulhinhos no teclado. Estou daqui olhando a Lua. Vai lá você também. Olha para ela. E assim – é como se estivéssemos nos olhando. Riu.

 

Há sempre um modo de se diminuir distâncias. E minimizar saudades.

 

Olhou mais uma vez para o céu. Sentiu o luar em volta dela. Brincou de sombras com o brilho por sobre as pedras do terraço.

 

Levantou. Encostou-se na muradinha com o gradil de ferro. Era esta uma noite de inverno. Sentiu um friozinho na pele. Quase um arrepio.

 

Antes de entrar jogou – com um sorriso - um beijo para a Lua.

 

Também não iria mais esquecer esta noite de luar no terraço. Ordem dada.

 

 


Setembro 28 2009

 

Não esquecia um determinado comentário dela.

 

Escreveu dizendo. Achava muito bonito. Fazer uma festa apenas os seis. Tem quem discorde. Quem ache que festa tem que ter muito mais pessoas. Mais distantes. Ou mais sociais. Afins e sem fins. Elogiou isso. Fazer festa familiar. E ser tão divertido. Sempre.

 

Participara uma vez. De uma destas festas. Era o aniversário dela. Veio junto com a outra amiga para prestigiá-la. E se transformaram em oito. Foi muito bom. Não faltaram motivos para risos. A celebração se estendera pelo dia e entrara pela noite. Uma festa. Este o termo correto. E achara maravilhosa.

 

Códigos e referências sem explicações necessárias. Risos e dados rascunhados – passado a limpo. Sem aborrecimentos. Sem contratempos. Sem críticas maldosas. Sem mágoas.

 

Sim. Ela estava certa. Sempre era muito bom.

 

Nesta noite não foi diferente.

 

O convite partiu dele. O inverno chegou. Vamos celebrar antes que acabe. Com esta informação do aquecimento global nunca se sabe. Todos riram. Convite aceito.

 

A mesa estava em ordem. Tudo feito dentro do solicitado. Cada um poderia se servir diante da sua preferência. O frio circulava com tranqüilidade. Lá fora uma chuva leve dava um toque bucólico.

 

Ela riu. Sempre se divertiu com este termo.

 

A modernidade permitiu que fosse tudo feito à mesa. Com todos em volta. Como um banquete antigo diante das genialidades modernas. Não se precisou do ir e vir. Tudo ficou disposto e exposto. Aquecido. Aquecendo.

 

Não se fugiu à rotina. Como assim - acabou. Então substitui. Faz assim mesmo. Vai ficar bom. Ela não gosta de alho. Ela não come bem passada. Ela só quer mal passada.

 

Este queijo, não. Acha até bonito. Mas não gosta. Este sim. Sim. Deixa que sirvo. Ponha mais para cá. Agora ficou longe dela. Quase derramou. Não, não sujei nada.

 

Quem levantar vai ter que pegar também mais isso. A família denuncia de onde veio. Sim. Até ele. Veio do lado oposto. E já está igual. Ninguém quer levantar. Deixa - eu vou. Então ótimo.

 

O cheiro do queijo derretido se misturava aos cheiros dos molhos da carne e aos pães selecionados. O vinho circulava de mão em mão. Os lugares escolhidos indicavam as preferências de cada um.

 

Elas estavam lindas. Como sempre. Participativas. Integradas - muito mais do que integrantes.

 

Eles se compartilhavam e partilhavam da história de cada um - entrelaçada com a do outro.

 

A música escolhida fora nenhuma. A voz de cada um parecia fazer o coro perfeito. A batuta era erguida ao som de talheres e facas. Tudo em total harmonia com os estalinhos do óleo nos quadradinhos de carne.

 

O cheiro doce do chocolate veio fazer o contraponto. Deliciou. Acolheu. Fez o grand finale. Em alto estilo.

 

Foi ai que lembrou a observação dela. Da reunião a seis. Sem precisar de suportes para ter graça.

 

Olhando para eles – se sentiu orgulhosamente feliz. Muito feliz. E muito orgulhosa. De si mesma. Tivesse uma medalha por perto e já teria se atracado a ela. Assim estava se sentindo.

 

Orgulho. Eis mais um sentimento com múltiplas leituras. Não permite solidão. Ou isolamento. A vaidade até pode ser ato parcialmente isolado. Pode ser dividido apenas com o espelho. O orgulho, não. Em especial este tipo de orgulho. Sempre vem do outro. Ou pelo outro. Como um presente doado. Perseguido de forma direta, mas conquistado de forma indireta. Não vem de si para si.

 

Foi o que aprendeu naquele momento. Observando-os.

 

Sentindo a mistura de cheiros. Diante do riso festivo de cada um. Da intimidade positiva em volta de uma mesa. Onde o simbólico se fazia quase táctil de tão factual.

 

Compreendeu perfeitamente. A importância de códigos bem estabelecidos. Seja qual for a relação. Para que possam ser corretamente lidos. E espontaneamente respeitados.

 

Até lembrou a velha frase. In vino veritas. Podia ser. Mas era verdadeira a visão. A sensação. Não era fruto de uma embriaguês. Era fruto de uma realidade.

 

Eles eram adequados ao tempo e às funções. Felizes. Afetuosos. Éticos e bem sucedidos. Com a idéia coerente de ambiente. De presente.

 

Era uma noite fria de um sábado de inverno.

 

E o anunciado aquecimento global se fazia verdadeiro e instalado. Estava todo ali - na sala. Em volta da mesa.

 

Riu tranquilamente aquecida.

 

 


Setembro 26 2009

 

Fiquei pensando de que ângulo se vê melhor.

 

Ângulo é sempre da ordem da intenção. Muito mais que da extensão.

O dia tinha sido especial desde o começo.

 

Começou com um susto. Vi a luz do dia clara. Invasiva. Definindo o espaço. Sem constrangimentos. Ou meias sombras. Assim. Explicita. E eu com os olhos esbugalhados. Boca aberta. Raciocínio arrancado às pressas. Do onírico ao real em tempo recorde.

 

Esqueci de ligar o despertador.

 

Como farei agora. Assim. Perguntava a mim mesma. Aflita. E não conseguia me responder. Só fiquei ali. Apavorada – diria. Agenda lotada. E essa agora. Perdi a hora.

 

Quase perdi mesmo foi o equilíbrio. Mental. Mas tão rápido quanto - quase – perdi, recuperei.

 

Era um sábado. Um sábado. O tal sonhado sábado chegara – e eu duvidava.

 

Vai lá saber por que. Confundi os dias. Ou fiquei presa na véspera. Prisioneira do despertar anterior. Nem conseguia festejá-lo. Fiquei ali catatônica. Assustada. Querendo descer escada abaixo. E diante de um dia de folga. Da tão sonhada folga. Cinco dias a esperar este dia chegar. E este desatino. Incrível.

 

Ainda bem que as pernas foram mais sábias. Vai ver entendem melhor de calendário do que se imagina. Ou não se aceitam submissas com facilidade. Ou – melhor ainda - não saem por ai a correr desatinadas. Aceitando qualquer ordem. Primeiro aguardam. Para depois agir.

 

Algum dia - escreverei sobre isso. A apologia das pernas decididas. Mas enfim. De onde estavam – não saíram. Não se moveram. Continuaram na cama. Bem esticadinhas. Aguardando a consciência tomar um rumo adequado.

 

Deixei passar o susto. E iniciei a rotina da folga.

 

Não sem uma decisão. Já que eu desautorizei o sábado – melhor deixar que ele me autorize. E deixei o dia se organizar. Por conta própria. Lembrei do poetinha. Ele sim. Entendia de sábado como ninguém. Saravá.

 

Foi uma surpresa atrás da outra.

 

Então é assim. Nem sempre sabemos. Ou impomos. As horas podem também fazer isso por nós. Este sim. Um susto agradável

 

O lugar ele escolheu. Uma surpresa. Desceu e avisou. Convidou. Vamos até lá. Um lugar ao ar livre. Um espaço aberto. Vamos sim.

 

Lindo. Nunca antes havia estado ali. A água doce e calma. A luz mais calma ainda - se espalhava pelo espelho d´água. Era um dia de delicado sol de inverno.  A mata em volta esbanjava contraste.  Garças brincavam nas bordas. Desimpedidas de compromissos. Ágeis em sua proposta.  Bicando felizes - o almoço interminável.  

 

As mesas ficavam dispostas próximas da borda.

 

Veleiros cruzavam solenes. Motores ocasionais passavam e cortavam a água. Com barulho. Placas convidavam a passeios. Uma revoada de pássaros proprietários expunha a autoridade. Uma pontezinha de madeira avançava água adentro. Oferecia e gemia a cada passada. Mas avançava com confiança.

 

Mais uma surpresa apontava saudades. A música. Falava da tarde naquela praia. Tão longe. Mas que- de repente - pareceu tão perto. Não resisti. Entrei no pequeno restaurante e aplaudi o cantor. Sorridente – agradeceu.

 

Ficamos horas caminhando diante da água doce. Impregnados do cheiro doce da água. Invadindo a pontezinha gemente. 

 

Sentamos. Observadores cuidadosos do tempo - a seguir seu ritmo.

 

Ali. Com nossas pernas – mais uma vez – esticadinhas. Só que desta vez – ao menos as minhas - confortáveis. Em acordo com o pensar.

 

A tarde foi caindo. As garças caminhando lentas para fora da água. As luzes se acendendo. Um ventinho mais frio marcava a estação. E avisava da hora.

 

Quando saímos – olhei para trás.

 

Foi aí que fiquei pensando no tal ângulo. Em todos os possíveis ângulos. Para se conviver com os dias. Com as noites. Com os erros. Com os acertos. Com os sustos. Como se fosse sempre assim. Donos disfarçados do próprio destino.

 

Comentei com ele. Adorei. Sequenciei - obrigada. Cada vez que me perguntar onde quero ir – direi aqui. Ele riu.

 

A urbanidade também tem seus misteriosos ângulos. E as suas – doces – surpresas.

 

Pensei. A Vida sabe privilegiar os dias. Sorri. Feliz.

 

 


Setembro 24 2009

 

Olhou os óculos em cima da mesinha.

 

Não pegou. Por um instante ficou a observá-los. Assim. Sem mais nem por que. Ia tirá-los do lugar - quando parou. E ficou a tentar entender. Os óculos. As lentes. A correção da visão. Lentes corretivas – como tecnicamente nomeavam.

 

Veio um pensamento.

 

Será que enxergariam algo. Será que viam o mundo diferente do que ela via. Será que precisavam dela – como ela parecia precisar deles.

 

Aquelas lentes acrescentavam. Elucidavam. Transformavam borrões em linhas. E ficavam ali. Ou estavam ali. Em cima de uma mesinha. Fingindo abandono. Talvez pior - sugerindo abandono.

 

Olhou de novo. Agora com ar de desconfiança.

 

Que veriam - além dela. Ou aquém dela. Ou apesar dela. Ou pior ainda – o que escondiam dela. Sim. Ficaram o dia todo ali – de algo deveriam estar em acordo ou desacordo. Mas nada assim – ingenuamente.

 

Notou que uma haste estava um pouco mais torta do que a outra. Não tocava muito bem na superfície plana. Ficava um pouco no ar. A outra mais centrada – atingia a mesa e repousava. Ou parecia. Vai ver a que estava no ar estava mais descansada. Vai lá saber onde é o ponto de relaxamento. De cada forma de visão. Ou de cada haste de visão.

 

Ficou com uma dúvida. De que lado estava a visão.

 

De dentro das lentes. Ou de fora das lentes. Como seria ver a lente ao contrário. Poderia expor a visão delas. Ou ocultar a própria. Será que veria a si mesma de outra forma. De fora para dentro. Já que com os óculos tentava enxergar melhor – mas de dentro para fora.

 

Era uma questão a pensar com mais delicadeza. Concluiu.

 

Se antes enxergava bem – agora precisava deles. Eles deram uma nova idéia do antigo mundo. Num momento em que - corrigindo a seu bel prazer – acrescentava o novo contorno. Apagava o enevoado. Podia até ser um feito perigoso - diga-se de passagem.

 

Lembrou da avó de uma amiga. Sempre avisara. Nem sempre é indicado dedicar muito tempo para a nitidez, menina, nem sempre é indicado dedicar muito tempo para a nitidez.

 

Se os anos passavam - e modificava a forma de vê-lo – deveria ter uma razão. Uma razão muito mais existencial do que confusional. Esta foi a primeira palavra que a fez rir. Confusional.

 

Mas as lentes não pareciam dar importância.

 

Deveriam estar ali contornando outra situação. Não deveria ser por acaso que uma haste se erguia. E a outra se apoiava.

 

Aproximou a mão. Pensou. Vou colocar bem de leve no meu rosto. E ao contrário. Posso me compreender a partir daí. Ou me acalmar – me desentendendo de uma vez por todas. E logo eu. Que fico de análise em análise. Tentando quebrar sentidos. Quebrar textos. Quebrar palavras. Talvez a solução esteja nos inteiros. Nos sentidos concretos.

 

E ali está. O sentido ocultado e exposto em par.

 

Com toda a coragem – pegou os óculos. Mas não podia negar. Pegou com carinho. Com gentileza. Não queria perturbar assim de súbito o que eles viam. Ou queria surpreendê-los despreparados. E assim poder ver o que eles viam.

 

Quase riu – não fosse a seriedade da situação.

 

Ajudam a enganar as sombras – por certo. A redefinir os contornos. Mas não como antes. Antes da necessidade deles.

 

Óculos são perfeitos para criar a realidade. Acessória. Quando não mais acreditamos nela. Ou já não confiamos tanto. Ou mais ainda. Quando precisamos de um suporte - para voltar a confiar. Talvez até mais em nós do que na tal realidade. Algo por aí.

 

Foi aos poucos colocando em seu rosto.

 

Primeiro do lado comum. Depois do lado incomum. Tentou ver ao contrário. E no correto. Colocou. Tirou. Olhou para as lentes. Até tocou nelas com os dedos. Reagiram. Ficaram turvas. Compreendeu.

 

Decidiu deixá-los onde estavam por mais um tempo - com as hastes desiguais sobre a mesinha. Por mais um tempo – talvez. 

 

O telefone tocou. Era ele. Vai lá saber por que. Colocou os óculos. Sem delicadezas. Sem pedir licença. Sem teorias. Colocou e pronto.

 

E conversou – nitidamente feliz – com ele ao telefone.

 

 


Setembro 22 2009

 

Estava sozinha.

 

Era já final do dia. Trabalhara dentro do agendado. Atendera todas as demandas que pode. Orientou. Escutou. Reclamou. Compreendeu. Recusou. Aceitou. Defendeu. Proibiu. Acatou. Permitiu. Assim fora o dia. Igual a todos os dias da sua rotina.

 

O frio ainda estava confiante em seu próprio poder. E se mantinha cativo em salas e alas. Ou autoritário. Dava no mesmo. Afinal ele que estabelecia ordens e limites. Ele – o frio.  

 

Quando encerrou as tarefas - voltou para casa.

 

Mal tinha chegado. Ainda estava a decidir a outra rotina - escutou o telefone.

 

Até pensou. Acho que não vou atender. Vou deixar para depois. Agora tenho que seguir uma ordenação. Se não eu que fico aqui desordenada e desarvorada.

Definitivamente - não vou atender.

 

Foi decidindo isso e pegando o telefone. Até atendeu rindo. Eis uma decisão acirrada.

 

Era ela. Atitude rara. Em geral nunca telefonava. Pelo menos para ela. Se servia de mil desculpas. Mas vai lá saber por que – telefonou.

 

No primeiro instante pensou no pior. E isso não era habitual. Este era o oposto dela. Só esperava o melhor. Sempre. Podia atender ao telefone na madrugada – mas sempre acreditando que viria do outro lado uma boa noticia. Já atendia desculpando fuso horário. Como se recebesse apenas ligações do exterior. Ele até ria dela. E ela ria dele.

 

Ele sempre se assustava com o toque do telefone.  Quando a noticia era ruim – ela sempre tinha uma expressão de decepção.

 

Mas lá foi escutar o que ela queria falar.

 

Ela avisou. Precisava lhe falar. Impossível deixar para outro momento.

 

Fiquei lembrando muito de você hoje. Começou durante o almoço. De repente me surpreendi. Só pensava no tempo que você morava ainda aqui.

 

Lembrei das idas a restaurantes. Das risadas que demos juntas. Tantas e tantas vezes. Das suas gracinhas. Do seu jeito de minimizar problemas. E não mais parou.

 

Lembrou daquela vez. Depois - da outra vez. Depois - daquele dia. Da idéia da viagem. Da coragem – mesmo não sabendo onde se amparava. Das lojas onde comprava. Das mudanças. Das diferenças nas escolhas. Nas trocas.

 

Ela continuou falando. Parecia que para si própria. Por que discorria com tranqüilidade. Não cobrava o retorno. Nem sequer o – estou escutando. Só falava.

 

O interlocutor auditivo ocupava um Lugar não bem determinado. Era um daqueles velhos monólogos. Onde a platéia só suspira.

 

A cada registro que ela desenhava – tentava localizar. Não no espaço. Não no tempo. Era uma localização muito mais forte. Era muito mais interna do que externa. Como se preenchesse páginas vazias – ou esvaziadas – a cada frase. Ou como se tentasse preencher.

 

Com a mudança houve lacunas.

 

As citações dos acontecimentos não paravam. Falou sobre atos e fatos.

 

Lembrou de alguns com facilidade. De outros com dificuldade. De alguns riu. De outros fez silêncio. Partes vieram espontâneas na lembrança. Outras sumiram para sempre do registro da memória. Não houve jeito. Ela até insistia. Lembrava até a meteorologia do dia. Mas alguns se foram mesmo.

 

A avó querida de uma amiga tinha uma frase para isso. O que fica no passado é porque este é o Lugar certo de ficar, menina, o que fica no passado é porque este é o Lugar certo de ficar.

 

Pensando assim – se tranquilizou. E poupou esforços ao já tão esforçado cérebro.

 

Despediram-se rindo.

 

Quando ela desligou – ficou calada. Por algum tempo ficou ali sentada. Olhando para o não-sei-onde. Em silêncio.

 

Concluiu. Ou, melhor ainda, questionou.

 

Quantas mãos escrevem a história de cada um. Quantas memórias se unem para compor uma biografia. De quanto do passado é realmente manufaturado o presente. Em qual espelho se credita a história. Qual o princípio da saudade. Ou do esquecimento.

 

A memória.

 

Eis um Lugar onde o egóico – até finge - mas não se sustenta. Eis um Lugar onde a solidão não se inscreve como certeza.

 

Para falar de si próprio é preciso – verdadeiramente – escutar o que o outro fala. Só entendendo-se alheio de si mesmo – pode –se atingir o dentro de si mesmo.

 

Foi cuidar da ordenação da rotina. Não iria ficar ali – como antecipara - desordenada e desarvorada.

 

Riu quando se surpreendeu – quase – jogando um beijo em direção ao telefone.

 


Setembro 17 2009

 

Não era possível. Justo naquele dia.

 

Inacreditável. Tantos dias para acontecer e tinha que ser justo naquele dia.

 

Mas decidira. Ia fingir que não estava acontecendo. Embora estivesse estampado na face. Estava sim, acontecendo. Ou melhor, estava instalada. Instaurada. Creditada. Debitada. E ela – irritada. Com este contra tempo e contra senso. Mas enfim. Não tinha como modificar. Ao menos não tão rapidamente como desejava.

 

Lembrou que era uma reação anual. Não sabia se agradecia pela anuidade ou se rebelava. Por ter que comemorar. O tal mais um ano.  Mas não deixava de pensar - justo naquele dia.

 

Mas era verdade. Todos os anos. Desde que viera morar na cidade escolhida.

 

Todos os anos na mesma época. Só esquecera de conferir a data e a hora. Deveria ser assim. Cronometrado. No dia tal. Em tal data. E na tal hora. Como prazo de validade de latinha de conserva. Expira dia tal. Expirar.

 

Palavra que a deixou ainda mais rebelde. Inspirar e expirar.

 

Ato simples. Automático. Nem se percebe. Menos naquele dia não sabia o que era mais difícil. Expirar ou inspirar. E ainda havia o espirrar para compor a tríade.

 

Sim. Estava acometida da gripe sazonal. Podia até ser um termo elegante. Mas a gripe nada tinha de elegante.

 

E para completar – a voz.

 

Qual voz – poderiam perguntar os mais invasivos. Nada de voz. Sumira. Até o pensamento era mais audível do que a fala. Abria a boca. Fazia aquele enorme esforço para respirar. Para tentar com que uma só cordazinha vocal funcionasse. Uma que fosse. Mesmo que saísse estranho. Nada. Nem uma só. Um eterno murmúrio. Serviria para nome de filme. Mas a realidade era uma só - estava angustiante.

 

Mesmo assim foi cumprir o combinado.

 

Avisou. Pelo recadinho escrito. Estou já na escadaria. E ainda acrescentou – por escrito – risos.

 

Pareciam amigos antigos. Um reconhecimento. Já se apresentaram rindo.

 

Ele   jovem, alegre. Centrado. Polido. Atencioso. E vale destacar - com voz.
Sim. Um verdadeiro e completo comunicador.

 

Não vai se dizer que ela não se esforçou. Seria uma injustiça. Se o justo era que fosse naquele dia – o injusto seria negar que não se esforçara.

 

Esforçou-se. Falou. Desculpou-se. São surpresas das mudanças bruscas de temperatura. Ele concordou.

 

Ela descobriu que respirar pode ser acessório de luxo. Pode ser dispensado algumas vezes. E por alguns segundos se deu ao imposto e irrevogável luxo de escutar e falar sem um só gole de oxigênio. Parecia já uma maratona.

 

Contou até a própria história.  A história do encontro. Da parceria. Do filme que assistiram ainda sem se conhecer. E como casaram.

 

Depois - escutou. Ele tinha muitos relatos fortes. Curiosos. Interessantes. Familiares. Informativos. Até relato médico. Discorreram sobre joelhos e jogos.

 

Tivesse ela um pouco só mais de voz e explicaria que aquele deveria ser o dia da letra jota.

 

Justo. Joelho. Jogos. Justiça.  Até o nome do filme era com jota.

 

Mas achou desnecessário. Gastaria muitas letras por causa de uma. Pulou esta parte. Não sem antes ficar preocupada com a baixa oxigenação cerebral - dela. Já devia estar causando seus efeitos. Haja visto a celebração que ia propor para uma letra. Ainda bem que sobrou um pouco de bom senso. Ou de oxigênio.  Para manter o silêncio.

 

Ele chegou e saíram todos juntos para jantar.

 

Ela pensou rapidamente – mas bem rapidamente - sobre mais estas letras jota. Mas a esta altura já não falava mesmo. Ele - sempre gentil – fez as vezes dela. E o jantar transcorreu com alegria e confiança. Onde cada um revelou o que achou necessário. Com um off e com um on – para que nada se perdesse ou se ganhasse de desnecessário.

 

O riso correu solto. O que começara na casualidade de um texto lido – se estendeu na concretização de uma amizade incondicional.

 

Estava feita a celebração. Com voz. Sem voz. Com oxigênio. Sem oxigênio. Até com jotas. Riram quando se encontraram. Riram quando se despediram.

 

No caminho de volta para casa, abraçada a ele – entre febre, espirros e mais alguns jotas - lembrou da avó daquela amiga. Ela repetia muito.

 

A força de uma amizade se mede pela alegria do encontro, menina, a força de uma amizade se mede pela alegria do encontro.

 

Procedia. Procede.

 

 


Setembro 15 2009

 

Acordou atrasada. Não dava mais tempo para a maioria do planejado.

 

Nem entendeu o que tinha acontecido. Afinal, se tinha uma atitude que ficava sempre de fora era esta - atraso. Não faltava quem não fizesse gracinhas com sua questão de horário. Vivia adiantada.

 

Mas enfim. Se não dá – não dá mais. Concluiu e foi tratar de organizar as rotinas opcionais. Ainda deitada decidiu que iria pôr em ordem o que estava pendente. Certo. Ficava assim formalizado o dia. Com a nova agenda pronta na memória – levantou.

 

Abriu a porta do quarto. Que ficara fechada toda a noite. Quase riu. De susto. De surpresa.

 

De vez em quando assim reagia diante do inesperado. Ria. Mas desta vez riu só a metade. Um meio sorriso – digamos assim.

 

Dormira num país tropical. Acordara num dos Polos. Não importava qual. Mas num deles. Podia ser o do amigo dos presentes. Ou dos bichinhos a rigor. O frio deveria ser igual – ao que sentia naquele momento.

 

Até olhou para trás. Conferiu. Sim. Era o quarto dela. O apartamento dela.

 

Pelo vidro da porta do terraço teve mais uma certeza. Sim. Era a cidade dela. Evitou se beliscar para garantir estar acordada. Não era necessário. Tudo conferia. Só a temperatura estava discordante.

 

Agora entendera o motivo do atraso. O corpo se atrapalhou. Vai ver com o frio súbito entendeu como também uma mudança de fuso horário. Sempre achou o corpo meio que esquecido. Agora já estava achando o corpo intelectual demais. Ou voluntarioso. Estava a tomar decisões - sozinho.

 

Encerrada esta primeira etapa – prosseguiu com o que o atraso e o corpo decidiram por ela. Com algum descrédito – tentou não ser exagerada. Entre um tira-coloca-tira casacos - optou por um estilo meio-termo.

 

Esquecera que nesta vida isso é um erro grave. Ao menos ela assim registrava. Nunca o meio termo se adequa a seja lá o que for. Antes os extremos que os meios termos. E sempre pensara assim.

 

Criticava severamente quem fumasse cigarro light. Ou bebesse refrigerante diet. Ou ingerisse bebidas alcoólicas com excesso de gelo. Bege sempre fora a cor que lhe provocava dúvidas. Até do caráter do portador. Achava que ou era para ser só culpa - ou para ser só prazer. Ou só cor - ou só negro. Mais ou menos assim. Quem passasse a vida em tons pastéis não entendia de vida. Nem de razão de vida. Se estava certa ou errada não importava. Importava a apologia dos extremos.

 

E agora essa. Justo ela – num amanhecer como aquele - escolhera um meio termo. Enfim, tentou acreditar no acerto mais do que no erro. Nada de precipitações. Já estava até gostando de ter se atrasado. Persistiu no meio termo de roupa e de idéias.

 

Foi para o Banco. Fazia tempo que não a encontrava. A Gerente. Foram muito amigas numa época. Logo que veio morar na cidade. Depois com os horários da rotina cada vez mais estreitos – os encontros se fizeram cada vez menos frequentes. Falavam ocasionalmente pelo telefone. Foi um re-encontro agradável. Riram do passado. Dos comportamentos do passado.

 

E tudo ficou parecendo ainda mais passado. Até fez um gracejo. É sempre assim. Quando se fala muito do ontem – o ontem fica muito mais distante ainda. Riram. O que tinha que ser resolvido – foi resolvido.

 

Foi quando teve que descer na Avenida. Desceu tranqüila.

 

De repente olhou. Assim. Quase à toa. Para o termômetro do poste. Que fica no centro da Avenida. Nas chamadas ilhas. Olhou para a ilha. Leu o número registrado no termômetro. E quase deu um pulo. Só não deu porque as pernas estavam já congelando.

 

O termômetro sempre marcava a mais. Lógico. Com a quantidade de carros e ônibus passando – alterava a leitura sempre para mais. Para mais. Então ainda era menos do que o registro informava. Estava escrito. Em números claros. Assim. Branco no preto. Nada bege. Oito graus. Oito graus.

 

Podia-se até dizer que tudo estava sob controle até aquele momento. Oito graus. O corpo leu. Entendeu. E exagerou. Começou a tremer. Abraçou-se ao lencinho do pescoço e ao casaco como se os transformassem em irmãos. Xifópagos. Grudou-se neles.

 

Numa trêmula virada de cabeça – viu-se diante de uma lojinha. Vendiam cachecol de lã e luvas de lã. Não teve dúvida. Juntou o virar trêmulo da cabeça, os dedos trêmulos e apontou com a voz trêmula o que precisava. A mocinha trouxe os pedidos.

 

Agora sou uma prima dos agasalhos. Digamos assim. Não mais irmã xifópaga. Comentou isso.

 

A mocinha nada disse. Mas fez um olhar estranho para ela enquanto recebia o pagamento. Talvez até amedrontado.

 

Mas ela desconsiderou. Sentindo-se melhor - pensou. Que venha o frio. Em qualquer tom. Com ou sem exageros.  Agora estava mais adequada para prosseguir.

 

Com a tal agenda opcional do atraso. Sorriu feliz.

 

Estava calorosamente inaugurada a Temporada de Inverno.

 

 


Setembro 14 2009

 

O dia estava agitado.

Agenda completa. Sem falar nas intercorrências. Atividade sem intercorrência não é atividade. Não há a menor possibilidade. De se levar o dia sem que ele – o dia – traga alguma intercorrência. Isso já deveria constar em autos. Em contratos. Até em decretos. 

 

Mas enfim. Tudo parece ficar mais leve numa sexta-feira. Pelo menos para alguns.

 

Assim que entrou telefonou - para ela - avisando. O aviso foi repassado.

Vai chegar uma encomenda para mim. Soube agora. Por favor, quando chegar me avise. Assim. Com toda a calma. Não sabia o que era. Por isso mais não podia detalhar. Apenas avisou.

 

E deu continuidade na sua rotina. O dia foi passando. Esqueceu da encomenda. Esqueceu do aviso. Não teve o ócio necessário para o exercício da expectativa. Muito menos para o da curiosidade. Continuou com as tarefas.

 

De vez em quando lembrava. Hoje é sexta feira. E ria com tranqüilidade. De si para si.

 

Sexta – feira. Há um tempo deixara de comunicar isso ao mundo. Era até engraçado. Já acordava avisando ao mundo. Hoje é sexta-feira.

 

A ele sempre enviava cedo o recadinho. Hoje é sexta-feira. Depois concluiu que era uma comemoração dela. Não tinha que sair avisando. Afinal – todos tinham lá seu calendário. É verdade. Festejo é da ordem da individualidade.

 

Mesmo se for num grupo- é cada um com sua idéia do festejo. Mesmo que compartilhando. Calendário é particular. Não é uma divisão social. Ou uma soma. Muito menos uma multiplicação. Nessa hora até riu.

 

Decidiu parar com a calculadora. Se não era para ser partilhado – também não tinha por que ficar ali construindo pequenos cálculos. Ela então. Era de rir. Ou para rir. Mal sabia somar dois e dois. Sempre odiou contas.

 

Vai ver por que era sexta-feira. Riu.

 

Em meio às tarefas contas e calculadoras - a cena se efetivou.

 

O corredor era largo. Longo. Piso branco. Paredes brancas. Uma porta de vidro separava as alas de espera e de circulação. Digamos assim. Em meio ao corredor um balcão. Também branco. A luz entrava por janelas amplas de vidro.

 

O dia estava chuvoso. Frio. Cada um se protegendo com agasalhos e cachecóis. Um ou outro respondia uma dúvida aqui. Outra ali. E esperavam as deliberações. Também digamos assim.

 

Ela veio. Da ponta do longo corredor. Que ficou parecendo ainda mais longo.

 

Veio caminhando. Com uma braçada de rosas vermelhas. Dentro de um lindo vaso de cristal. Envoltas em papel transparente. Um belo laço vermelho arrematava o vaso e as flores. Um lindo e enorme arranjo. A desfilar pelo longo e largo corredor branco. Carregado por ela.

 

Ela comentou - caminhando. Eis a tal encomenda. Que enviaram para ela.

 

Quando vi as flores chegando - pensei que fossem para mim. Mas qual nada. São para ela. Li o nome no envelope do cartão.Foi ai que lembrei o aviso da tal encomenda. Que chegaria. Chegou. Deveriam ser para mim. Mas são para ela. E ergueu um pouco as flores enquanto - sorrindo - dizia e repetia. Junto com as sobrancelhas e um olhar ambíguo.

 

O tempo muitas vezes se faz um reflexo. Talvez um reflexo medular.

 

Primeiro o ato. Depois a compreensão. Foi tudo muito rápido. Ela falou. De pé. Caminhando. Assim. Perfeito. E – logo depois - já era outra cena. Teve aquele lapso de tempo. Até que todos compreenderam.

 

Ela escorregara. No momento que falou e ergueu um pouco o arranjo. No longo e largo corredor branco.

 

Por cima dela – deitadas - estavam as rosas vermelhas. A água. O laço. O vaso. Assim.  Como uma cena desorganizada daquele filme dos irmãos do Norte. As rosas espalhadas. Apenas a água parecia se divertir na fuga do continenti. Brincava por entre a roupa e os cabelos dela.

 

Um ou outro sorriu. Todos correram em auxílio.
As flores foram devolvidas ao lugar onde estavam.
Uma nova água veio fazer parceria ao vaso.
O laço – procede - só ele ficou sem solução.

 

Ela se secou com toalhas rapidamente trazidas. Sem maiores nem menores consequências físicas. Até esboçou um risinho. Menos ambíguo que o olhar. Talvez.

 

Diante da cena composta e recomposta – lembrou da avó de uma amiga.

 

Sempre fazia um alerta. Escorrega-se muito mais pelo que se pensa do que por onde se pisa, menina, muito mais pelo que se pensa do que por onde se pisa.

 

Esta foi a primeira frase que ocorreu. Veio de imediato.  Mas nada falou.

 

A situação dispensava acréscimos teóricos. O que tinha de prático em si já era suficiente.

 

Enfim. O dia acabou. Comemorou a sexta-feira. Pegou a encomenda quase destruída. Decidiu levá-la para casa.

 

Desta vez – ou como quase sempre – não pode deixar de sorrir. Dedicou um sorriso sorrateiro em homenagem ao Mestre austríaco.

 


Setembro 13 2009

 

A discussão parecia séria.

 

Elas falavam e falavam. Não conseguiam atingir um acordo. Porque nem bem uma se calava – a outra retomava. Parecia que já estavam assim há um longo tempo.

 

Poderia se supor até desde sempre. As questões eram as mesmas. Comuns. Antigas. Seculares. Milenares. Parecia cena de déjà-vu.

 

Deviam regular entre três a quatro décadas - no máximo. Faziam expressões de intensa maturidade. De extensa profundidade. Gesticulavam com as certezas nas pontas dos dedos.

 

Viravam-se uma para a outra com ar de inspeção pessoal. Como se circulasse uma pré censura. Que cada uma pesasse bem o que fosse falar. Coisa difícil. Mas nunca impossível. Isso dava para acreditar só de olhar para elas.

 

De repente vi a expressão de uma delas.

 

Triste. Até submissa. Mais escutava que falava. Parecia que solicitava um aparte. Ou tentava erguer a mão. A pedir permissão. Ou talvez socorro. Como uma náufraga. Tentando chamar a atenção do navio. Para se expor. Menos. Ou quem sabe se impor. Mais.

 

A mão denunciava o pedido. Demonstrava o corpo por trás dela. Da mão. E todo o temor por trás do corpo. E a sempre possível solidão lá – emoldurando o temor. Ou o contrário.

 

Mas ficou ali. Tentando a permissão. Dava até a impressão de estar entediada. Mas não era uma avaliação fácil.

 

Era ela - o objeto da discussão.

 

A vida dela estava em acareação. Basculava entre o certo e o errado. Entre a culpa e a desculpa. Entre o feito e o desfeito.

 

Parecia um tribunal. Como se houvessem aberto uma sessão. Todos seguiam uma ordem. E obedeciam a uma desordem. Pela expressão que fazia - teria que ser a jurada de si mesma. A cada fala das incorporadas promotoras e defensoras. Sim. Porque elas alternavam. Mas não perdoavam. Nem a defesa perdoava. Era a defesa contrária. Não tinha juiz. Ou talvez tivesse. Mas ainda não se manifestara.

 

Havia algo ainda mais interessante naquela confusão.

 

Não olhavam para ela. Falavam dela. Isso estava claro pela sinalização dos dedos. Apontavam. Até diziam a palavra - ela. Ou – dela. Mas não olhavam para ela. Discutiam sobre ela. Mas a tratavam como ausente. Falavam-se entre si. Poderosas.

 

Mas nem tudo neste mundo é exclusivamente o que parece.

 

Ela começou a rir. Rir mesmo. Abaixou a tal mão supostamente erguida e começou a rir.  Até amparou a bolsa para que não caísse do colo com o riso. Segurar a bolsa para rir foi perfeito. Não vi nada mais adequado até aquele momento.

 

As outras silenciaram por um segundo. Depois um minuto. Depois caladas – mesmo - olharam para ela. Pela primeira vez. Desde que ali chegaram e se acomodaram - cada uma em seu Lugar de escolha.

 

A situação parecia se inverter.

 

Já não dava mais para saber quem era navio. Quem era náufrago. Muito menos onde estava o mar. Um riso modificou toda a cena. O cenário. Jurados e advogados. Como se fosse cada uma para um lado. Assim. De repente.

 

O riso se fez juiz.

 

Entre condenados e absolvidos - o riso bateu o martelo. Os do navio pareciam se debruçar sobre a murada. O náufrago parecia pensar se estava melhor com sua tábua. Ou sua bolsa. Uma cena cômica.

 

Elas fizeram um ar de irritação. Afinal. Só queriam ajudar. E estavam realmente preocupadas. E ela ria assim. Em meio a uma conversa sobre ela. Uma conversa dela.

 

Não respondeu objetivamente. Levantou. De um salto só. E já com a chave do carro na mão. A tal mão da bolsa e que parecia antes erguida. 

 

E disse. Assim. Despretensiosamente. Desculpem. Obrigada. Licença.

 

Usou todo este vocabulário polido. E continuou. Comecei a ficar com uma dúvida. De quem teria mais dó. De vocês. De mim. De nós todas. Foi ai que - vai lá saber por que - me lembrei. 

 

Achei que iríamos almoçar em casa. Daí vocês telefonaram e me convidaram para almoçar neste restaurante.

 

Havia já colocado um peixe para assar.  Esqueci de desligar o forno. Está lá já há mais de quatro horas. Ainda rindo completou. Por isso dizem que o peixe morre pela boca. Sorrindo - saiu.

 

Lembrei de uma fala da minha avó. Muitas vezes o auxílio vem do esquecimento, menina, muitas vezes o auxílio vem do esquecimento.

 

Estava - assim - encerrada a sessão.

 


Agosto 26 2009

 

A sala estava cheia. Cadeiras e poltronas ocupadas.

 

Não havia um só espaço para sentar. Ele chegou com ar tranquilo. Parecia sereno. Sabedor do que exatamente fazia ali. Olhou em volta. Confirmou.

 

Não tinha mesmo onde sentar – aceitou. Vestia-se elegante. Sóbrio. Os óculos de aro preto lhe davam mais idade que a pele e a postura. Rendia-se ao frio através de um cachecol. De pé encostou a um canto da parede. Abriu um livro.

 

Parecia que estava só. O seu mundo estava dentro do livro. Não fora dele. Como se estivesse em uma bolha. Uma redoma. Vai lá saber.

 

Nada o desconcentrava. Nem barulho. Nem o murmúrio das vozes de quem também esperava. Nem quando ela derrubou o envelope que segurava. Nada o desconcentrava. 

 

A expressão acompanhava o que lia. Parecia uma exposição de mímica facial. O corpo – imóvel. Os ombros encostados na parede. As mãos virando as páginas. E no rosto o reflexo do texto. Às vezes sério. Outras com cenho franzido. Outras vezes parecia que lera algo engraçado. Surgia uma meia covinha na face. Passava as páginas com suavidade. Devia ser alguém que realmente gostava de livros. Com muito cuidado o manuseava. Uma delicadeza de quem sabe como é sutil o lidar com as palavras.

 

O atendimento estava atrasado – ali ficou por muito tempo. Até me pareceu que chegara adiantado. Devia ser cuidadoso com o tempo. Como demonstrava ser com o livro.

 

Aliás - devia ser cuidadoso com tudo. Com os livros. Com a própria imagem.

 

Os cabelos um pouco grisalhos tinham um corte adequado ao rosto. Uma daquelas pessoas que, por ser discreto – acaba por chamar a atenção.

 

Conclui isso quando olhei em volta. Muitos olhavam para ele. Meio que ocupavam o tempo observando a elegância e discrição dele.

 

Assim estavam todos. A assim a sala de espera se comportava. Salvo um ou outro que levantava para um pouco mais de água – a maioria aguardava sua vez. Com calma e tolerância.

 

Uma mocinha escutava música de forma egoísta e batia os pés no chão. Uma possível denúncia do ritmo do que escutava. Um egoísmo com certa socialização. Digamos assim.  

 

A mocinha que derrubara o envelope o continha com força entre os dedos.

 

Duas moças sussurravam algo sobre amores e pudores.

 

Uma senhora fazia uma dança com duas agulhas entre os dedos. E uma mágica em forma de meia parecia surpreender a quem acompanhava os movimentos dela.

 

Foi ai que veio o que se poderia dizer - segundo ato. Se um Teatro fosse. Ou - um molto vivace. Se um andamento musical fosse.

 

Mas não foi. Não era.

 

A mocinha do som egoísta sentiu algum calor. Mesmo diante do frio precoce. Talvez causado pelo bater de pés. Ou pelo calor do ritmo que escutava. Isso não se soube. Nem foi perguntado.

 

Ela levantou. Foi até junto dele. Junto dele tinha uma janela. Abriu. Assim. Sem mais nem por que. Sem consultar. Sem avisar. Abriu.

 

Ele, concentrado – continuou a ler o tal livro. Talvez tenha erguido de leve a sobrancelha. Mas não ergueu sequer o olhar. Permaneceu de pé. Agora junto ao ventinho da janela. Mas com toda a elegância já definida desde a chegada.

 

Alguém gritou. Em alto e explícito som. Uma barata. Entrou voando pela janela. Está ali. No cachecol dele.

 

De repente tudo voava. Não só a infeliz invasora.

 

O livro voou longe. Despaginado. Quase fraturado. Aberto. Exposto. Desencapado. Uma tristeza.

 

O cachecol foi arrancado às pressas para fora do pescoço. No seu vôo sem escala prevista - se enfiou nas agulhas dançantes da mágica senhora. De onde saiu voando já mais acompanhado e foi se espatifar no chão enfiado em duas agulhas.  

 

E bem ao lado das mocinhas sussurrantes sobre amores e pudores. Que perderam os pudores – e talvez os amores – e saíram com pernas e gritos para fora de onde estavam contidas.

 

Entre gritos, vôos rasantes e acrobacias – vieram os seguranças.

 

Queriam saber onde. Quando. Quem. Esqueceram do por que. Atropelados, pelas duas mocinhas ex-sussurrantes, tentavam chegar até a senhora das agulhas.

 

Impossível.

 

O elegante e concentrado leitor agarrou um deles pelo braço e suplicou. Ao menos foi o que pareceu pelo tom de voz. Uma súplica. Dizia com voz trêmula. Matem. Matem.

 

Tem situações especificas que um simples - por que - faz falta. Tivessem perguntado o por que dos súbitos vôos e gritos – saberiam do que se travava.

Mas não foi preciso. A mocinha do som egoísta trazia entre os delicados dedinhos – uma mariposa.

 

Ela não tremia a mão porque segurava a mariposa. Acredito que a mariposa - de tão  assustada – tremia a mão dela. Da mocinha.  Disse – era uma mariposinha. Assim. No diminutivo.  

 

O segurança retirou a mão dele do braço exigido.

 

Todos se olharam. Ela olhou para todos. A mariposinha por certo – não quis olhar para ninguém. Saiu – tão logo pode - voando janela a fora.

 

Quase igual a ela – fez o leitor elegante. Quase. Pegou o livro despaginado. O cachecol desalinhado. E, pálido, saiu. Meio que voando – de tão apressado. Mas - pela porta.

 

Mas igual a ela – tremia. Só não se perguntou mais uma vez o por que. Se de temores. Ou se de pudores.

 

Escutou-se um riso vindo do cantinho da sala. Foi a vez da senhora das agulhas mágicas. Devia ter a resposta.

 


Agosto 22 2009

 

Fiquei lendo o que ela escreveu e pensando.

 

Fui até mais além. Fui aos pensamentos por trás dos pensamentos. O que sempre é um risco para a lucidez. Mas enfim. Lucidez é coisa que se perde aqui – acha ali. É saber aproveitar do efeito elástico. Isso a vida vai ensinando.

 

Se tem conceito que não se estabelece é este. O da lucidez. Cada um faz sua leitura. Sua assinatura. Sem esquecer a crítica amadurecida e imatura. E assim se vai construindo e destruindo no dia-a-dia - a lucidez.

 

Assim pensando - fiquei diante do texto. E o texto diante de mim. Por um tempo.

 

Havia chegado tarde. E naquele estado de final de jornada. Poderia até dizer estado letárgico. Sim. Não queria mais pensar. Muito menos decidir. A jornada cobrara seu alto preço em decisões. Estava exausta. E num estilo sofisticado. Colocando as costas da mão por sobre a testa.

 

Mas vi que chegou uma mensagem. Optei por ler. Era ela. Vai lá e leia. Depois se puder comente. Um recadinho tímido. Fosse uma voz eu diria que era rouca. Mas na escrita sugeria letras minúsculas. Discreto e recatado. O recadinho.

 

Obedeci de imediato.

 

Vou ter muito que agradecer a ela. A começar pela sabedoria. E pela forma refinada de expor. Pela maneira singela. Como se me mostrasse um álbum de fotos delicadas. Timidamente impressas em papel fino. Envoltas em papel de seda. Que precisavam ser desenroladas e tocadas por mãos hábeis. Para que nada se perdesse. Ou fizesse riscos encobridores. Coisa mais linda.

 

Pela primeira vez acho que entendi. A originalidade da escrita. A força da escrita. As marcas que pode deixar.

 

Aprendi com ela. Escrever também é assim.  Escrever é como fotografar. Ler pode ser como olhar para uma foto.

 

Essa idéia me levou a lugares onde nunca fui. Vi fotos em cada página escrita. Redesenhei textos. Revelei relatos antigos. Guardei os esquecidos negativos. Fui de lembrança em lembrança enquadrando as imagens. Foi aí que rebusquei todos os cantinhos por trás dos pensamentos. Assim me senti.

 

Ela descrevia a nós todos. Coloria a descrição.

 

Era como se – olhando para o texto – lesse fotos. Como fazia aquela minha amiga. Discorria sobre as fotos. E colocava textos nas imagens. Ela foi mais sábia. Metaforizou imagens - uma a uma - no texto. E esbanjou instantâneos. Desconsiderou poses. Deliberadamente recusou imitações.

 

Ficou no silêncio. E no próprio silêncio – nos expôs. Nos organizou.

 

Impossível não lembrar a minha avó. Ela sempre dava um aviso. Nunca leia sem emoldurar as páginas, menina, nunca leia sem emoldurar as páginas. Não entendia muito bem – nem muito mal – o que ela me dizia. Achava complicado.

 

Agora sim. Tantos anos depois. Agora entendi. Até repeti aquele meu aceno positivo em memória dela. Estava correta.  Foi lendo o texto que compreendi. E consegui emoldurar as páginas. Mais ainda. Emoldurei parágrafos. Separei por cores. Por nuances.

 

Dava para ver os risos. Os dentes brancos. As taças. As cores dos vinhos.

 

Dava até para enxergar os códigos e simulações. Tudo estava na foto. As pessoas eram poucas. Cabiam num pequeno enquadramento. A moldura não deixava ninguém de fora.

 

Assim fiquei diante do texto dela. Como que subitamente despertada.

 

Compondo fotos. E decompondo palavras. E vale o vice-versa.

 

Muito mais que um limite impreciso – é um des-limite preciso. De quem escreve e descreve. Para quem lê e assimila.

 

Mesmo por trás da lente. Amparado por um tripé de letras. Até se usasse aquele paninho preto dos fotógrafos de rua antigos. Decidindo por onde começar. Como continuar. Salvaguardando ângulos. Priorizando luzes.

 

Nada impede - o fotógrafo fica na foto. Estava ela ali. Focando. Escolhendo. Gravando. Mas estava dentro. Todo o tempo.

 

Não sei se ela sabe. Se entendeu. Ou se disfarçou. Mas – independente - a mágica se fez. Esta também uma possibilidade que somente a escrita permite.

 

 

Esta é a verdadeira magia da letra. Não porque vira contra o feiticeiro. Mas porque inclui o feiticeiro. 

 


Blog de Crônicas - situações do cotidiano vistas pelo olhar crítico, mas relatadas com toda a emoção que o cotidiano - disfarçadamente - injeta em cada um de nós.
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