Blog de Lêda Rezende

Julho 05 2009

 

Querido:

        Não esqueça  de escovar os dentes deles.
  Falar para a médica sobre a vacinação, a carteirinha está na sacola
  Fale sobre as manchinhas atrás das orelhas deles

  Fale sobre a alimentação

  Pergunte se ela vai passar alguma vitamina

  Fale do dedo que a Marina não tira da boca e já está até machucado – (o que fazer?)

  Pergunte se já está na hora de sair das fraldas (o que podemos fazer?)

  Leva os exames – já coloquei na sacolinha, não achei o comprovante para pegar os outros. Acho que você levou para a Empresa e não trouxe. Leva as carteirinhas que dá para pegar.

  Lave o cabelo do Paulinho.

  O cabelo da Marina é só prender. Fala pra minha mãe fazer dois rabinhos que ela sabe.

  Dá um banho bem dado nos dois, tá?

  Ah! Traz o papelzinho que marca a altura e o peso deles para eu marcar depois na carteirinha...

  É isso. Estou indo sem querer, mas fazer o que... logo estou aí

  Um beijo

 

 

Gêmeos. Foi um susto a noticia. Eles mal tinham saído do juramento na saúde e na doença e lá estavam. Na alegria e na certeza. Sim. Eram dois. E um casal.

 

Entenderam a Vida. A arte da Vida. E a razão de viver. Entenderam tudo isso ao mesmo tempo.

 

A consulta era de rotina. Estava atrasada a fisiologia. Mas devia ser o cansaço. Viajaram logo depois da cerimônia. Na volta foram cuidar de organizar a casa nova. E isso incluía documentos e volta à rotina do trabalho. Nem se preocupou. Tinha engordado um pouco. Devia ter sido pela ansiedade. Da festa. Da viagem. De toda a mudança de vida. Da volta ao trabalho. Dos horários mudados. Estava explicado.

 

Quando a certeza é garantida - é sempre bom duvidar. A experiência é a arte de carregar – com segurança - muitas dúvidas. Assim foi a sabedoria do médico. Achou segurança demais.  Examinou. Solicitou um complemento. Era rápido. Eles, tranqüilos. Conversando e rindo.  

 

Veio o resultado. Foi cuidadoso. Perguntou se já tinham a vida arrumada.

Escutou que sim. Se estavam empregados. Escutou que sim. Se pensavam em ter filhos. Escutou um sim – mais tarde. Entendi.

 

O que vocês acham de sete meses. Acham muito tarde. Muito cedo.

 

Os que riam – silenciaram. O que silenciou – riu. Gêmeos.

 

Saíram do médico e voltaram para casa. Já da porta - no abrir da porta - a casa já não era a mesma que tinham deixado. De repente parecia tão pequena.

 

Horas antes sobrava espaço.

 

Foram a caminho do hospital combinando a decoração. Pensaram em comprar mais uma poltroninha. Quem sabe incorporar um dos quartos à sala. Seria o local da música. Mais um sofá. No terracinho – uma churrasqueira. Teriam tempo. Com calma a casa ficaria como queriam.

 

Na volta já era outra casa. Não a que eles fecharam a porta. E deram as costas. Agora abriam a porta. Olhavam de frente. Tão pequena. Não cabia mais nada. Nem poltroninha. Nem churrasqueira. Naquele minúsculo terraço. Nada mais de som. Muito menos de quarto incorporado.

 

Incorporada estava ela. Duplamente incorporada.  

 

De repente se deu conta. Nem soube dizer por que. Mas entendeu.O mundo das listas.

 

Havia este mundo paralelo. A lista do chá de cozinha. Depois a lista do casamento. Passando por uma lista de convidados. Até a empresa de turismo cooperara - uma lista de hotéis. Teve a do chá de bebê. Bebês. Duas listas. Com direito a cor. A lista das compras. Então assim era o mundo. Só não sabia como não tinha percebido. Que listas não finalizam. Nunca.

 

Agora estava ele ali. Mais uma vez – diante de uma lista.

 

Seguiu – rigorosamente. Com toda a atenção que uma lista merece.

 

Estava com os “listados” no colo. Lindos. Os rabinhos dela maravilhosos. Cheirosos após um banho bem dado. Dentinhos limpíssimos. Feliz. Felizes.

 

Na saída pegou o papelzinho com o peso e a altura para colocar - na lista de acompanhamento deles.

 

Riu. Se sentiu integrado ao mundo.

 

 


Junho 29 2009

 

Estava calada. Aliás, nos últimos dias pouco falara. Algo estranho acontecia com o seu corpo. Sentia desânimo. Vontade de ficar na cama o dia todo. Já acordava assim. Nesse total desalento. Algumas pessoas mais próximas notaram a mudança dela. Até as mais distantes perceberam.

 

Justo ela.

 

Vivia em constante atividade. Nem bem acabava uma tarefa e já organizava outra. Fins de semana agitados. Ia ao cinema. Ao teatro. Ao parque. A Feirinha de Artesanato. Quando estava se sentindo sem opção ia até visitar canil. Mas parada - não ficava. Nada de ficar em casa deitada.

 

Alertava. Desativar a vida em Vida é ofender ao Universo. O Universo pretende ação. E lá se ia com suas idéias motoras em profusão.

 

Mas estava desse jeito. E sentia um mal estar ocasional. Em especial no final do dia. Atribuiu ao cansaço. Muito cansaço. Não sabia explicar do que. Ou contra o que. Com tudo isso acabara diminuindo o seu ritmo. Deveria estar descansada. Mas parecia esgotada.

 

Um dia acordou em absoluto mal estar. Não saiu da cama todo o final de semana.

 

Ele ficou apavorado. Ofereceu tudo. Negou tudo. Reclamou. Acarinhou. Fez sugestão de bom gosto. De mau gosto. Provocou. Ameaçou. Até comentou que devia ser coisa da idade. Aí ate se afastou um pouco. Achou que poderia sofrer uma agressão física. Mas nada a fez reagir. Ela só dormia e acordava. O esforço maior - foi mudar o lado do travesseiro.

 

Decidiu. Na segunda vamos ao médico. Ela respondeu. Nem pensar.

 

Estava com medo. Uma amiga sempre dizia. Depois que se descobre – o processo se acelera. Não. Ficaria assim. Era só cansaço mesmo. Vai ver acumulado. De muitos anos de atividade. Lá um dia o corpo cansou. Pronto. Foi isso. Mais um tempo deitada e o corpo esqueceria o cansaço.

 

Corpo tem memória fraca. Disso tinha certeza. Corpo esquece o que é frio – no verão. E o que é calor – no inverno. E vai ver o dela se atrapalhou. Confundiu agitação com inércia. E estava exercendo seu despreparo mnêmico. Isso. Até gostou deste diagnóstico.

 

Não fosse a pouca vontade de falar até teria dito isso a ele. Mas com uma certa tontura se aproximando e se afastando continuamente - achou melhor calar e pouco se mover.

 

Nada o convenceu. Na segunda foram para o hospital.

 

Ela pouco reclamou. Estava pálida. Sentia um desconforto no estômago daqueles que só se contava em filmes. Concluiu. O corpo deve estar se lembrando de algum filme. Deve ter esquecido que o final de semana acabou.

 

Foi para a sala do médico.

 

Entrou. Sentou diante dele. Ele ao lado. Apavorado. Olhava para o médico.

 

Ela explicava. Ou tentava explicar. Foi logo avisando sobre a teoria do esquecimento do corpo. Ou sobre o corpo confuso.

 

Solicitou alguns exames. De emergência. Já. Ela ainda tentou recusar. Mas a tontura a fez sentar de vez na cadeira.

 

Duas horas de espera - pelos resultados.

 

Enfim. O médico apareceu. Segurava alguns envelopes nas mãos. Avisou que precisava de mais um exame para confirmar a suspeita. Suspeita. Olhou para o marido que apertou a mão dela.

 

Entraram juntos. Ela deitou. Ele fazia o exame e olhava para a tela. Tudo que ela via era a cor sob muitas nuances. E movimentos. A esta altura já estava se sentindo mudando de espaço. E tão jovem. Quem diria.  

 

O médico sorriu. Para os dois. E falou. Não sei se o corpo esqueceu. Ou se o corpo lembrou. Mas são três. Três. Devem se lembrar em mais ou menos sete ou oito meses. Agora é seguir acompanhando.

 

O marido perdeu a voz.

 

Ela chorou.

 

Lembrou da amiga. A da teoria dos processos descobertos - e acelerados.

 

Riu. E todos riram juntos.

 

Estão lindos. Sim. Não param. Decidi comemorar. Quatro aninhos. E estão tão bem.

 

Ele está na natação. Ganhou uma medalha ontem.
Ele escolheu judô. Até incentivei. Para ver se sossega um pouco. Ele vive sob propulsão motora.  
Ele não. É tranqüilo. Adora ficar sem nada fazer. Adora uma cama e uma televisão no final de semana.

 

 

É verdade. Falou rindo. Eu nem lembrava mais disso.

 

 

 



Junho 21 2009

Ele se fora.

 

Tempos depois que se deu conta. Nunca se sentira tão só na vida toda. Até aquele dia. Quando ele se foi. Solidão. Ampla e irrestrita. Fiel. Apegada a ela.

 

Na cidade para onde se mudara com ele não tinha parentes. Nem padrinhos. Nem comadres. Pensou isso e até riu. Tinha amigos. Mas não tinha ombro amigo. Isso veio descobrir na época. A diferença entre amigo e ombro amigo. É muito mais que filosófica. Ou conceitual. É material. Assim. Nua e crua verdade. Talvez melhor definindo. É factual.

 

Espalhou as cinzas onde ele pediu. Junto com os filhos. Ainda menores. Obedeceu ao pedido. Cumpriu as promessas.

 

E se viu só. Duas crianças. Sem a casa – ele vendera pouco antes de partir. Sem o carro – ele fizera o mesmo.  Num pequeno imóvel alugado. Desconfortável. Amontoado. Cobrira as janelas com um papel. Da rua se via a intimidade dela.

 

Sempre repetia uma frase. Página virada. Página virada quer dizer muito. Tem relação com o tempo. Tem relação com o espaço. Tem relação com o ato. E foi desse tripé que se amparou.

 

O tempo. Esse foi sua primeira intervenção. Noite e dia passaram a ter um só relógio. Nem sol. Nem lua. Rapidamente vistoriou papéis. Aprendeu a ler documentos jurídicos. A interpretar cantinhos de seguros. Leu todas as letras minúsculas – e põe minúsculas nisso – dos contratos. Estudou tanto que até discutiu com advogados. Com contadores. E os convenceu.

 

Vencer já era uma outra etapa. Agora precisava primeiro convencer. Convenceu. Isso em tempo recorde. Em menos de um mês deu entrada em protocolos nunca dantes imaginados. A cada resposta tediosa que escutava de é só aguardar – devia fazer um olhar especial. Especial de assustador.

Porque todos emendavam. E garanto que vai ser logo. Descobriu assim que se pode domesticar até o tempo.

 

O espaço. Concluiu antes de qualquer aviso. Não poderia continuar ali. Naquele lugar exposto. Eles que sempre foram tão recatados. E decidiu que iria ser dona de novo. Entendeu bem o significado de Casa Própria. Aí cabiam as letras maiúsculas. Aproveitou todas as brechas da sua profissão.

 

Montou um novo viés. A aceitação foi excelente. Juntou daqui. Catou dali. Economizou de lá. Em dois meses já estava se mudando. Desta vez para um lugar bem alto. Vigésimo andar. Devassado talvez por algum passarinho mais afoito. Apenas.

 

Eles ficaram felizes. Comemoraram o quarto novo. Individual. Com seus códigos e insígnias. Nesta noite dormiu tranqüila. Sentiu que albergando – se albergava. Antes de dormir olhou em volta. Sorriu. Discreta - chorou.

 

Dormiu com tanta segurança que pela manhã até perdeu a hora. Todos riram. Isso nunca acontecia a ela. E todos gostaram de voltar a rir em conjunto. Foi um desjejum perfeito. Do corpo e da alma.

 

O ato. Organizou a rotina. Horários. Compromissos. E cada um fizesse a sua parte. Para que todos pudessem usufruir de uma tranqüilidade comunitária. Esta virou a palavra em seguida ao ato. Não sabia se esta era a ordem certa. Palavra - primeiro.  Ato - depois. Ou, ato primeiro - palavra depois. Fazia tempo que não pensava mais no Fiat Lux. Agora a sincronicidade se fazia necessária e impositiva. Leis teriam que ser cumpridas. Os filhos entenderam.  Se não entenderam – aceitaram.  Isso era o de menos. O importante era prosseguir com maturidade.

 

Até ria quando pensava isso. Maturidade é coisa de quem tem tempo. Para ficar com pequenos devaneios. Para extrair grandes conclusões. Ela não tinha dedicação para tanto. Para a filosofia. Estava - cada dia mais - pragmática. E isso agora era amadurecimento. Pragmatismo. Que fiquem os desavisados com suas conclusões igualmente desavisadas.

 

Teve uma instante de contra-senso. Para dar conta – perdeu as contas. Em meio a papéis e decretos – comia. Barras e barras de chocolate. Nem sabia quantos. E a noite ficava mais doce. Esta a desculpa interior. Interior.

 

Porque o exterior se impunha sem desculpas. Foram quinze quilos. Este o saldo da tal página virada.  

 

Mãos à obra. Nada de excessos. Se auto-limitou. Lá se foram os quinze invasivos quilos. Cabelos cortados. Tingidos. Luzes. O que mais gostou.

 

Também era uma adoradora das metáforas. Luzes nos cabelos.

 

Com sua casa. Com seu carro. Com seus filhos. Com sua profissão em atividade. Deu conta.

 

Se perdeu algo nesse meio tempo – nem notou. Meio tempo. Assim poderia se resumir até de forma poética.

 

Meio tempo. Ação inteira. Espaço completo. Agora sim poderia dizer aquela palavra - que no começo se sentia tímida.

 

Ela vencera.

 

 


Junho 19 2009

Morara toda a vida lá. Numa cidadezinha onde a terra, o sol, a lua, a pouca chuva - eram as fronteiras e as sem-fronteiras conhecidas.

 

Apaixonara-se. Talvez. Mas ele disse que iam morar juntos. Que ia cuidar dela. Acreditou. Talvez.

 

Ficou grávida. Nem chegaram a morar juntos. Nem ele cuidou dela. Foi não-sabe-para-onde. Um lugar por certo bem distante. Não soube mais dele.

 

Viveu de talvez. Foi amparada pelos parentes. Desamparada pelos mesmos parentes. Acolhida e cobrada. Não tem rima, mas tem realidade. Talvez.

 

O tempo passou. Numa conta certa. A barriga cresceu. Sentiu uma dor.

 

Talvez tivesse chegado a hora. Assim falaram para ela. Foi para um pequeno hospital. Nasceu. Menino. Bem pequenino. Deu o nome do santo do dia. Viu num calendário do hospital. Decidiu. Seria este o nome dele. Foi o primeiro nome que viu depois que ele nasceu. O santo ajudaria. Confiou nos sinais.

 

Notou que estavam todos um pouco sérios. Começaram uma explicação. Curta. Mas prolongada. Para quem não sabia muito bem o que explicar.

 

Assim pensou.

 

Segundo entendeu do médico ele tinha um probleminha. Mas quem sabe teria alguma solução. Talvez. Precisaria de muitos exames. Na cidadezinha não havia possibilidade.

 

Assim começou a tecer a poesia dela.

 

Com a ajuda de amigos e vizinhos conseguiu uma consulta numa cidade próxima. Talvez melhor equipada. Nada concluíram. Nem diagnóstico. Nem prognóstico.

 

E de versinho em versinho chegou até a cidade grande. Enorme. Uma viagem longa. Difícil. Mas enfrentou. Todo o tempo. Noite e dia sem dormir. Cuidava do filho no espaço minúsculo do assento onde estava.

 

Quando chegou nem sabia bem onde - e já estava no hospital. Com o filho. Se sentiu igual a ele. Sem prognóstico. Mas aguardou.

 

Estava muito magra. Tinha os músculos dos braços bem marcados. Era bem jovem ainda. Mas as marcas da pele desconsideravam a cronologia. Ou o contrário. As mãos rudes e ásperas pareciam leves. Tocava os cabelos do filho com muita suavidade.

 

Sentada com ele no colo escutou o que buscara. Uma certeza. Qualquer uma serviria. Não poderia era administrar os não-sei. Não suportaria mais talvez. O saber lhe dava nomes. Diminuía a angústia. Permitia o medo.

 

Medo é mais fácil de assimilar. Porque já se sabe do que é. Na angústia fica-se balançando numa dor que não tem vínculo. Nem com o corpo, nem com a alma.

 

Estava cansada de talvez. 

 

Definido. A doença era sem resgate. Haveria uma aparente evolução física normal - tempo de calmaria. Assim tentava entender. Depois uma queda na evolução natural - até a fase terminal. Não seria muito curta. Mas também não seria muito longa. Passaria por vários estágios. Seriam necessárias algumas intervenções. Algumas mais complicadas. Outras mais simples. Mas faria muitas delas.

 

Foi-lhe dito assim. Com delicadeza. Mas com a sinceridade necessária.

 

Escutou. Compreendeu.

 

Abraçou o filho. Sorriu para ele. Disse com um sotaque forte. Vamos tocando a vida. Já chegamos até aqui. Parecia impossível. E já chegamos. Agora vamos continuar. Consegui um lugar para nós dois morarmos. E um trabalho que posso também ficar com ele. Vou mudar. Não volto mais para lá. Aqui ele terá melhores cuidados. De onde vim - vai ter nunca o que tem aqui. 

 

Olhou em volta. Para cima. Para as paredes. Deu a impressão de que olhava toda a cidade. Daquela cadeirinha onde estava sentada – visualizava a geografia. Um vôo além do marcado. Dimensionava o espaço numa forma de reduzi-lo. Do tempo já entendera. E não queria mais discussão sobre quanto. Nem quando. Escolhera apenas o onde. Isso era o que entenderia dali em diante. Do onde.

 

Falou com a métrica certa. Uma estrofe perfeita. Onde as palavras faziam marcações corretas.

 

Não havia queixa. Não destacava lamentos. Muito menos referência a sorte. Ou à falta dela.

 

Havia emoção. Solidão. Intenção. Ela era toda a atemporalidade.

 

Quando levantou sorriu com ar de criança. Talvez o único instante em que a idade cronológica se igualou à aparente. Pareceu tão frágil. Tão assustada.

 

Mas se recompôs rápido. No instante seguinte já carregava o filho. A esperança. As certezas. E a força. Visível nas veias dilatadas do braço fino, mas musculoso. Na sacola que segurava tinha o desenho de uma flor.

 

Tinha dor. Mas tinha flor. Tinha rima. Tinha certeza. Tinha valor. Tinha clareza. Tinha pranto. Tinha santo. Ele tinha partido. Ele tinha nascido.

 

 

Somando tudo, tinha tanto. 

 

 



Junho 17 2009

O convite chegou de repente. No começo de uma noite de muito calor - e pouca opção.

 

Convidava para o casamento dele. De repente - este virou o termo repetido. Porque as lembranças iam chegando de repente. E aos montes. Como dizia a minha avó. Só as lembranças nos comandam, menina, só as lembranças nos comandam. Ri sozinha.

 

Posso sim. Posso falar agora. Que aconteceu. Que voz tristinha. Sim. É arriscado. O período. Pode acontecer, sim. Sua mãe não vai gostar mesmo. Mas sossega. Nada vai acontecer. Alguém Cuida da juventude hormonal. Fica calmo.

 

Ainda bem. Acalmou agora. Mas faz favor. Veja se toma mais cuidado. Eu sei que é difícil. Mas a adolescência também tem mais ocupações. Além desta específica. Ainda bem que voltou a rir.

 

Pode lógico. Passa a semana aqui. Não importa se acabamos de nos mudar. Que graça tem uma casa se não for para receber os amigos. Diz a ele que pode vir. Sim.

 

Só rindo. Então vai ficar o dia todo aí. Em frente a este aquecedor. Vai ficar bem passado, isso sim. Tem razão. A temperatura aqui nem de longe está lembrando a de lá. Sei disso. Sim. Sinto saudades. Mas tinha que vir. E vim.

 

Assim. Sem muita dialética. Dialética virou foi queixo tremendo. De frio. Toma mais um. Edredom de plumas. Esse deve esquentar. Só cuida para não causar um incêndio. Com o aquecedor ligado o dia todo. Vai levar o aquecedor para o exame - também. Prometo nem vou rir mais.

 

Não nos víamos há anos. Muitos anos. Desde aquele último inverno. O do aquecedor acoplado. Ao corpo. Não sabia que ele havia sido requisitado. Soube na hora. Viera comemorar com o amigo de toda a vida. De pequenos a adultos. Mesmo distantes – sempre presentes. Nas noticias. Nas opiniões. Nos acertos. Nas profissões. Nas decisões. Nas escolhas afetivas.  

 

Nos encontramos no cortejo. Me viu. Veio feliz.  Em direção a mim. No dia exato e no momento exato. De toda aquela matrimonial confusão. Brinco perdido. Chuva sob marquise. Foco de luz nas costas. Gata assustada em sofá. Ameaça de desmaios em altar. Ele chegou. Sorrindo. Com aquele sorriso leve. Comemorativo. Abriu os braços. Não parava de me beijar, de me abraçar. Repetia meu nome mil vezes. E ria. Fiquei emocionada. Ainda bem. Que deixei este tipo de alegria plantada. Para ser colhida num reencontro.

 

Há uma certa fase da vida que as pessoas não sorriem simplesmente. Elas celebram. Comemoram. Riso tem uma outra equivalência. E quando essa equivalência desaparece e fica só o riso – muitos chamam de amadurecimento. As celebrações se recolhem. Já não há mais tanto festejo.  

 

Tem gente que já nasce com o riso amadurecido. E há os mais afortunados que o resguardam de qualquer distrofia. Às vezes amadurecer também equivale a uma distrofia. Mas enfim. Lá estava ele.

 

Cresceu belo. Forte. Saudável. Competente.  Brilhante. Mas manteve o riso comemorativo. Amadureceu sem se tornar um distrófico emocional.

 

Telefonou para fazer o convite. Fazia questão. Que lá estivéssemos. Casaria lá. Na cidade de onde vim. O trajeto se invertia. Agora nós que iríamos.

 

Tanto tempo sem voltar. Após um segundo de apnéia – escutando o convite pelo telefone – retomei.  O fôlego. O susto. A intenção. A voz.

 

Lá pode até ter brinco perdido, mas não tem chuva. Nem gata. Nem foco de luz. Nem prédio com marquise.

 

Tem sol. Tem mar. Tem cheiro de mar no começo do dia, no meio do dia e no final do dia. Tem cheiro de mar na brisa da noite, da meia noite. Tem até isso. Meia noite. Tem vista. Tem banquinhos para ver a vista. Tem coqueiro.

 

Tem paralela. Tem modelo. Tem forte. Tem ladeira. Tem uma sereia acolhedora de peito aberto. E  farol sinalizador de que está perto. Tem alta e tem baixa. Tem fita. Tem conta. Tem cor de ouro nas panelas. Tem mil molhos nas tigelas.Tem caldo. Tem lambreta. Tem até sururu. Lá tem tanto que nunca mais vi.

 

Tem a amizade que desprezou geografia. Que prestigiou afetos. Que memorizou amparo. E tudo em tão juvenis tempos. E contratempos.

 

Voltar requer sempre mais coragem que partir. Mas lá vamos nós. Outra vez sob o olhar de Manturna. Apertem os cintos. Entre céus e terras, passando pelo doce azul do mar. Uma certeza - o riso festivo se fará coro e cor. 

 

 


Junho 09 2009

De repente chegou a mensagem. Uma longa mensagem. Depois de muito tempo. Nem acreditei quando vi o nome no remetente. Ela estava ali. Se despojando. Não se expondo- mais se impondo. Relatando o silêncio. Muito mais que as palavras. Mas também não poupando palavras para falar do silêncio. Não se justificava. Se diagnosticava. Foi o que me pareceu.

 

Passei dias lendo e relendo.

 

Deve ser assim quando não se sabe as respostas. Muito menos as perguntas.

 

Como dizia a minha avó. As perguntas têm sempre mais conteúdo que as respostas, menina, as perguntas têm sempre mais conteúdo que as respostas.

 

E por isso fiquei assim. Só lendo. Relendo.

 

Contava que se afastara dos mais próximos e privilegiara os mais formais.

 

Os mais distantes. Buscava quem não via há dez anos. Mas não queria conversar com quem se despedira ontem.  

 

Fiquei com uma dúvida. Nunca os mais afastados – ou formais – mudarão de posição. Será assim. Posição estagnada. Ou será que vai se girando. Cada vez que a proximidade vence – passa-se a diante. Isso também não combina com a ela que eu conheci.

 

Continuei. Fez outros relatos. Sobre o choro fácil. Desautorizado, mas dominante. Sobre o sono difícil. Autorizado, mas desobediente. Sobre as condutas idealizadas. Banalizadas, mas sequeladas.

 

Fiquei eu estagnada. Nem próxima. Nem distante. Nem há dez anos. Nem ontem à noite. Por muitos dias. Nem sei mais quantos. Acho que fiquei projetada. Vai lá saber. Vai ver um silêncio puxa outro. E a memória não perdoa. Lembrei a frase do Francês. Quando a falta é muito grande as palavras também faltam. Devia ser isso. Faz tempo que não discuto com o Francês. Tenho me identificado com as idéias dele. Nunca pensei que isso pudesse acontecer. Eu concordar com as idéias dele. Do Frances. Mas enfim.

 

Lembrei de outra amiga. Também recém retornada. Nova sincronicidade. Mas esta me desejou serenidade. Vai ver alcancei. Ela deve ter me desejado com muita fé.

 

Ela é linda. Tem um sorriso lindo. Cabelos mais lindos ainda. Um estilo doce. Afetuoso. A voz dela só me traz vontade de sorrir. É uma voz sincera. Até pueril. Não tem voz de adulto desconfiado. Tem voz de criança crédula. Mas com a profundidade de quem já sabe. Ou de quem já duvida. Só de pensar – escuto. O jeito dela de falar meu nome. Rindo. Meu nome sempre vinha acompanhado de um riso. Com sotaque. Transmite segurança. Mas nem por isso é alheia. Aos sentimentos cruéis da humanidade. Reconhece os limites. Percebe as distorções dos limites. Inteligente. Mente interpretativa. Talvez esta a melhor definição dela. Possuidora de uma mente interpretativa. E refinada. Muito refinada.

 

Lembro das noites e noites que passamos nos comunicando. Com letras. Sem voz. Sem imagem. Diminuindo distâncias. Uma em cada exílio. Tentando fazer dele – do nosso exílio - o nativo. O natural. Sem raízes – mas com caules. Algo por aí. O monitor deveria se assustar de tantas risadas. Pela pobreza das nossas supostas metáforas. Ríamos e chorávamos. A nosso favor e contra nós.

 

E quando ela vinha. Saia do exílio dela e vinha até o nosso. Ele até ia dormir.

 

Sabia que a conversa seria longa. In vino veritas. Sentadas na cozinha. O vinho belo, formoso, sofisticado. Em nossa frente. Depois acabado, destituído, garrafa. No lixo. No intervalo - falávamos. Muito. Entre risos e risos. A veritas sempre vencia. 

 

Não posso. Imaginá-la chorando. Insone. Incrédula. Solitária. Racional. Escolhendo os distantes. Se distanciando dos próximos. Se aproximando dos rótulos. Guardando bulas. Escondendo sinapses. Alternando químicas. Seqüenciando idéias. Afastando atos. Colecionando saudades. Vivendo de social. Ou socialmente vivendo.  

 

Leio o aviso. Da distância concedida. Proibido particularidades. Só amenidades. Não chegue perto. Pode falar daí mesmo. Do portão. Cuidado. Ouvido bravo.

 

Mas quero que saiba. Adorei. Fiquei feliz. Com a proximidade distante. Ou com a distância aproximada. Tanto faz. Não importa. Importa é que podemos continuar. Seja onde for o tal portão.

 

Assim é a amizade.

 

Quase beijei o mensageiro.

 

 


Junho 04 2009

Se me contassem talvez não acreditasse. Parecia mesmo cena de filme.

Lá estava eu. E lá estava diante de mim. Todo o material espalhado. No chão. Pelo chão. A pasta abrira e caíra tudo. Gráficos. Separatas. Agenda. Tudo.

 

Fingi calma. Tranquilidade. Primeiro agradeci. Ao universo. Porque não acontecera lá dentro. Mas aqui fora. E nem caíra por sobre os trilhos. Caíra no melhor lugar que podia cair. Lembrei da minha avó. Sempre comentava.

 

O pior nem sempre é o pior, menina, o pior nem sempre é o pior. Procedia.

 

Por isso fiz o tal agradecimento. E até ri. Não nego que um pouco entre os dentes. Certo. E com os olhos nipônicos. É verdade. Um estilo raivoso-agradecido. Se é que isso existe. Mas se não existe – passou a existir. Mas enfim. Não é mesmo fácil. Administrar uma situação destas. Notei que alguns olhavam. Outros desviavam. Outros ainda olhavam até para cima. E nada havia em cima para olhar.  

 

Enfim. Abaixei. Comecei a juntar. Os papeis. E a possível serenidade.

 

Aquela mão. Esta foi a visão inicial. Em meio aos papeis. Aquela mão me entregava uma pequena pilha. Meio desalinhada. Mas já agrupada. Entre o pegar, aceitar e agradecer deve ter demorado toda a eternidade. Ou um milésimo de segundo. Impossível mensurar. Em seguida - o pulo. Com os papeis caindo novamente no chão. Tempo é relativo. Entendi agora. Toda aquela fórmula. Por que assim funcionou. O tempo presente. Passado. Futuro. Imediato. Retardado. Me virei para agradecer. Levantei os olhos.

 

Estendi a mão. E um outro fragmento do tempo se fez atuante.Se é que este é o termo correto.

 

Quantos anos. Muitos anos. Não nos víamos há muitos anos. E estava ele ali. Com os papeis na mão. E a agenda. Parecia cena de surrealismo.

 

Lembrei até do relógio escorrido.

 

Conseguimos rir. Juntamos mais uma vez os papeis. Sob todas as formas. Da real à metafórica.

 

Lembrei que ele adorava as metáforas. Adorava as figuras de Linguagem. Vai lá saber por que. Mas achava que a vida só tinha graça se lida assim. Através das muitas figuras de Linguagem.

 

Ele estava bem. Agora estava bem. A profissão - se colocada num gráfico - subira e descera durante este período. Riu quando olhou que eu segurava - gráficos. Mas, afinal, se recuperara.

 

Passara momentos difíceis. Muito difíceis. Emocional também. Parecia que só existia sempre uma possibilidade. Única. A errada. Porque só o errado vencia. Como se fosse uma moeda com o mesmo desenho. Nos dois lados.

 

Podia fazer o que fosse. Só dava errado. Lutara muito, lá ia a tal figura de Linguagem. Este hábito não perdera. Mas acrescentara algo. Um gesto se unia à palavra. Isso era novo.

 

Enfim lá um dia mudou. A situação mudou. Apareceu um certo. Comemorou. Com sutileza. Delicadeza e sigilo. Temeu que o errado voltasse. Poderia se sentir requisitado. Vai lá saber o que fazer nestas situações. Por isso escolheu o tal delicado sigilo. Mas não voltou. Desde aquela época. O certo permanecera alerta. E cotidiano. Ficara bem. De emoção. De situação. De profissão.

 

Estava envelhecido.  A tal moeda do mesmo desenho cobrara uma parte da sua pele. Dos seus cabelos. Do seu olhar. Mas conservava o sorriso. O de antes. E as piadinhas em volta do difícil. Do tempo difícil.

 

Perguntou por ele. Ficou feliz com o desfecho. Perguntou por ela. Lamentou as notícias tristes. Lembrava das noites de macarronada. Das risadas nas discussões de filmes. Do destempero dela. Esta a palavra perfeita. Ela sempre destemperada. Dos ímpetos de briga dos outros dois. Da solidão rebelde dela.

 

Parecia refazer um retrato. De cada um. Como se isso ajudasse.  O escoar do tempo. Ou das faltas.

 

Quando parou de falar e perguntar – me olhou. Senti que ficara triste.

 

Confessou. Muitas vezes não atendeu ao telefone. Para não ter que falar. Que contar. Agora entendia. Bobagem. E ele que sempre criticara a vaidade. Vai ver era por isso. Se sabia dominado. Pela vaidade.

 

Separamos os papeis. Rimos da metáfora. Demos um abraço. Pediu que avisasse aos outros. Trocamos os meios de contato. Dedicou um abraço especial para ele.

 

Cheguei em casa -  contei. Ficou surpreso. Comemorou o resultado feliz. Dele. E também dos papeis.

 

Agradeceu o abraço. Sorriu. Notei o olhar - de repente - um pouco distante.

 

Acho que também lembrou as noites de macarronada. Demos o assunto por encerrado.

 

Do jeito que estes assuntos devem - e podem -  ser encerrados. Com um talvez.

 

 


Maio 30 2009

Naquela manhã acordou como sempre - pontual e correto em suas atitudes. Mantendo a responsabilidade. Não se atrasava. Lá se foi. Dirigindo e concluindo os pensamentos da noite.

 

Sempre tranqüilo. Muitos o citam até como o único completamente feliz.

 

Está sempre bem. Fiel e leal às suas propostas. Bem-humorado. Solidário.

 

Tem um estilo pragmático. Sem atos emergenciais. Não gosta de precipitações. Ou melhor, não gosta mais. Afasta qualquer possibilidade de fantasias sem fundamento. Ou de ideal romântico. Nisso não acredita mais. Mesmo tão jovem. Pesa com cautela as atitudes. Tudo tem risco. E preço. Portanto é sempre bom regatear nos impulsos.

 

Estacionou o carro. Iniciou as tarefas do dia. Não são poucas. É bem titulado. Tem muitas atribuições. Nem teve mais tempo para pensamentos filosóficos. Nem nas conclusões da noite. O dia já estava a cumprir sua finalidade. Da lógica à logística.

 

Esta era a sua rotina. Neste dia teve algo diferente. Não demorou muito e recebeu uma mensagem da Diretoria. Que para lá se dirigisse. De imediato. Ainda encerrou o que fazia com calma e - obedeceu. Subiu.

 

Nunca se soube de uma Direção que não fosse em cima. Acima. Deve ter alguma simbologia. Além da óbvia. Pensou nisso também enquanto subia. Deu até uma risadinha. Nos tempos atuais não é das melhores mensagens. Dirija-se imediatamente à Diretoria. Mas o amadurecimento para não ser precipitado incluía também sustos. Não tomava sustos antes que o susto chegasse. Não tremia em pré. Só em pós. E se assim se fizesse necessário.

 

Tremera em pré e em pós quando o irmão se submeteu a uma cirurgia. A uma dolorosa e demorada cirurgia. Neste dia sim. Perdera o amadurecimento. O pragmatismo. A racionalidade. Ali o corpo tremeu. Diante. Depois. Durante. Foi esta uma das raras vezes.

 

Sorriram quando entrou. Convidaram a sentar. Sentou. Sorriu de volta.

 

Apertos de mãos. Abracinhos. Aceita algo para beber. Um cafezinho. Água mineral com gelo e limão. Fique à vontade. Ele ali. Agradecendo e esperando. E vice- versa.

 

Um deles levantou e entregou uma papeleta. Para que assinasse. Explicou antes que ele lesse. Representaria a empresa numa reunião internacional. Uma reunião de todas elas espalhadas pelo mundo. Seria um conferencista. O representante deste país na conferência. Hoje é segunda. O vôo sai na sexta à noite. Ficará por dois dias na metade do percurso. Depois seguirá para lá. O mesmo será feito na volta. A diferença de fuso é melhor aceita pelo corpo com esta divisão. Aqui está o seu tema. Boa sorte e parabéns. A empresa reconhece seus méritos e tem total certeza da escolha correta. Combinado. Então fechado. Apenas se organize para uma semana fora.

 

Desceu. Não contou se tremeu. Mas nem quis elevador. Preferiu mesmo as escadas. Desceu os degraus como que para acordar. Viver este segundo despertar. Com parcimônia. Passo a passo. Mas sorrindo. Sozinho. Por dentro. Por fora. Pelos olhos. Pelos cantinhos. Fez uma busca geográfica.

 

Restava uma dúvida localizatória. Com exatidão. Procurou no mapa. Mais sorrisos. Então era ali que ficava. Dez horas de fuso. Ainda bem que tinha a tal divisão. Passaria dois dias lá na ida e dois dias na volta. No meio – o local a tal conferência.  Já se imaginou até amigo do jornaleiro. Acenando na despedida. Riu. Estava feliz. Muito feliz. Uma viagem premiada. Já viajara muito. Desde bem pequeno. Mas nunca imaginara em ir até lá. Nem no mais sonhado dos sonhos. Ou nas mais ousadas fantasias megalomaníacas.

 

E lá estava. Com passagem. Hospedagem. Protagonizando uma conferência. Tendo a curiosidade como parceira. Uma semana. Sorriu.

 

Avisou primeiro à mulher. Recém casadinhos. Ela não sabia se ria ou chorava. Ganhou o riso solidário. Depois a família. Não faltaram risos e parabéns. Festejos. Palavras de entusiasmo.

 

Na primeira parada olhou para o alto. A cidade construída. Sem passado. Só presente. O passado se representava pelo estilo das pessoas. Não pela arquitetura. Cada um contava – através do rosto e da indumentária – uma parte da história de um povo. As construções pareciam de cidade do futuro.

 

Como aquela do desenho animado da sua infância. Olhou para cima. Os imensos prédios. Os reflexos de uns nos outros. Parecia uma cidade dentro de cidade.As poucas pessoas circulando pelas ruas. Os belos e numerosos carros nas avenidas. As roupas. Os que seguiam a tradição - rigorosamente. Os que abriram mão dela - rebeldemente.

 

No começo da tarde foi para um passeio. No deserto. Continuou olhando para o alto. Para o sol. Depois para o pôr-do-sol. Para a imensidão de perder de vista. Para aquela luz mágica.

 

De uma esquina para outra parecia ter mudado o século. De um desenho animado futurista para outro - da idade da Terra.

 

Enviou uma foto. Sorrindo. Lindo. Feliz. Montado no alto de um camelo.

 

Viva a Vida e suas surpresas. Ergueu um brinde – ao Alto.  

 

 

 


Maio 26 2009

Seria a primeira vez que falaria em público. Um caso clínico. A exposição de uma experiência - num encontro cientifico.  Complicado. O caso por certo. Mas nem a metade.  Não pelo caso. Nem pelo clinico. Mas por sua timidez.

 

Isso sim. A maior complicação.

 

Mas decidiu que o faria. Já não era sem tempo. Repetia sempre. O que mais gostava na vida. Uma pilastra. Para ficar atrás dela. Da pilastra. Mas desta vez iria enfrentar. Estava decidida. Isso tinha que acabar. Não ela. A pilastra.

 

Mas isso ainda não era o pior. Faria uma apresentação. Num país estrangeiro. Com tradução simultânea para quatro idiomas. Pensou. No quanto era exagerada. Vivia enfiada atrás de uma pilastra. Anos e anos. E agora iria sair de lá para uma tradução simultânea.

 

Com as amigas fez mil gracejos. E se perdesse a voz. E se esquecesse os óculos. E se tropeçasse na hora de subir no tablado. E se trocasse as folhas do papel. E se lesse na ordem errada. E se gaguejasse. Não faltaram se. Não faltaram suposições trágicas.

 

Sempre agia assim. Quando a tensão aumentava – fazia gracinhas. Era a forma de se equalizar. Ao menos assim dizia. Vai lá saber. As mil formas de uma emoção se manifestar. Ou se ocultar.

 

Foi para o aeroporto. Entrou no avião. Tremeu. Não era mais uma idéia. O ato já começava a se costurar. Assim ficou.

 

Silenciosa. E tensa. No vôo de ida.

 

Mas continuava firme. Iria apresentar.

 

Uma amiga fora junto. Também da mesma área profissional. Mas optara por ser apenas platéia. Sábia. Já a invejou desde o instante que colocou o cinto. No vôo. Mas calou. Nada comentou.

 

Desceu do avião. A cidade linda. Belas ruas. Belas avenidas. Pensou. Onde venderia uma pilastra. Todo o reino por uma pilastra. Mas também calou. Nada comentou.

 

Sempre se esquece de um mínimo talvez. Uma vez uma decisão tomada, uma vez efetivada - não se tem por onde sair. Rezou até por uma fatalidade. Depois se arrependeu. Pediu perdão. Desculpas. Perdão de novo. E em quatro idiomas. Achou que já tinha se envolvido em tragédia demais. Não precisava de mais cooperação. Mesmo sendo divina.

 

Fez a tarefa. A da vaidade. Cuidou dos cabelos. Escolheu a roupa. A amiga ajudou. Solidarizou. Contemporizou. Tudo que uma amiga faz nestas horas. Inclusive grifar que a platéia estaria lotada. Interessante. Pensou. Mas lá se foi. Escutou o nome dela. Subiu no pequeno tablado. Sentou. Puxou para perto o microfone. Por um milésimo de segundo invocou o além. O aquém. Encerrou no amém.

 

Iniciou a sua fala. Começou a ler. Não reconheceu a própria voz. Parecia uma soprano. Gripada. Chegou a bendita segunda página. Era um total de seis. Na segunda já reconheceu. A própria voz. Daí em diante já era ela. Bem. Mais ou menos. Sempre tinha uma quedinha aqui ou ali. No tom da voz.

 

Acabou. Vieram as perguntas. Respondeu. O relato foi aplaudido. A construção teórica elogiada. Alguém comentou que ela era bem desenvolta.

 

Quase riu. Não poderia dizer que respirou. Isso não conseguira desde a primeira até a tal sexta página. Mas deve ter dado um semi-gemido. Foi o que escutou. Pelo microfone.  

 

Ia sair da sala quando alguém a chamou. Era a tradutora. A mocinha que ficava lá em cima. Num quadradinho com vidro. Com fone de ouvido. Se surpreendeu. Sempre acreditou que elas fossem figuras míticas. Porque nunca viu uma só delas ao vivo. A mocinha riu com a observação. E foi logo dizendo. Sua palestra foi o melhor que teve. Até agora. Desci para lhe dizer isso. Mas você estava tão nervosa. Eu também fiquei nervosa. E quando você falava mais fino - eu também traduzia com minha voz fina. Nunca isso me aconteceu antes. Mas tudo ficou normal depois. Da segunda página em diante. A sua voz - e a minha.

 

Ela conseguiu respirar. Fez uma inspiração forte. Sentiu alvéolo por alvéolo.

 

Decidiu. Explanação só a partir da segunda página. Estava no intervalo e foram tomar um café irlandês. Na cafeteria bem em frente. A mocinha mítica comentou - deveria ter tomado antes. Riram. Muito.

 

Tentar vencer a si próprio é sempre a maior das batalhas. Achou que conseguira. Riu. Na próxima apresentação – concluiu – vou fazer antes um curso. De canto lírico. Riu de novo.

 

Silenciosa. E feliz. No vôo de volta. 

 

 

 


Maio 09 2009

O calor estava terrível. Foi assim que entrei em casa. Resmungando. Alucinando. Água gelada. Piscina com gelo. Roupa com flocos de neve embutidos. E lá no fundo da visão - uma cachoeira gelada. Água despencando de uma pedra congelada. Alucinei até nevasca. Borrasca. Avalanche.

 

Não faltou criatividade no processo alucinatório. Mas enfim. Voltei. Com calor. Sem nevasca. Sem borrasca e sem avalanche. E com um nada diplomático humor.

 

Nem bem entrei em casa e o interfone foi demonstrando o poder da sua existência.

 

Não acreditei. Ela precisava falar. Relatar. Discorrer. Pensei todas estas palavras diante de um único golinho de água. Porque já fui ficar a postos. Para o tal relato. Me senti diante de uma novela. E nem novela eu assisto.

Agora ia assistir a novela delivery.

 

Bom. Melhor parar com o mau humor e acatar. Ceder.

 

Como de hábito ela já foi entrando e falando. Desta vez faltou o choro. Se é que se pode falar assim de um choro. Choro não falta. Talvez lágrimas faltem. Mas foi logo contando. Aquele almoço tinha sido curioso.

Gesticulava com cautela. Como uma mulher esclarecida.

 

O lugar que ela sempre gostava de ir. Ele estava gentil. Comentava a mudança. As dificuldades. As alterações na rotina. Mas já estava tudo acertado. Inclusive já tinha onde morar. Que rápido. Surpreendente. E num bairro que sempre quis. Que maravilha. Estava eufórico. Muito já estava embalado. Que rapidez. E muito ainda restava embalar. Isso sempre se resolve fácil. Fez piadinhas. Nada como um plástico-bolha. Riu. Sozinho.

 

Em meio a uma mastigada e outra, ele falou. Pronta para a travessia. Assim. Esta fora a palavra. Travessia. Ela pensou mil loucuras com esta palavra. Mil sugestões. Inclusive anatômicas. Mas só pensou. Como assim travessia. Já está tudo feito. Tudo decidido. Nem sabia onde se encaixava. Ele fez nova piadinha. Encaixada. Encaixotada. Mas uma vez riu. Sozinho. Mas não pareceu notar. Em nenhuma das duas vezes.

 

Nada mais disse a ele. Silenciou. Como uma mulher desiludida.

 

Voltou para casa. Não se viram por dois dias. Hoje viera novo convite. Mais um almoço. Quase riu. Comentou algo sobre peso. Achei que poderia ser uma metáfora. Mas permiti apenas a literalidade. Pareceu mais adequado.

 

Desta vez ele repetiu os planos e acrescentou mais novidades. Ele fez alguma observação rindo. Sobre a viagem e os amigos. Ela não entendeu muito bem. Ele riu. Enfim. Riso é da ordem do pessoal. Riso compartilhado já é outro setor. E ela estava já em outro setor.

 

Melhor dizendo. Nem tinha trocado de setor. Avisara já no trabalho. Cancelara a possibilidade da transferência. Desde o primeiro almoço.

Desejou que ele fizesse uma excelente travessia. O que mais pensou não falou. Sobre a tal travessia. Deu um beijo na saída. Ele correspondeu. Avisou que ligava assim que chegasse lá.

 

Comentou rapidamente. Onde tudo tinha mudado. E onde ela perdera. Talvez uma fala. Um corte. Vai ver errara. Como continuista. Algo por aí. Mas não lembrava. Melhor fechar as cortinas.

 

Desta vez entendi que água não seria necessário. Lógico que pensei numa bacia com gelo. Mas ofereci um café. Aceitou.

 

Segurou com a mão discretamente trêmula. Mas nada derramou. Como uma mulher, talvez, amadurecida.

 

Quando se despediu - combinou um chá. Um cinema. Mas alertou. Nada de almoço.

 

Desta vez riu. Como uma mulher, quem sabe, renascida.

 

Lembrei do meu amigo indiano. O som sempre persiste, independente da veracidade do silêncio.

 

 


Maio 07 2009

Estava decidido. Passaria o final de semana em casa. Lendo. O livro dele - a fascinara. Mais uma vez. A cada nova frase lida – quase uma hora de silêncio. Tentando entender todo o processo. O que gerou a frase. E o que a frase gerava. Até riu. Seria lido com calma. Não sabia por quanto tempo. Não que fosse volumoso. Em páginas. Era volumoso fora das páginas. Maravilhoso. Ele era e sempre seria seu autor favorito.

 

Havia o título. Começou a se apaixonar desde o título. Na hora nem se dera conta. Do por que o título também a atraíra. Assim são os livros. Ou os autores. Escrevem uma idéia. E são desapropriados dela por quem os lê. Assim. Desde o titulo. Enfim. Que cada um se utilize do fato. Como sendo fruto do próprio ato. E em meio às páginas sigam as duas trajetórias. Compondo e descompondo a cada nova linha.   

 

Era um mar calmo. O céu estava azul. E fazia aquele barulhinho doce. Suave. De ondinhas quebrando. Na areia. Tudo que uma criança compreendia. Tudo estava ali. Ela era bem pequena. Não diria corajosa. Era afoita e curiosa. Talvez termos mais adequados.

 

Lembrava do final de tarde na praia. Em especial daquele final de tarde. Ele veio e perguntou. Quem queria passear de jangada. De jangada. Ele estava ao lado dela. Recusou. Temeu. Ela concordou e o abraçou. Considerou prudente. Não ir.  

 

Ela olhou. Para o mar. Para a jangada. Para as pessoas que iriam. Sorriu. Decidiu e avisou. Eu vou. Assim. Com a voz de criança. Com a decisão tranqüila. Que só as crianças sabem ter. Não temem pelas escolhas. Porque não temem ainda pelas perdas. Para as crianças o mundo realmente gira. E trás de volta o que não pode ser escolhido num mesmo momento. O depois - é logo ali. Não existe a possibilidade do nunca mais. E quando existe o nunca mais a tradução é outra. É como um talvez. A infância é sempre talvez.

 

Enfim. Deu a mão a ele. Entrou correndo na água. E subiu na jangada.  

 

A jangada dançou. Na água salgada. Com pontinhos brilhantes aqui e ali. Balançando. Alternando as madeirinhas. Dentro e fora da água. Ele ficava de pé. Segurava o remo. Um banquinho de madeira amparava uma sacolinha. Uma rede. Se ninguém ia sentar – ela também não iria. Também ficou de pé.  

 

Ela segurou na mão dele. E sorria. Feliz. Olhou de volta para a areia. Ele ainda estava lá. Abraçado a ela. Sentiu aquela pontinha de orgulho. Não recusara a enorme aventura. Deve ter até erguido mais a cabecinha. Mas disso não lembrava. Lembrava dos pés. Lembrava que olhou para os pés. E viu que a água entrava por entre as madeiras. E daí por entre seus dedinhos. Fazia cócegas. Achou maravilhoso. Maravilhosa a sensação.

 

O jangadeiro olhava para ela e mostrava o mar.

 

Explicava o mar. Ela atenta. Nunca mais na vida esqueceria aquela explicação. E nem esqueceria que para entender o mar é preciso uma explicação. O mar não é assim tão simples. Água. Sal e onda. O mar é outro lugar. Que também tem suas curvas e suas retas. Seus mistérios e seus códigos. Tudo vai depender da explicação. E do conhecimento. De quem o apresenta. Sempre que ia para o mar - lembrava dele. E da seriedade com que explicava. E a concentração que ela ficava. Para que nada deixasse de ver.

 

Escutando e olhando. Sentiu-se diante de uma majestade.  

 

Ali ficara não por muito tempo. Aprendendo sobre jangadas e mar. Sobre mar e coragem. Sobre riscos e efeitos. Hoje sabia que fora um passeio curtinho. Na época se sentiu uma desbravadora. Como se há dias no mar.

Riu das lembranças.

 

O livro, que estava no colo, escorregou. O segurou antes que caísse. Releu o título. Aí então compreendeu. Acariciou a capa. Sorriu. Olhou para os próprios pés. Brincou com os dedos no tapete. Em terra firme como na água. O que valem são as sensações.

 

Lembrou da amiga. Que tinha um amigo indiano. Um dia ela lhe contara algo que ele falara.

 

É preciso um espaço para que a pena flutue – tranqüila. 

 


Maio 06 2009

Nem bem abri a porta e ela já foi logo entrando. Mais rápido ainda foram as lágrimas. Não falava. Só chorava. Com as mãos no rosto. Sentei ao lado. Não sabia o que dizer. Não sabia os motivos. São tão contraditórios os caminhos das lágrimas. Continuou chorando. Só toquei-lhe o ombro. Ela pôs as duas mãos no rosto. Como uma criança desamparada  

 

Decidi ir até a cozinha. E lhe entreguei um copo com água. Na hora foi o que me ocorreu. Assim. Num gesto automático.

 

Desta vez contrariei um pouco o meu amigo indiano. Ele sempre dizia. Se não sabe o que fazer – faça nada.

 

Mesmo não sabendo o que fazer, optei pelo copo com água. Um dia explicarei isso a ele. Quem sabe ele abre esta nova alternativa.

 

Ela bebeu. Quase que de uma vez só.  Assim. Com avidez. Pôs as duas mãos no copo. Como uma adolescente resgatada.

 

Foi um verdadeiro milagre. Parou de chorar. Conseguimos até rir. Ou melhor, eu consegui. Falei. Se era sede, não precisava chorar. Devia ter pedido. Já teria sido resolvido. Esboçou o que se poderia chamar de sorriso. Mas não foi adiante. Me desculpei.  Pelo gracejo inoportuno. Nada respondeu.

 

Começou a contar. O motivo. Muito além da sede. Embora não deixasse de ser também uma espécie de sede.

 

Ele estava mudando. Ela compartilhava. Cooperava. Solidarizava. E todos esses qualificativos. Que sempre se medalha em situações como esta. Como condecorações. Como se tudo não passasse de uma batalha. Interminável.

 

Assim parecia entender a parceria. Neste momento quase o choro voltou. Mas, se conteve. Muitas vezes as palavras não cedem lugar. E lá se vão saindo. Do jeito que podem. Impedindo outras saídas.

 

Ele não a convidara para a nova cidade. Ia se mudar sem ela. Sem  ela. Como isso podia acontecer. Não compreendia. Ela sempre avisara que também iria. Junto. E ele não a convidara. E já estava tão perto do dia. Da mudança dele. Ela nada podia fazer.Para alterar a mudança. Quase ri. Porque ela quase riu. Mas repetiu. Como isso pode acontecer.

 

Levantou. Caminhou. Parecia desatenta ao ambiente. Mas esbarrou em nada. Pôs as duas mãos nos bolsos. Como uma cega já treinada.

 

Repeti a minha mais nova sabedoria. Mesmo sem entender. Ofereci mais água.

 

Mas uma vez o efeito se repetiu. Cheguei a pensar que poderia ser o copo. Parecia um copo tão simples. Olhei para ele até com mais respeito. Vai ver era ele. O operador dos milagres. Conclui. Da próxima vez vou trocar de copo. Ou trocar de atitude.   

 

Sentei. Olhei para o copo – vazio. Em cima da mesinha. Tentei coordenar. Atos e fatos. Gestos e palavras. Nada parecia combinar. Ou vai ver estava tudo bem combinado. Eu que não conseguia entender. Talvez fosse um daqueles episódios de numeração de chances. Aliás, desconheço conta mais complicada. Não tem Aritmética que responda. Ou corresponda. Às vezes, a primeira chance já é a última. Outras vezes tem a terceira chance para depois possibilitar a segunda. Outras vezes, ainda, é no esgotar que a contagem recomeça. Vai lá saber.

 

Chance é da ordem do possível.

 

Seqüenciar é que é da ordem do impossível.

 

De repente o telefone dela tocou. Era ele. Convidava para almoçar. Juntos. Os dois. Num lugar que ela gostava. Ela sorriu. Levantou. Se recompôs. Ajeitou os cabelos. Agradeceu. Quando o elevador chegou, olhou para trás e sorriu. Segurou a porta com uma das mãos. Como uma senhora sofisticada.

  

Resolvi telefonar para o meu amigo indiano. Como uma ocidental desorientada.  

  

 


Maio 01 2009

Minha avó avisava sempre. As cores da Vida estão na rotina, menina, estão na rotina. Esta frase veio de repente. Na minha lembrança. É verdade.  Acho que a rotina começa quando se abre a porta da própria casa. Num retorno. Numa volta. Sente-se o que foi construído para ser rotineiro. Neste instante. Sente-se na pele. Nas vísceras. Nas batidas do coração. Até na pouca voz. Ou nos excessos dela. Da voz. Pode parecer que significa nada. Mas significa o rumo. O norte. O posicionamento. Diante de tudo. Até da Vida. Mas bem que podia ser sem exagero.

 

Chave na porta. Antes de entrar - todos morenos. O sol fizera sua marca. E algumas até já estavam se desmanchando. Mas denunciavam. O clima. As roupas usadas. A frequência. Tudo isso marcado pelo sol. Como tatuagem.

 

Pode-se fazer toda uma leitura a partir daí.  Efêmera, talvez. Pois nunca se sabe que marcas o sol faz.  Mas uma coisa é certa. Ele nunca deixa de fazer. Não dever ser à toa que o chamam com nome e título de nobreza.  

 

Foi mais ou menos assim. Teve um pré-porta. Suave. Tranqüilo. Como se até nas férias coubessem um missão cumprida.  Há todo um ritual. Na volta. O principal é procurar a chave. A chave da tal porta. Que dá acesso à rotina. Sempre um olha para o outro. E pergunta com quem está. E cada um aponta para o outro. Incrível como esse diálogo se repete. Sempre. Por toda a vida. Com quem está a chave. E ela sempre circula. Agora até ri. Mas não dá para filosofar. Ele foi logo avisando. Sábio. Ou mais que isso.

 

Vidente. Enfim. O portador da chave a encontrou. Abriu a porta. E teve o acesso permitido. À rotina.

 

Nunca vi rapidez igual. Os antes morenos bronzeados se transformaram. Ficaram cinza esverdeados. A visão foi mais forte que a força do tal portador do nome e sobrenome. Brancos. Como se dos picos das montanhas nevadas tivessem vindo. Uma nova leitura poderia ser feita. Até as marcas fugiram.

 

Havia escutado durante a ausência que lá só chovia. Escutara assim. Sem nenhuma atenção. Ou com total desatenção. O que ainda é pior. Como se nada tivesse com isso. Com a notícia. Com a informação.  Muito menos com a chuva. Estava sentindo o sol na pele. Chuva passou a ser ficção. Não uma questão. Desdenhou. Estavam longe. Passeando. Com pouca roupa e muita imaginação. Olhos atentos ao novo. Possibilitando uma nova impregnação na retina. De cores. De luzes. De morros. De montanhas. De ondas. Ouvidos capturando sotaques. Noticias locais. Locais. Separando sugestões. Às vezes cada um meio que cantarolava aquela canção antiga. Continua lindo. Em todos os meses. E riam. Se o sol nasceu para todos eles disputavam. A sua parte na herança. Com afinco. Com avidez. Assim se conduziam. Perfeito.

 

Perfeito não foi bem a primeira palavra pronunciada. No pós-porta. A chave parecia até queimar. Nas mãos. Um já querendo doar ao outro. Ou a qualquer outro. A tal chave. Os olhos paralisaram. Fez até barulhinho movê-los.

 

Era verdade. Chovera. Muito.

 

Transbordara. Repetiu esta palavra sem parar. Transbordara. Quando mudou foi o tempo do verbo. Transbordou. Ele fazia coro. Ela dizia e ele repetia. O inverso também se fez. A água afoita descera as escadas. E se instalara na sala. Nos tapetes. Atrás da porta. Quase riu porque lembrou a outra música. Bem diferente da anterior. Do continua lindo. Porém mais forte. Emocional. Coisa para tenor. E soprano. Dos pés aos pés da cama.

Dava para cantar a música toda. Cabia em tudo. Em especial no desespero.

 

Permitia até a parte do sem carinho.

 

Nem entraram. Ou melhor. Teve um mínimo lapso. De tempo. Como dizem os mais exatos. Mas entraram. Firmes. Ele fez uma piadinha. Nada como por os pés no chão. Ele referia-se ao ar. Ela entendeu como à água.

 

Conseguiram rir. Mas não de imediato. Teve um outro lapso. De tempo. Mas enfim. O momento estava mais carente de atitude do que de dialética. Malas em cima dos sofás. Sapatos fora da anatomia adequada. E vivas aos paninhos. Era já a segunda vez que celebravam. Os paninhos. Quis até descobrir quem foi o inventor deles. Dos paninhos. Repetiu com voz agora de contralto. E uma sobrancelha mais levantada. Vai ver algum adorador do sol. O mesmo, quem sabe, que lhe dera nome e título de nobreza.

Tira daqui. Põe ali. Ali não. Mais pra lá. Não, lá em cima. Agora sim. Cuidado com a escada. Nossa. Que queda. Depois se examina. Tem mesmo nada. Que não esteja molhado.  Mas já está acabando. Esta parte se vê depois. Não. Ela só virá dentro de quinze dias. Não é verdade. Comentou com voz de barítono. E as duas sobrancelhas mais levantadas. Sim. Melhor ver logo então. Já. Tão tarde. O tempo voa. Água também. Acho que somente nós não sabíamos. Agora já sabemos.

 

Viva as cores da rotina. Não fala assim dela. Certo. Está perdoado.

 

Missão cumprida. Missão. Cumprida. Sentados por cima das malas. No sofá. Agora rindo.


Com voz rouca. E sobrancelhas despencadas.



Abril 25 2009

Enfim estava lá. E com eles. Amava aquela cidade. Até faziam piadinhas com ela. Se estivesse triste.  Entregassem-lhe uma passagem para lá. Riria em segundos. Se estivesse concentrada. Bastaria alguém dizer as iniciais do nome da cidade. Ela logo se virava para escutar. E ela não negava. Sua relação com aquela cidade era realmente assim. Passional. Lúdica. E sempre acrescentava para horror dos menos avisados. E Ecológica. E se divertia com a surpresa nos olhares e gestos que este comentário causava.

 

A programação era intensa. Música. Ballet. Teatro. Levara as roupas adequadas. Sapatos adequados. Economizara no espaço. Da mala. Apenas um sapato de festa. Achou suficiente.

 

Deram voltas em lojas e caminhadas no Parque. Sacolas se amontoavam. Voltaram cedo para o hotel. O Hotel era muito elegante. Numa região privilegiada. E perto de tudo que gostava. Descansaram um pouco. 

Foi se arrumar. Aquela noite era a noite da Música. Cuidou da maquillage. Perfume. Cabelos. Estava encerrada a tarefa com a imagem. Por último o sapato. O tal único de festa. Já o havia posto, desde que chegara da viagem, no armário.

 

Daí se iniciou um teatro particular. Cômico e trágico. E quase em iguais proporções.

 

O sapato sumira. Assim. Revira daqui. Procura dali. Abaixa-se aqui. Estica-se dali. Não estava mais lá. Ainda pensou em fazer piadinhas. Vai ver gosta mais de música do que eu. E já foi na frente.

 

Eles, solidários, telefonaram para a Segurança. Subiu um senhor alto. Forte. Com uma prancheta nas mãos. Caneta. Ar sério. Terno preto. Um fiozinho saia do ouvido e entrava no bolso. Do paletó. Explicaram o ocorrido.

 

O senhor alto escutou e depois começou com as perguntas. Eles todos se controlaram para não rir. Com as especulações que fazia o tal senhor. Riso e choro são expressões. Nada têm a ver com Idioma. Ele entenderia e poderia não ajudar. E o tempo passava. Não iam perder a Música por sapato nem risos.

 

A senhora viu alguém estranho no corredor hoje. Esta pergunta foi difícil. Difícil conter o riso. Apenas respondeu. Todos aqui são estranhos. Estamos num hotel. E ainda em outro país. Ele desconsiderou.
E partiu para a outra pergunta. A senhora recebeu algum pedido de resgate. Ela olhou bem para ele. Desta vez riu. Muito. Todos riram. Também desconsiderou o riso e repetiu a pergunta.
Ele insistiu. Quando a senhora o viu pela última vez. Continuou. Olhava para a prancheta. Não olhava para eles. Por sorte de todos.
Perguntou pelo valor de custo. Escutou três valores diferentes. E muitos risos encobrindo as falas.

Fez mais algumas perguntas dentro do mesmo padrão das anteriores. E sempre desconsiderando as respostas. Apenas seguia a sequência do que deveria estar escrito no manual. Não importava sobre o que se tratasse.

Informou – o segurança - que informaria à Seguradora do hotel que tinha sido informado do fato. Mandou que assinasse o documento que continhas as perguntas.  Em três semanas tudo estaria resolvido.

 

Nada mais restava a fazer. Ele se foi. O segurança. Com prancheta. Caneta. E fio no ouvido.

 

Ocorrências como aquela são universais. Protocolo é protocolo. Foram estas as únicas conclusões filosóficas que conseguiram chegar. Não existem linhas dividindo a renda per capita. Não existe barreira de Idioma. É a máxima semelhança possível. Não deve ter sido à toa a punição pela construção daquela torre. Todos iguais abaixo do céu.

 

Olhou para o armário. Um sapato com Design Coitado devolveu o olhar. O tempo passava. Todos prontos. Ela ali.

Aceitou a oferta vinda do armário. Colocou o sapato. E saíram. Rindo. Muito.

 

Já no teatro ela notou o primeiro olhar. Para os pés. Custou a crer. Pensou que passaria despercebida. Qual nada. Não teve quem passasse e não olhasse. Já estava até se sentindo paranóica.

 

Mas não deu importância. Só se sentiu uma funcionária apressada do Exército da Salvação. E fez expressão de benevolência. Com até positivação gestual de cabeça. Para quem a olhasse dos pés ao rosto.

 

Aproveitaram a noite. E a música maravilhosa. Naquele cenário maravilhoso.

 

Ela só lamentou ter ido sem uma sineta.  Na próxima.


Abril 22 2009

Aproveitou o dia de folga. Ele teria que trabalhar. Ficaria sem compromissos. Nem horários. Nem programas conjuntos. Ela então decidiu.

 

Foi por em prática o que já planejara.

 

Ia viajar para lá. Pela primeira vez. Entraria o ano seguinte em alto estilo. Rindo e se divertindo. E com o frio avisado e prometido nada mais adequado. Pensou. E lá se foi. Comprar o complemento procedente.

Ficava no andar de cima. Os hemisférios têm lá suas diferenças. E nada mais combinado que o andar de cima. Para os que se dirigiam para a linha de cima. Até riu do próprio pensamento. Ultimamente estava se sentindo assim. Criativa e leve.

 

Subiu. Escolheu. Com calma e severa observação. Dos detalhes. Não queria sustos quando lá chegasse. Sempre detestou sustos. Seja qual for. Por isso sempre programava tudo em detalhes. Era precavida. Prudente.

 

Experimentou a muitas. E mais outras. Por fim se decidiu. Pela primeira. E desceu as escadas. Olhou mais alguns lançamentos. Deixou a bolsa na cadeira e foi ver mais novidades rapidamente. O espaço estava cheio. Não sabia se todas iriam para outro hemisfério. Mas seja lá onde fossem, iam a caráter. A rigor. Porque as sacolas estavam lotadas. E as filas enormes.

 

Enfim. Enfrentou a fila. Sem reclamação. Estava satisfeita com a escolha. E toda fila um dia acaba. Chegou a vez dela.

 

Foi pagar. Estranhou o zíper aberto. Da bolsa. Mas desconsiderou. Pôs a mão para pegar a carteira. Não. Gritou. Não. Assim. Em alto e bom som.

 

Não podia pagar. Sumira a carteira. Gritou alto com o susto. Todos se viraram para ela. Não havia saída. Não havia carteira. Reclamou. Veio gerente. Diretora. Administradora. Vendedora. Todas assustadas. Veio segurança. Nada podia ser feito. Com o espaço lotado tudo era possível.

 

Ligou para ele. Contou chorando. Ele veio em auxílio. Imediatamente. Sabia como ela ficava angustiada. Com estas situações.  Veio carinhoso. Preocupado. Solidário.

 

E daí se iniciou  a sequência.  De cancelamentos. Disponibilizaram o telefone. Tudo cancelado. Em poucos minutos ela já estava fora do mercado financeiro.  E o mercado financeiro fora dela. Assim pensou. Numa tentativa de um chiste consigo mesma. Mas não riu.

 

Os vendedores tentaram acalmar. Constrangidos. Delicados. Optaram por um enorme desconto na compra. Mão no ombro. Alisadinhas no cabelo. Pedidos fervorosos de desculpas. Promessa de mais cuidado com o ambiente.

 

Ela só chorava. Imaginando. Tinha tanto o que fazer. Antes da viagem. E uma semana vivendo em bloqueio. Complicado. Neste mundo moderno bloquear é igual a aprisionar. Fica-se de pés e mãos atados. Já se viu assim. Por uma semana. Consolaram. São apenas cinco dias. Corajosa. A moça que veio dar este consolo.
Se olhar queimasse ela teria já um bronzeamento instantâneo. E gratuito. Sim - porque pago é que não podia ser. Ela estava bloqueada.

 

Ele se solidarizou. Foram juntos para casa.  E juntos tentaram entrar em casa. A porta emperrou. Não abria toda. Só uma parte pequena. Que não permitia que eles entrassem. Pensou. Deveria ter lido a minha conjunção astral hoje. Já mais irritada empurrou ela mesma a porta com força. Com mais força. A porta abriu de vez. Olhou para ver o que impedia a abertura.

 

Atrás da porta, meio presa e meio esmagada, estava a carteira. A carteira. A car-tei-ra.

 

Sentou no sofá chorou e riu. Não necessariamente nesta ordem. Mas sincronicamente.

 

Ele nada falou. Vai ver ficou bloqueado.

 

publicado por Lêda Rezende às 22:30

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