Blog de Lêda Rezende

Junho 17 2009

O convite chegou de repente. No começo de uma noite de muito calor - e pouca opção.

 

Convidava para o casamento dele. De repente - este virou o termo repetido. Porque as lembranças iam chegando de repente. E aos montes. Como dizia a minha avó. Só as lembranças nos comandam, menina, só as lembranças nos comandam. Ri sozinha.

 

Posso sim. Posso falar agora. Que aconteceu. Que voz tristinha. Sim. É arriscado. O período. Pode acontecer, sim. Sua mãe não vai gostar mesmo. Mas sossega. Nada vai acontecer. Alguém Cuida da juventude hormonal. Fica calmo.

 

Ainda bem. Acalmou agora. Mas faz favor. Veja se toma mais cuidado. Eu sei que é difícil. Mas a adolescência também tem mais ocupações. Além desta específica. Ainda bem que voltou a rir.

 

Pode lógico. Passa a semana aqui. Não importa se acabamos de nos mudar. Que graça tem uma casa se não for para receber os amigos. Diz a ele que pode vir. Sim.

 

Só rindo. Então vai ficar o dia todo aí. Em frente a este aquecedor. Vai ficar bem passado, isso sim. Tem razão. A temperatura aqui nem de longe está lembrando a de lá. Sei disso. Sim. Sinto saudades. Mas tinha que vir. E vim.

 

Assim. Sem muita dialética. Dialética virou foi queixo tremendo. De frio. Toma mais um. Edredom de plumas. Esse deve esquentar. Só cuida para não causar um incêndio. Com o aquecedor ligado o dia todo. Vai levar o aquecedor para o exame - também. Prometo nem vou rir mais.

 

Não nos víamos há anos. Muitos anos. Desde aquele último inverno. O do aquecedor acoplado. Ao corpo. Não sabia que ele havia sido requisitado. Soube na hora. Viera comemorar com o amigo de toda a vida. De pequenos a adultos. Mesmo distantes – sempre presentes. Nas noticias. Nas opiniões. Nos acertos. Nas profissões. Nas decisões. Nas escolhas afetivas.  

 

Nos encontramos no cortejo. Me viu. Veio feliz.  Em direção a mim. No dia exato e no momento exato. De toda aquela matrimonial confusão. Brinco perdido. Chuva sob marquise. Foco de luz nas costas. Gata assustada em sofá. Ameaça de desmaios em altar. Ele chegou. Sorrindo. Com aquele sorriso leve. Comemorativo. Abriu os braços. Não parava de me beijar, de me abraçar. Repetia meu nome mil vezes. E ria. Fiquei emocionada. Ainda bem. Que deixei este tipo de alegria plantada. Para ser colhida num reencontro.

 

Há uma certa fase da vida que as pessoas não sorriem simplesmente. Elas celebram. Comemoram. Riso tem uma outra equivalência. E quando essa equivalência desaparece e fica só o riso – muitos chamam de amadurecimento. As celebrações se recolhem. Já não há mais tanto festejo.  

 

Tem gente que já nasce com o riso amadurecido. E há os mais afortunados que o resguardam de qualquer distrofia. Às vezes amadurecer também equivale a uma distrofia. Mas enfim. Lá estava ele.

 

Cresceu belo. Forte. Saudável. Competente.  Brilhante. Mas manteve o riso comemorativo. Amadureceu sem se tornar um distrófico emocional.

 

Telefonou para fazer o convite. Fazia questão. Que lá estivéssemos. Casaria lá. Na cidade de onde vim. O trajeto se invertia. Agora nós que iríamos.

 

Tanto tempo sem voltar. Após um segundo de apnéia – escutando o convite pelo telefone – retomei.  O fôlego. O susto. A intenção. A voz.

 

Lá pode até ter brinco perdido, mas não tem chuva. Nem gata. Nem foco de luz. Nem prédio com marquise.

 

Tem sol. Tem mar. Tem cheiro de mar no começo do dia, no meio do dia e no final do dia. Tem cheiro de mar na brisa da noite, da meia noite. Tem até isso. Meia noite. Tem vista. Tem banquinhos para ver a vista. Tem coqueiro.

 

Tem paralela. Tem modelo. Tem forte. Tem ladeira. Tem uma sereia acolhedora de peito aberto. E  farol sinalizador de que está perto. Tem alta e tem baixa. Tem fita. Tem conta. Tem cor de ouro nas panelas. Tem mil molhos nas tigelas.Tem caldo. Tem lambreta. Tem até sururu. Lá tem tanto que nunca mais vi.

 

Tem a amizade que desprezou geografia. Que prestigiou afetos. Que memorizou amparo. E tudo em tão juvenis tempos. E contratempos.

 

Voltar requer sempre mais coragem que partir. Mas lá vamos nós. Outra vez sob o olhar de Manturna. Apertem os cintos. Entre céus e terras, passando pelo doce azul do mar. Uma certeza - o riso festivo se fará coro e cor. 

 

 


Junho 09 2009

 

Foi uma decisão. Daquelas que a gente toma confiante. No que faz. No que fez. Por que faz. Por que fez. Calcada em propósitos e objetivos.

 

Decidi. Não fico mais.

 

Telefonei avisando. Dispensei os ganhos protocolares. Até me surpreendi. Teve choro. Lamentação. Não esperava. Emocionada, agradeci.

 

O projeto era de boa qualidade. Assim me pareceu. A idéia inovadora. Num país em que a infância é tão banalizada – se é que esse é um termo correto – o projeto me pareceu maravilhoso. Rico em detalhes. Soberano em soluções. Por isso aceitei. Feliz. E lá fiquei por algum tempo. Também feliz.

 

Começaram pequenas alterações. Internas. Ficou parecendo que a questão passara a ser mais individualizada que socializada. Ou mais particular que social.

 

Lembrei de uma frase célebre. Da minha avó. Não poder mudar não é igual a aceitar, menina, não poder mudar não é igual a aceitar.

 

Pedi para sair.

 

Daí começa uma nova etapa.

 

Ela explicou um pouco chorosa. Mas com a delicadeza habitual. Com este documento vá à rua X e lá já estará tudo resolvido. É perto daqui. Pode sim. Vá caminhando. Nem vai sentir o calor. Será rápido.

 

Uma mocinha de cabelos louros-forçados me atendeu com um sorriso. Na rua X. Leu o documento. Séria. Explicou. Precisa de mais esse documento.

 

Junte esse com mais esse e vá até a rua Y. É pertíssimo daqui. Só três quadras acima. Sim. Uma ladeira. Fica a três paralelas daqui. Daí que você sobe as três quadras.

 

Foi de lá que lhe enviaram. Eu sabia. Erram isso a todo instante. De jeito algum.

 

Você tem que voltar lá. na rua X. E avisar que o documento precisa de mais uma assinatura. Depois do exame médico. Que por sinal é feito lá mesmo. Na rua X. Sim. De onde você veio. Mas agora é rápido. E também é só descer a ladeira. Não tem mais subida.

 

Eles que não entenderam. Ou a senhora não soube explicar. Mas tudo bem.

 

Aguarde naquela salinha. Fará o exame médico.

 

Escutei meu nome. Enfim. Atendida e liberada.

 

De novo diante da mocinha de cabelos louros-forçados.

 

Agora volte até lá. Sim. Na rua Y. Mas é rápido. E perto. Já sabe onde é. Ótimo. Suba as três quadras. Não esqueça. Avise que foi daqui que encaminhamos. Da rua X.

 

Já fez o exame então. Eles reconheceram o erro. Não falaram sobre isso. Não faz mal. Devem ter reconhecido. Enfim. Pode sentar ali. E aguardar. Não sei responder. Mas vai ver não pode. Sim. Deveriam. Mas é uma questão operacional. Vai ver fica complicado. Colocar tudo no mesmo prédio. Mas quer que anote. A sugestão. Então correto. Não anoto.

 

Veio de lá. E o pedido foi seu. Desistiu. Achou que o sentido estava se perdendo. Vai lá saber. Correto. Aguarde mais um pouco. Não se preocupe.

 

Daqui a uma hora já deve ter finalizado. Sei como é horário. Sim. E trânsito desta cidade também. Mas aguarde só mais um pouco.

 

Pode entrar. Pensou errado. Não pode ser finalizado hoje. Sei que começou há três horas. Todo o processo. Mas só poderá ser finalizado lá. Aqui está o endereço. Sim. É longe tem que ser agendado. Pode escolher o dia. De nada. Melhor ir de táxi. Sim. Não é uma região muito segura. O metro fica um pouco distante. Tem estacionamento. Mas de táxi será mais fácil. Olha lá. Se não puder ir tem que avisar. Com antecedência. Sabe que não pode se desorganizar um serviço.

 

Faria mais esta gentileza. Escreva aqui. Preencha este formulário.

 

Olhei o formulário. Era quase uma entrevista. Só que invertida. Ao contrário. Entrevista de despedida. A última pergunta era interessante. Diga o que você deseja para a Instituição. Esta. Da qual você está – voluntariamente - se desligando.

 

Sou educada. Definitivamente. Contida talvez explique melhor. Os meus sinceros votos. Certo. Só os votos. Deixa pra lá os sinceros. Depois de horas. Subindo e descendo ladeira. Indo e vindo. Entre as ruas X e Y. E num calor de trinta-e-três-graus-centígrados! Queriam os meus votos.

 

Apenas isso. Contida. Recatada. Uma dama. Suada e esgotada. Mas uma dama.

 

Escrevi. Quero que ... tenham uma boa sorte.

 

 


Junho 06 2009

Acordei hoje lembrando lá. Deste período lá.

 

Sim. Já comprei tudo. De supermercado também. Fica difícil ir ao supermercado agora. Ou falta tudo. Ou se encontra nada. Sem falar nos acessos. Que são alterados. A cidade fica muito cheia. Sim. Do mundo todo.

 

Muitos sotaques. Muitos idiomas. Uma Babel dançante. Ótimo. É verdade.

 

Um povo hospitaleiro. Disso não se discorda.

 

Acorda. Acordei já. Sim. Este ano começou mais cedo. Cada ano isso muda.

 

Começa mais cedo. E acaba mais tarde. Deve ser. É  verdade. Este circuito cada vez mais divulgado. Se pagam caro os hotéis têm esse direito. De ver da janela. Maravilha. Para eles. Para os hotéis. Até para as janelas.

 

Não escutei. Fala mais alto. Não escutei ainda. Fala mais alto ainda. Não.

 

Não consegui sair de casa. Está tudo bloqueado. Sim. E ainda tem aqueles vendedores. Isso sem falar nas cozinhas nas ruas. Parece que todas as cozinhas do mundo estão na minha rua. Tem cheiro e fumaça de todo tipo.

 

Daria para fazer uma enquete. Se alguém se interessasse. Por enquetes. Mais do que pelas frituras. Sim. Tudo aqui é frito. Muda só a cor. Mas é frito. O cheiro de fritura pode até ser tocado. Fica denso.   

 

Sim. Também pensei a mesma coisa. Achei que ia cair para dentro da sala. A porta da varanda. Que trepidação. Tive até uma confusão mental. Como se estivessem tocando aqui na sala. A noite toda. O dia todo. A porta só trepida.

 

E faz um barulhinho fino. Do metal. Do vidro. Vai lá saber. Nem sei mais.

Impossível. Se deixar aberta - arrisco uma ruptura de tímpano. Se fechar - o calor fica insuportável. Sim. Tem que ligar o ar condicionado. O tempo todo.

 

Mas daí a trepidação parece que aumenta. Fosse eu Física diria que tem um novo efeito.  Aqui. O efeito tampão. Ou efeito sucção. Ou efeito dobrado. De tudo isso ao mesmo tempo. Sei lá. Também não sou Física. Só está me dando desespero. Porque se fecha e liga o ar - parece que a trepidação aumenta. E o cheiro das frituras - entram. Sei lá por onde. Só entram e ficam. Aqui dentro. Perene.

 

O telefone. Não escutei. Não dá para escutar mesmo. Nada além do ritmo. E dos convites. Milhões de vezes repetidos. Tira o pé do chão, galera. Se realmente obedecessem tantas vezes quanto solicitados - teríamos um novo espaço. Aéreo. Levitação. Nem indiano conseguiria. Tantos.  

 

Há quatro dias. Sem parar. Devem parar. Mas não aqui. Aqui nem bem passa um, já vem chegando outro. E a ordem prossegue. Tira o pé do chão, galera.

 

Você queria descer a ladeira. Para ver de perto. Ver o que exatamente.

 

Porque se não souber tirar o pé do chão - corre risco. De ficar com o pé no chão. Por uns dois anos. Com fraturas. Cominutivas. Nem pensar.

 

Não me diga. E ele correu. Por isso acabou no hospital. Dizem que não se pode correr. Tem que ficar parado. Procurando um cantinho. Para deixar passar a onda. Que onda. Ou melhor, que passar. Não passa. Só nas Cinzas. E cinzas de todo o tipo.

 

Tira o pé do chão, galera. Pela milionésima vez. Em quinze minutos.

 

PeloamordeDeus. Tirem logo esse raio de pé do chão.  A voz era de homem. Agora mudou. É de mulher. Não de homem. Não. De mulher. Não importa. Só a ordem importa.

 

Porta. Acho que vai quebrar a vidraça. Tem muita trepidação. Será que alguma vez me livro disso. Vou pedir para o Universo. Alguém tem que me ajudar. A tirar o pé – fora daqui.

 

Que silêncio. Absoluto. E os passarinhos mais ousados - cantando o seu refrão. Reconheci. É um bem-te-vi. A brisa está leve. Sim. Vou tomar um pouco de sol. Dar um mergulhinho. Está tão lindo o dia. E a cidade tão calada. Há apenas o som forte - do silêncio.

 

Aqui é só em determinado lugar. Ou pré-determinado. Estabelecido. Tem Lugar para isso. Nem sei se aqui mandam tirar o pé do chão. Vai quem gosta. E só quem gosta vai. Vai-Vai.

 

Liguei a televisão. No canal que retransmite de lá. A mocinha gritou no microfone. Tira o pé do chão, galera.  

 

Sorri. Leve. Solta. Voltamos para o sol. E para o nosso adorado silêncio – optativo.  

 

Com os pés – relaxadinhos – no chão.

    

 


Maio 22 2009

Decidira assim. De repente. Abriria uma vaga na rotina. Até riu depois que assim nomeou.

 

Toda arrumada para sair. Desistiu. Voltou. Nunca na vida tinha feito algo sequer parecido. Era rigorosa em sua rotina. Não faltava ao trabalho. Não chegava atrasada. Uma metódica compulsiva. Vai lá saber o que lhe dera naquele dia. Mas decidiu por acatar a sua vontade. Que seja feita, então.

 

Ficaria o dia em casa.

 

Telefonou para o escritório. A faxineira atendeu. Avisou que não iria. Estava adoentada. Riu de novo. Estava mesmo. Doente de vontade de ficar em casa. O marido sairia logo depois. Tiraria o dia para si. E dentro da sua própria casa. Quando a diarista chegasse, pediria para não incomodá-la.

 

Que fizesse de conta que ela não estava ali.

 

Assistiria a um filme. Dormiria mais um pouco. Tinha que organizar uns documentos. Faria isto no final do dia. Quando o tédio ou a culpa ameaçassem substituir o prazer do ócio. Ai uma tarefa seria útil. Na casa tinha um pequeno escritório. Embaixo da escada. Com um pequeno sofá.

 

Colocou um dos seus clássicos preferidos bem baixinho. Tirou a roupa formal e deitou. Recurvada sobre si mesma, cobriu-se com uma manta. E começou a ler um livro.

 

Escutou uma voz. Era a voz da diarista. Falava com alguém ao telefone. E dizia que já estava tudo certo. Sairia sim. No final do mês. Não. Não tinha avisado ainda. Tudo de última hora. Falou assim. Tudo de última hora. Não queria mais. Trabalhar em lugar com terraços e jardins. Lá para onde ia era um apartamento. Nem vasinho de planta tinha. Só as salas necessárias e vazias. Riu. Fez algum outro comentário que ela não entendeu. E desligou.

 

Se sentiu espiã em sua própria casa.

 

Nem bem pensou isso e escutou outra voz. Também ao telefone. Era a voz do marido. Combinava algo. A voz estava suave. Gentil. Combinava um encontro. No final da tarde. Sim. No de sempre. Eu sei que você adora. Nada de última hora. Falou assim. Nada de última hora. Outro carinhoso para você. Riu. Fez algum outro comentário que ela não entendeu. E desligou.

 

O no de sempre a fez sentir um frio. Congelou. Pior que o outro carinhoso. Pior que a tal ausência do vasinho de planta. Tudo ou nada - de última hora. Quase pegou um agasalho que estava pendurado num cabide junto à porta.

Mas ficou com uma dúvida. Entre pegar o agasalho. E se enrolar. Ou pegar dois agasalhos. Um para cada um. A diarista. E ele. Porque eles é que ficariam congelados. Quando a vissem.

 

Optou pelo efeito assombração. Saiu debaixo da escada.

 

Falou um bom dia. Atrás dela. Da diarista. Ela se virou. Pele pálida. Parecia cristalizada. Avisou calmamente. Já está liberada. Pode ir.

Ela se desculpou. Chorou. Disse que estava arrependida. Que adorava ela. Que adorava trabalhar para ela. Que tinha sido um mal entendido. Perdão. Coisas de imaturidade. Nada resolveu.

 Liberou a diarista lecorbusierista.

 

Subiu as escadas.

 

Falou um bom dia. Atrás dele. Do marido. Ele se virou. Pele pálida. Parecia cristalizado. Avisou calmamente. Já está liberado. Pode ir.

Ele se desculpou. Chorou. Disse que estava arrependido. Que adorava ela. Que adorava morar com ela. Que tinha sido um mal entendido. Perdão. Coisas de imaturidade. Nada resolveu.

 

Liberou o marido dongiovannesco.

 

Tomou mais uma decisão. Telefonou para o escritório. Confessou a mentira que inventara. Ele a liberou. Deste e de todos os dias futuros. Diferente dos outros libertados, disse apenas obrigada. Passaria lá a qualquer hora para os acertos.

 

Abriu os olhos. Ficou paralisada. Depois deu um pulo. O marido estava diante dela. Arrumado para sair. Até riu quando a viu assustada daquele jeito. Parecia um sono tão bom. Não quis lhe acordar. Desculpe se assustei.

Devia ter subido. Lógico que não iria me incomodar. E ainda ficaríamos um pouco mais juntinhos. Fez bem em ficar em casa. Você anda muito cansada.

 

Pegou o livro que estava caido no chão. Deu um beijo nela. Desejou bom dia, querida. Jantamos fora hoje, não esqueça. Já fiz as reservas. Nada de última hora. E no de sempre.

 

Passou um tempo até compreender. Depois sorriu. Muito feliz.

 

Da janela cumprimentou a diarista que, cantarolando, regava as plantas do jardim.

 

 


Maio 16 2009

Conversara com ela muitos anos - pelo telefone. Não se viam. Só se escutavam. Por anos e anos. Um em cada Estado.

 

Eram colegas de escola. De sala. De brincadeiras. Falavam muitos idiomas. Inclusive – e principalmente - o pessoal. Este sim. Não se faz necessário quem ensine. Cada um já porta o seu. E o expõe ao entendedor certo. Assim é a vida. Pela vida a fora.

 

Os pais mudaram-se. Ela se foi.

 

Depois de algum tempo, um dia ela telefonou. Procurando por ele. Com sua vozinha de menina. Ele atendeu. Ficaram horas conversando. Falando. Escutando. Rindo. Às vezes sérios.

 

Conversa de infância é aquela que não falta assunto. Nunca tem ponto final. Não tem polêmica. É um discorrer suave sobre o dia-a-dia. Com leveza. Só quem entende bem o que é a vida pode ter esta leveza.

 

Depois desse primeiro dia - nunca mais deixaram de se falar.

 

Falaram por todo o resto da infância. Ele acompanhou as mudanças dela.

 

As dificuldades na escola nova. A timidez para fazer novos amigos. A falta de interesse pela nova cidade. Telefonava quase que semanalmente. E contava sua rotina. Para ela parecia ser um período menos alegre. Não se adaptava. Sentia saudades do que deixara. Dos colegas. Das professoras. Da rua onde morava. Tentava encobrir tudo isso com os telefonemas.  

 

Ele sofreu um acidente. Teve uma fratura grave no braço. Telefonou para ela contando. Com sua voz de menino. E sua dor de adulto. Ela acompanhou. Neste período telefonava quase todos os dias.  Acompanhou a pré-cirurgia. O pós- operatório. A paralisia temporária. Foram tempos também difíceis para ele. Mas escutaram - nas vozinhas um do outro - toda a solidariedade possível. Até a cura. Total.

 

Veio a adolescência. Mudanças. Namoricos. Festas. Cada um relatando as suas descobertas. Os novos amores. As novas dores. Os novos desamores.

 

Ela sofreu o primeiro impacto. O divórcio dos pais. Toda uma mudança de vida. Mudou de Estado novamente. De escola mais uma vez. Sofreu. Chorou. Ligava com mais frequência. Ele sofreu junto com ela. Compreendeu todo o doloroso processo. Amparou. Escutou. Até opinou.

 

Depois foi a vez dele. Os pais dele se divorciaram. Ela escutou. Entendeu. Esclareceu. Ele se sentiu também amparado. Até mais facilmente decodificado. Ela, já conhecedora do percurso, avisava das pedras.

 

Numa dessas mudanças veio para a mesma cidade que ele também iria morar. Ele completaria seu curso lá. Ela também. Nem acreditaram. Iriam se rever. Depois de muitos, muitos anos. Um encontro. O estilo de cada um diante um do outro.

 

Planejaram. Pelo telefone. Marcaram o encontro. Ansiosos.

 

Impossível mensurar o olhar de alguém. Muito menos a emoção. Ou a surpresa. Se despediram aos cinco anos. Se reencontraram aos dezessete anos. Outras pessoas. Ou as mesmas pessoas. Vai lá saber. O que muda. O que conserva.

 

Há o que o tempo preserva - apesar de. E há o que o tempo consome – apesar de. Cresceram se escutando. Souberam das perdas e ganhos – um do outro. Riram. Choraram. Acertaram. Erraram. Revelaram. Ocultaram. Tinham segredos e mistérios.  Nunca se separaram. Pela voz. Sempre se mantiveram ligados. Por um fio.

 

Se olharam. Se tocaram.  Se enxergaram. Comentaram da altura. Incrível.

 

Na voz a tonalidade muda. Mas não se percebe tanto. É no corpo que o tempo faz seu registro. Na transição de um corpo de criança para um corpo de adulto. Na pele. Nos cabelos. Nos dentes. Nas mãos. Nas unhas. É ai que toda uma história se inscreve.  É ai que a história de cada um se revela.

 

Resta saber ler este alfabeto particular. Eles souberam. Foi o que pareceu. De imediato. Sorriram mais que falaram. Não se sentiram tímidos. Até comentaram isso. Algo como se fosse ontem.

 

Mas lembro de uma observação dele. Um dia comentou.

 

Quando falo olhando para ela de vez em quando sinto um certo estranhamento. Como se ela não fosse ela.  Algumas vezes quando ela fala, eu me viro. Para o outro lado. De forma que não a veja. Só escute a voz dela. Daí retomo. Sim, é ela. E posso voltar a olhá-la. Já a vi também me escutar sem me olhar. Deve sentir o mesmo.

 

Nunca deixaram de se falar. Mesmo hoje adultos e casados. Cada um com seu parceiro.

 

Mas algumas vezes deixaram de se ver. Escutar ficou mais próximo - que olhar.

 

 


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