Blog de Lêda Rezende

Junho 09 2009

 

Foi uma decisão. Daquelas que a gente toma confiante. No que faz. No que fez. Por que faz. Por que fez. Calcada em propósitos e objetivos.

 

Decidi. Não fico mais.

 

Telefonei avisando. Dispensei os ganhos protocolares. Até me surpreendi. Teve choro. Lamentação. Não esperava. Emocionada, agradeci.

 

O projeto era de boa qualidade. Assim me pareceu. A idéia inovadora. Num país em que a infância é tão banalizada – se é que esse é um termo correto – o projeto me pareceu maravilhoso. Rico em detalhes. Soberano em soluções. Por isso aceitei. Feliz. E lá fiquei por algum tempo. Também feliz.

 

Começaram pequenas alterações. Internas. Ficou parecendo que a questão passara a ser mais individualizada que socializada. Ou mais particular que social.

 

Lembrei de uma frase célebre. Da minha avó. Não poder mudar não é igual a aceitar, menina, não poder mudar não é igual a aceitar.

 

Pedi para sair.

 

Daí começa uma nova etapa.

 

Ela explicou um pouco chorosa. Mas com a delicadeza habitual. Com este documento vá à rua X e lá já estará tudo resolvido. É perto daqui. Pode sim. Vá caminhando. Nem vai sentir o calor. Será rápido.

 

Uma mocinha de cabelos louros-forçados me atendeu com um sorriso. Na rua X. Leu o documento. Séria. Explicou. Precisa de mais esse documento.

 

Junte esse com mais esse e vá até a rua Y. É pertíssimo daqui. Só três quadras acima. Sim. Uma ladeira. Fica a três paralelas daqui. Daí que você sobe as três quadras.

 

Foi de lá que lhe enviaram. Eu sabia. Erram isso a todo instante. De jeito algum.

 

Você tem que voltar lá. na rua X. E avisar que o documento precisa de mais uma assinatura. Depois do exame médico. Que por sinal é feito lá mesmo. Na rua X. Sim. De onde você veio. Mas agora é rápido. E também é só descer a ladeira. Não tem mais subida.

 

Eles que não entenderam. Ou a senhora não soube explicar. Mas tudo bem.

 

Aguarde naquela salinha. Fará o exame médico.

 

Escutei meu nome. Enfim. Atendida e liberada.

 

De novo diante da mocinha de cabelos louros-forçados.

 

Agora volte até lá. Sim. Na rua Y. Mas é rápido. E perto. Já sabe onde é. Ótimo. Suba as três quadras. Não esqueça. Avise que foi daqui que encaminhamos. Da rua X.

 

Já fez o exame então. Eles reconheceram o erro. Não falaram sobre isso. Não faz mal. Devem ter reconhecido. Enfim. Pode sentar ali. E aguardar. Não sei responder. Mas vai ver não pode. Sim. Deveriam. Mas é uma questão operacional. Vai ver fica complicado. Colocar tudo no mesmo prédio. Mas quer que anote. A sugestão. Então correto. Não anoto.

 

Veio de lá. E o pedido foi seu. Desistiu. Achou que o sentido estava se perdendo. Vai lá saber. Correto. Aguarde mais um pouco. Não se preocupe.

 

Daqui a uma hora já deve ter finalizado. Sei como é horário. Sim. E trânsito desta cidade também. Mas aguarde só mais um pouco.

 

Pode entrar. Pensou errado. Não pode ser finalizado hoje. Sei que começou há três horas. Todo o processo. Mas só poderá ser finalizado lá. Aqui está o endereço. Sim. É longe tem que ser agendado. Pode escolher o dia. De nada. Melhor ir de táxi. Sim. Não é uma região muito segura. O metro fica um pouco distante. Tem estacionamento. Mas de táxi será mais fácil. Olha lá. Se não puder ir tem que avisar. Com antecedência. Sabe que não pode se desorganizar um serviço.

 

Faria mais esta gentileza. Escreva aqui. Preencha este formulário.

 

Olhei o formulário. Era quase uma entrevista. Só que invertida. Ao contrário. Entrevista de despedida. A última pergunta era interessante. Diga o que você deseja para a Instituição. Esta. Da qual você está – voluntariamente - se desligando.

 

Sou educada. Definitivamente. Contida talvez explique melhor. Os meus sinceros votos. Certo. Só os votos. Deixa pra lá os sinceros. Depois de horas. Subindo e descendo ladeira. Indo e vindo. Entre as ruas X e Y. E num calor de trinta-e-três-graus-centígrados! Queriam os meus votos.

 

Apenas isso. Contida. Recatada. Uma dama. Suada e esgotada. Mas uma dama.

 

Escrevi. Quero que ... tenham uma boa sorte.

 

 


Junho 09 2009

De repente chegou a mensagem. Uma longa mensagem. Depois de muito tempo. Nem acreditei quando vi o nome no remetente. Ela estava ali. Se despojando. Não se expondo- mais se impondo. Relatando o silêncio. Muito mais que as palavras. Mas também não poupando palavras para falar do silêncio. Não se justificava. Se diagnosticava. Foi o que me pareceu.

 

Passei dias lendo e relendo.

 

Deve ser assim quando não se sabe as respostas. Muito menos as perguntas.

 

Como dizia a minha avó. As perguntas têm sempre mais conteúdo que as respostas, menina, as perguntas têm sempre mais conteúdo que as respostas.

 

E por isso fiquei assim. Só lendo. Relendo.

 

Contava que se afastara dos mais próximos e privilegiara os mais formais.

 

Os mais distantes. Buscava quem não via há dez anos. Mas não queria conversar com quem se despedira ontem.  

 

Fiquei com uma dúvida. Nunca os mais afastados – ou formais – mudarão de posição. Será assim. Posição estagnada. Ou será que vai se girando. Cada vez que a proximidade vence – passa-se a diante. Isso também não combina com a ela que eu conheci.

 

Continuei. Fez outros relatos. Sobre o choro fácil. Desautorizado, mas dominante. Sobre o sono difícil. Autorizado, mas desobediente. Sobre as condutas idealizadas. Banalizadas, mas sequeladas.

 

Fiquei eu estagnada. Nem próxima. Nem distante. Nem há dez anos. Nem ontem à noite. Por muitos dias. Nem sei mais quantos. Acho que fiquei projetada. Vai lá saber. Vai ver um silêncio puxa outro. E a memória não perdoa. Lembrei a frase do Francês. Quando a falta é muito grande as palavras também faltam. Devia ser isso. Faz tempo que não discuto com o Francês. Tenho me identificado com as idéias dele. Nunca pensei que isso pudesse acontecer. Eu concordar com as idéias dele. Do Frances. Mas enfim.

 

Lembrei de outra amiga. Também recém retornada. Nova sincronicidade. Mas esta me desejou serenidade. Vai ver alcancei. Ela deve ter me desejado com muita fé.

 

Ela é linda. Tem um sorriso lindo. Cabelos mais lindos ainda. Um estilo doce. Afetuoso. A voz dela só me traz vontade de sorrir. É uma voz sincera. Até pueril. Não tem voz de adulto desconfiado. Tem voz de criança crédula. Mas com a profundidade de quem já sabe. Ou de quem já duvida. Só de pensar – escuto. O jeito dela de falar meu nome. Rindo. Meu nome sempre vinha acompanhado de um riso. Com sotaque. Transmite segurança. Mas nem por isso é alheia. Aos sentimentos cruéis da humanidade. Reconhece os limites. Percebe as distorções dos limites. Inteligente. Mente interpretativa. Talvez esta a melhor definição dela. Possuidora de uma mente interpretativa. E refinada. Muito refinada.

 

Lembro das noites e noites que passamos nos comunicando. Com letras. Sem voz. Sem imagem. Diminuindo distâncias. Uma em cada exílio. Tentando fazer dele – do nosso exílio - o nativo. O natural. Sem raízes – mas com caules. Algo por aí. O monitor deveria se assustar de tantas risadas. Pela pobreza das nossas supostas metáforas. Ríamos e chorávamos. A nosso favor e contra nós.

 

E quando ela vinha. Saia do exílio dela e vinha até o nosso. Ele até ia dormir.

 

Sabia que a conversa seria longa. In vino veritas. Sentadas na cozinha. O vinho belo, formoso, sofisticado. Em nossa frente. Depois acabado, destituído, garrafa. No lixo. No intervalo - falávamos. Muito. Entre risos e risos. A veritas sempre vencia. 

 

Não posso. Imaginá-la chorando. Insone. Incrédula. Solitária. Racional. Escolhendo os distantes. Se distanciando dos próximos. Se aproximando dos rótulos. Guardando bulas. Escondendo sinapses. Alternando químicas. Seqüenciando idéias. Afastando atos. Colecionando saudades. Vivendo de social. Ou socialmente vivendo.  

 

Leio o aviso. Da distância concedida. Proibido particularidades. Só amenidades. Não chegue perto. Pode falar daí mesmo. Do portão. Cuidado. Ouvido bravo.

 

Mas quero que saiba. Adorei. Fiquei feliz. Com a proximidade distante. Ou com a distância aproximada. Tanto faz. Não importa. Importa é que podemos continuar. Seja onde for o tal portão.

 

Assim é a amizade.

 

Quase beijei o mensageiro.

 

 


Junho 06 2009

Acordei hoje lembrando lá. Deste período lá.

 

Sim. Já comprei tudo. De supermercado também. Fica difícil ir ao supermercado agora. Ou falta tudo. Ou se encontra nada. Sem falar nos acessos. Que são alterados. A cidade fica muito cheia. Sim. Do mundo todo.

 

Muitos sotaques. Muitos idiomas. Uma Babel dançante. Ótimo. É verdade.

 

Um povo hospitaleiro. Disso não se discorda.

 

Acorda. Acordei já. Sim. Este ano começou mais cedo. Cada ano isso muda.

 

Começa mais cedo. E acaba mais tarde. Deve ser. É  verdade. Este circuito cada vez mais divulgado. Se pagam caro os hotéis têm esse direito. De ver da janela. Maravilha. Para eles. Para os hotéis. Até para as janelas.

 

Não escutei. Fala mais alto. Não escutei ainda. Fala mais alto ainda. Não.

 

Não consegui sair de casa. Está tudo bloqueado. Sim. E ainda tem aqueles vendedores. Isso sem falar nas cozinhas nas ruas. Parece que todas as cozinhas do mundo estão na minha rua. Tem cheiro e fumaça de todo tipo.

 

Daria para fazer uma enquete. Se alguém se interessasse. Por enquetes. Mais do que pelas frituras. Sim. Tudo aqui é frito. Muda só a cor. Mas é frito. O cheiro de fritura pode até ser tocado. Fica denso.   

 

Sim. Também pensei a mesma coisa. Achei que ia cair para dentro da sala. A porta da varanda. Que trepidação. Tive até uma confusão mental. Como se estivessem tocando aqui na sala. A noite toda. O dia todo. A porta só trepida.

 

E faz um barulhinho fino. Do metal. Do vidro. Vai lá saber. Nem sei mais.

Impossível. Se deixar aberta - arrisco uma ruptura de tímpano. Se fechar - o calor fica insuportável. Sim. Tem que ligar o ar condicionado. O tempo todo.

 

Mas daí a trepidação parece que aumenta. Fosse eu Física diria que tem um novo efeito.  Aqui. O efeito tampão. Ou efeito sucção. Ou efeito dobrado. De tudo isso ao mesmo tempo. Sei lá. Também não sou Física. Só está me dando desespero. Porque se fecha e liga o ar - parece que a trepidação aumenta. E o cheiro das frituras - entram. Sei lá por onde. Só entram e ficam. Aqui dentro. Perene.

 

O telefone. Não escutei. Não dá para escutar mesmo. Nada além do ritmo. E dos convites. Milhões de vezes repetidos. Tira o pé do chão, galera. Se realmente obedecessem tantas vezes quanto solicitados - teríamos um novo espaço. Aéreo. Levitação. Nem indiano conseguiria. Tantos.  

 

Há quatro dias. Sem parar. Devem parar. Mas não aqui. Aqui nem bem passa um, já vem chegando outro. E a ordem prossegue. Tira o pé do chão, galera.

 

Você queria descer a ladeira. Para ver de perto. Ver o que exatamente.

 

Porque se não souber tirar o pé do chão - corre risco. De ficar com o pé no chão. Por uns dois anos. Com fraturas. Cominutivas. Nem pensar.

 

Não me diga. E ele correu. Por isso acabou no hospital. Dizem que não se pode correr. Tem que ficar parado. Procurando um cantinho. Para deixar passar a onda. Que onda. Ou melhor, que passar. Não passa. Só nas Cinzas. E cinzas de todo o tipo.

 

Tira o pé do chão, galera. Pela milionésima vez. Em quinze minutos.

 

PeloamordeDeus. Tirem logo esse raio de pé do chão.  A voz era de homem. Agora mudou. É de mulher. Não de homem. Não. De mulher. Não importa. Só a ordem importa.

 

Porta. Acho que vai quebrar a vidraça. Tem muita trepidação. Será que alguma vez me livro disso. Vou pedir para o Universo. Alguém tem que me ajudar. A tirar o pé – fora daqui.

 

Que silêncio. Absoluto. E os passarinhos mais ousados - cantando o seu refrão. Reconheci. É um bem-te-vi. A brisa está leve. Sim. Vou tomar um pouco de sol. Dar um mergulhinho. Está tão lindo o dia. E a cidade tão calada. Há apenas o som forte - do silêncio.

 

Aqui é só em determinado lugar. Ou pré-determinado. Estabelecido. Tem Lugar para isso. Nem sei se aqui mandam tirar o pé do chão. Vai quem gosta. E só quem gosta vai. Vai-Vai.

 

Liguei a televisão. No canal que retransmite de lá. A mocinha gritou no microfone. Tira o pé do chão, galera.  

 

Sorri. Leve. Solta. Voltamos para o sol. E para o nosso adorado silêncio – optativo.  

 

Com os pés – relaxadinhos – no chão.

    

 


Maio 30 2009

Acordara assim. Plena de novas idéias. Ou talvez esvaziada das antigas. Não sabia ao certo. Mas sempre acolheu bem as incertezas. São ótimas conselheiras.

 

Avisou. Ou ameaçou. Vou mudar tudo. Nada mais de escutar. Chega de Filosofia. Teoria. Falação. Ia mudar até de endereço. Fazia gracejos. Vou colocar uma placa. Saiu. Não sabe se volta.

 

Surgiu uma alternativa. Lembrou da amiga. Dizia que ela adorava uma alternativa. Cada vez que escolhia uma alternativa - lembrava da amiga. Ou vai ver era o contrário. Cada vez que lembrava da amiga - escolhia uma alternativa.  Muitas vezes a ordem certa é a inversa. Justamente a inversa.

 

Mas acaba-se entendendo o contrário.

 

Acordou neste dia pensando nisso. Num comentário que escutara.

 

Comentaram que precisavam de uma funcionária. Achou esse título muito interessante. Nunca tinha sido uma funcionária. Aliás, nunca tinha feito uma entrevista formal. Destas de emprego. Na sua profissão não era imprescindível. Ninguém ganhava pela simpatia. Ou pela intenção. Só pelos conhecimentos. E as entrevistas eram quase provas. O que menos se fazia eram perguntas de cabeçalho. Mas não faltavam as de rodapé. Assim que ela entendia um contrato. De trabalho.

 

Mas enfim. Criou coragem e agendou a entrevista.

 

Passou um tempo escolhendo a roupa. Achou que estava demais. Achou que estava de menos. Revirou. Experimentou. Tirou. Trocou. Riu. Duas montanhas de roupa sobre a cama depois - e já estava pronta. Informal. Elegante. Despojada. Ar de desinteressada. Não queria parecer que estava com muita sede. Nem que o pote era tão importante. Deixou a sede e o pote para depois. Saiu.

 

Mandaram subir e aguardar. A sala era ampla. Um ar condicionado deixava o ambiente com jeito de outono daquela grande cidade. Sentou numa cadeira confortável. Giratória. Foi em meio ao giratório que ele entrou. Ela freou a cadeira. Meio sem graça. Mas ainda fingindo que nada tinha que ver. Nem com a sede nem com o pote.

 

Ele sentou em frente. Um tampo de vidro os separava. Deu uma olhada. Nele. Achou bonito. Cabelos grisalhos - rosto jovem. Mãos fortes - gestual delicado. Olhar sério - expressão tranqüila. Voz firme - sonoridade agradável.  Ele começou com as perguntas. Deviam ser as de praxe. As tais de cabeçalho. A primeira ela já respondeu entre um sim e um não. A segunda ela respondeu que concordava com a primeira parte. E assim foi. Na última – ele avisou que seria a última – ela sorriu. Sim. Poderia começar de imediato.

 

Começaria no dia seguinte. Pela manhã.

 

Saiu de lá feliz. Nunca tinha feito nada parecido. Sua vida profissional era o caminho oposto. Mas aprendeu algo. Aprendeu que se pode fazer o que quiser. Na vida a fora. Ou pela vida afora. Lamentou pelos menos afoitos.

 

Ficou muito feliz. Na volta para casa contou a eles. Riram muito. Acharam ótimo. Contou para ela. Não gostou. Achou que se minimizava.

 

Concordou com eles. Manteve firme a decisão.

 

No dia seguinte chegou cedo. Ao tal novo local. Ele estava lá. Esperando por ela. Apresentou aos outros funcionários. Ficaram surpresos. Acharam que ela não era o que falava. Não entendiam a troca da profissão. Ou o possível abandono da profissão. Estavam mais preocupados com a ordem. Do que curiosos com a desordem.

 

Ele orientou. Organizou a forma de começar - a trabalhar. Foi explicando em pequenos passos.  Ela entendendo em largos passos.

 

Com o tempo ficaram mais próximos. Conversavam sempre que podiam. Descobriram muito em comum. De música a livros. De filmes a sonhos. Sem contar as idéias. E o humor. O trabalho ficou agradável. Aprendera. Tivera seu primeiro sucesso. Deu até pulinhos de alegria. Ganhou um abraço dele.

 

Ficou lá por um ano. Depois retomou. Do Lugar de onde saíra. Retomou sua prática de graduação. Trocou a placa. Esta avisava. Voltei. Ele continuou. No cargo. Na função.

 

Hoje eles comemoram. O entrevistador. E a entrevistada. Oito anos. Mais precisamente - oito anos e três meses. De casados.

 

 


Maio 26 2009

Seria a primeira vez que falaria em público. Um caso clínico. A exposição de uma experiência - num encontro cientifico.  Complicado. O caso por certo. Mas nem a metade.  Não pelo caso. Nem pelo clinico. Mas por sua timidez.

 

Isso sim. A maior complicação.

 

Mas decidiu que o faria. Já não era sem tempo. Repetia sempre. O que mais gostava na vida. Uma pilastra. Para ficar atrás dela. Da pilastra. Mas desta vez iria enfrentar. Estava decidida. Isso tinha que acabar. Não ela. A pilastra.

 

Mas isso ainda não era o pior. Faria uma apresentação. Num país estrangeiro. Com tradução simultânea para quatro idiomas. Pensou. No quanto era exagerada. Vivia enfiada atrás de uma pilastra. Anos e anos. E agora iria sair de lá para uma tradução simultânea.

 

Com as amigas fez mil gracejos. E se perdesse a voz. E se esquecesse os óculos. E se tropeçasse na hora de subir no tablado. E se trocasse as folhas do papel. E se lesse na ordem errada. E se gaguejasse. Não faltaram se. Não faltaram suposições trágicas.

 

Sempre agia assim. Quando a tensão aumentava – fazia gracinhas. Era a forma de se equalizar. Ao menos assim dizia. Vai lá saber. As mil formas de uma emoção se manifestar. Ou se ocultar.

 

Foi para o aeroporto. Entrou no avião. Tremeu. Não era mais uma idéia. O ato já começava a se costurar. Assim ficou.

 

Silenciosa. E tensa. No vôo de ida.

 

Mas continuava firme. Iria apresentar.

 

Uma amiga fora junto. Também da mesma área profissional. Mas optara por ser apenas platéia. Sábia. Já a invejou desde o instante que colocou o cinto. No vôo. Mas calou. Nada comentou.

 

Desceu do avião. A cidade linda. Belas ruas. Belas avenidas. Pensou. Onde venderia uma pilastra. Todo o reino por uma pilastra. Mas também calou. Nada comentou.

 

Sempre se esquece de um mínimo talvez. Uma vez uma decisão tomada, uma vez efetivada - não se tem por onde sair. Rezou até por uma fatalidade. Depois se arrependeu. Pediu perdão. Desculpas. Perdão de novo. E em quatro idiomas. Achou que já tinha se envolvido em tragédia demais. Não precisava de mais cooperação. Mesmo sendo divina.

 

Fez a tarefa. A da vaidade. Cuidou dos cabelos. Escolheu a roupa. A amiga ajudou. Solidarizou. Contemporizou. Tudo que uma amiga faz nestas horas. Inclusive grifar que a platéia estaria lotada. Interessante. Pensou. Mas lá se foi. Escutou o nome dela. Subiu no pequeno tablado. Sentou. Puxou para perto o microfone. Por um milésimo de segundo invocou o além. O aquém. Encerrou no amém.

 

Iniciou a sua fala. Começou a ler. Não reconheceu a própria voz. Parecia uma soprano. Gripada. Chegou a bendita segunda página. Era um total de seis. Na segunda já reconheceu. A própria voz. Daí em diante já era ela. Bem. Mais ou menos. Sempre tinha uma quedinha aqui ou ali. No tom da voz.

 

Acabou. Vieram as perguntas. Respondeu. O relato foi aplaudido. A construção teórica elogiada. Alguém comentou que ela era bem desenvolta.

 

Quase riu. Não poderia dizer que respirou. Isso não conseguira desde a primeira até a tal sexta página. Mas deve ter dado um semi-gemido. Foi o que escutou. Pelo microfone.  

 

Ia sair da sala quando alguém a chamou. Era a tradutora. A mocinha que ficava lá em cima. Num quadradinho com vidro. Com fone de ouvido. Se surpreendeu. Sempre acreditou que elas fossem figuras míticas. Porque nunca viu uma só delas ao vivo. A mocinha riu com a observação. E foi logo dizendo. Sua palestra foi o melhor que teve. Até agora. Desci para lhe dizer isso. Mas você estava tão nervosa. Eu também fiquei nervosa. E quando você falava mais fino - eu também traduzia com minha voz fina. Nunca isso me aconteceu antes. Mas tudo ficou normal depois. Da segunda página em diante. A sua voz - e a minha.

 

Ela conseguiu respirar. Fez uma inspiração forte. Sentiu alvéolo por alvéolo.

 

Decidiu. Explanação só a partir da segunda página. Estava no intervalo e foram tomar um café irlandês. Na cafeteria bem em frente. A mocinha mítica comentou - deveria ter tomado antes. Riram. Muito.

 

Tentar vencer a si próprio é sempre a maior das batalhas. Achou que conseguira. Riu. Na próxima apresentação – concluiu – vou fazer antes um curso. De canto lírico. Riu de novo.

 

Silenciosa. E feliz. No vôo de volta. 

 

 

 


Maio 16 2009

Conversara com ela muitos anos - pelo telefone. Não se viam. Só se escutavam. Por anos e anos. Um em cada Estado.

 

Eram colegas de escola. De sala. De brincadeiras. Falavam muitos idiomas. Inclusive – e principalmente - o pessoal. Este sim. Não se faz necessário quem ensine. Cada um já porta o seu. E o expõe ao entendedor certo. Assim é a vida. Pela vida a fora.

 

Os pais mudaram-se. Ela se foi.

 

Depois de algum tempo, um dia ela telefonou. Procurando por ele. Com sua vozinha de menina. Ele atendeu. Ficaram horas conversando. Falando. Escutando. Rindo. Às vezes sérios.

 

Conversa de infância é aquela que não falta assunto. Nunca tem ponto final. Não tem polêmica. É um discorrer suave sobre o dia-a-dia. Com leveza. Só quem entende bem o que é a vida pode ter esta leveza.

 

Depois desse primeiro dia - nunca mais deixaram de se falar.

 

Falaram por todo o resto da infância. Ele acompanhou as mudanças dela.

 

As dificuldades na escola nova. A timidez para fazer novos amigos. A falta de interesse pela nova cidade. Telefonava quase que semanalmente. E contava sua rotina. Para ela parecia ser um período menos alegre. Não se adaptava. Sentia saudades do que deixara. Dos colegas. Das professoras. Da rua onde morava. Tentava encobrir tudo isso com os telefonemas.  

 

Ele sofreu um acidente. Teve uma fratura grave no braço. Telefonou para ela contando. Com sua voz de menino. E sua dor de adulto. Ela acompanhou. Neste período telefonava quase todos os dias.  Acompanhou a pré-cirurgia. O pós- operatório. A paralisia temporária. Foram tempos também difíceis para ele. Mas escutaram - nas vozinhas um do outro - toda a solidariedade possível. Até a cura. Total.

 

Veio a adolescência. Mudanças. Namoricos. Festas. Cada um relatando as suas descobertas. Os novos amores. As novas dores. Os novos desamores.

 

Ela sofreu o primeiro impacto. O divórcio dos pais. Toda uma mudança de vida. Mudou de Estado novamente. De escola mais uma vez. Sofreu. Chorou. Ligava com mais frequência. Ele sofreu junto com ela. Compreendeu todo o doloroso processo. Amparou. Escutou. Até opinou.

 

Depois foi a vez dele. Os pais dele se divorciaram. Ela escutou. Entendeu. Esclareceu. Ele se sentiu também amparado. Até mais facilmente decodificado. Ela, já conhecedora do percurso, avisava das pedras.

 

Numa dessas mudanças veio para a mesma cidade que ele também iria morar. Ele completaria seu curso lá. Ela também. Nem acreditaram. Iriam se rever. Depois de muitos, muitos anos. Um encontro. O estilo de cada um diante um do outro.

 

Planejaram. Pelo telefone. Marcaram o encontro. Ansiosos.

 

Impossível mensurar o olhar de alguém. Muito menos a emoção. Ou a surpresa. Se despediram aos cinco anos. Se reencontraram aos dezessete anos. Outras pessoas. Ou as mesmas pessoas. Vai lá saber. O que muda. O que conserva.

 

Há o que o tempo preserva - apesar de. E há o que o tempo consome – apesar de. Cresceram se escutando. Souberam das perdas e ganhos – um do outro. Riram. Choraram. Acertaram. Erraram. Revelaram. Ocultaram. Tinham segredos e mistérios.  Nunca se separaram. Pela voz. Sempre se mantiveram ligados. Por um fio.

 

Se olharam. Se tocaram.  Se enxergaram. Comentaram da altura. Incrível.

 

Na voz a tonalidade muda. Mas não se percebe tanto. É no corpo que o tempo faz seu registro. Na transição de um corpo de criança para um corpo de adulto. Na pele. Nos cabelos. Nos dentes. Nas mãos. Nas unhas. É ai que toda uma história se inscreve.  É ai que a história de cada um se revela.

 

Resta saber ler este alfabeto particular. Eles souberam. Foi o que pareceu. De imediato. Sorriram mais que falaram. Não se sentiram tímidos. Até comentaram isso. Algo como se fosse ontem.

 

Mas lembro de uma observação dele. Um dia comentou.

 

Quando falo olhando para ela de vez em quando sinto um certo estranhamento. Como se ela não fosse ela.  Algumas vezes quando ela fala, eu me viro. Para o outro lado. De forma que não a veja. Só escute a voz dela. Daí retomo. Sim, é ela. E posso voltar a olhá-la. Já a vi também me escutar sem me olhar. Deve sentir o mesmo.

 

Nunca deixaram de se falar. Mesmo hoje adultos e casados. Cada um com seu parceiro.

 

Mas algumas vezes deixaram de se ver. Escutar ficou mais próximo - que olhar.

 

 


Maio 14 2009

O dia já amanhecera agitado.  Acordou. Atrasado. Assustado. E vice-versa.

 

Tinha uma reunião. Detestava atrasos. Desde sempre fora assim. Pontual.

 

Levantou. Vestiu-se. Tirou a roupa. Esquecera do banho. Saiu do banho, vestiu-se. Colocou a gravata. Voltou ao banheiro. Esquecera de escovar os dentes. Escovou. Caiu pasta na gravata. Voltou para o quarto. Trocou a gravata. Desceu o elevador. Subiu de volta. Esqueceu a chave do carro. Até relaxou. Começou a rir.

 

Enfim no carro. Lá se foi para a tal reunião.

 

O objeto direto da reunião já estava lá. Já como o sujeito da frase. Com todos os predicados. Postura monárquica. Ar de mandatário. Fala de empresário. E deixando transparecer um certo tédio. Daqueles já até comuns. Dos que vêm do primeiro para o terceiro. E ele viera de lá há alguns anos. Tudo bem. Mas ainda assim de lá. E como de lá - fazia questão de ser apresentado. E se apresentar. Um eloqüente. E em quatro idiomas.

 

Todos se olharam. A reunião começou. Apertaram as mãos - por sobre a mesa.

 

Havia uma proposta. Mégalo seria dizer pouco. Um novo termo teria que ser criado. O sujeito até tinha predicados. Isso ninguém questionava. Mas faltava uma coisinha básica. Funcional. Até saneadora, pode-se assim dizer. Faltava uma adequação de avaliação. Mínima. Só isso. Um detalhe que tantas vezes coopera. Com o sucesso. Com a conclusão. Aliado da sabedoria. Amigo das parcerias. Detalhe fundamental.

 

Não entendia bem o que significava quantidade viável. A inviável ele dominava. E muito bem. Nunca se escutara tantos números desenfreados. Porcentagens alucinantes. Atendimentos multiplicados. Só não sabia os quocientes.

 

Ele decidiu expor. Os contrapontos.

 

Ele não aceitou. Desdenhou. Muitas vezes - hábito comum. De quem não entende sobre o que fala. Fez-se como estranho. E tratou a todos como estrangeiros. Deu até de ombros num certo momento. Como se numa fila portuária estivesse. Carimbando. Apenas isso.

 

Todos se olharam. A reunião continuou. Mantiveram as mãos – coladas na mesa.

 

Ele lembrou por um segundo os esquecimentos da manhã. Entendeu como premonitórios. Mas voltou ao raciocínio. Eis algo que ele é bom. Muito bom. Fez uma explanação. Sobre o saber de quem não sabe. Onde tudo pode ser possível. E inquestionável. Assim. Com clareza. Sem meias modulações. Contundente, diriam alguns. Expôs o viável. O possível. O pertinente. Sabia do que falava.

 

O sujeito se levantou. Pegou os seus predicados. Falou que ia pensar. Sobre o que propusera. Não sobre o que lhe fora exposto. O importante era a própria idéia. E ninguém do terceiro tem visão. Isso é qualidade dos que são do primeiro. Assim balbuciou. E com sotaque.

 

Saíram da sala. O do primeiro retirou-se. Com um cumprimento em seu idioma natal. Parecia fazer questão. De deixar bem claro. Deixou. Os do terceiro se sentaram numa outra sala. Para complementar o ocorrido.

 

Um deles – do terceiro – não contou tempo. Aliás, sempre entendera o tempo sem contas. Quando o tempo ria dele. Ele devolvia. E ria do tempo. Um estilo bem particular. Mas de absoluto sucesso. Pessoal. Profissional. Um homem de espaço. Muito mais que de tempo. Perfeito.

 

Pegou o telefone. Ligou para quem indicara o sujeito dos predicados. Relatou. Fato por ato. E ato por fato. Detalhou. Em um idioma mais simples. Ou talvez mais complexo. Tudo depende de quem fala. Ou de quem escuta. Depende de um maior conhecimento. Porque foi em idioma alternativo que relatou. Ou em linguagem alternativa. Sim. A linguagem foi explicitamente alternativa. Em muito bom som.

 

Do outro lado da linha concordaram. Com o absurdo. Houve até pedidos de desculpa. Coisa de refinada diplomacia. Aceitou as desculpas.

 

Estava sentado numa daquelas belas cadeiras. Encosto alto. Preta. De couro. Giratória. Brincando, girou. A cadeira.

 

Diante dele estava o sujeito dos predicados. Parado. Olhando. Para ele. Voltara porque esquecera algo. Falava quatro idiomas. E entendia, por certo, o alternativo.

 

 

Ninguém se olhou. A reunião assim se encerrou. Com as mãos afastadas - da mesa. E do outro. 

 



Maio 11 2009

Uma festa. Em casa deles. Eles que nunca fizeram uma confraternização. Mesmo com tantos anos de trabalho juntos. Sempre achei que não gostavam de misturar. Trabalho e social. Colegas e amigos. Amigos e família. Vai lá saber. Vai ver seguiam o estilo dos irmãos latinos-sofisticados.

 

Em lugar de trabalho não se faz amigos. Nem se tropeçar em algum. Até porque um bom trabalhador nem tropeça.

 

Mas enfim. Convidaram. Seria daquelas festas tamanho M. Nem muitos. Nem poucos. Sem sobras. Sem apertos. Eles sempre foram mesmo um casal ajustado.

 

Ela foi logo me avisando. Fora convidada. Estava feliz. Acho até que mais feliz que surpresa. Não sei bem. Tinha uma vida cheia de tarefas. Conciliar vida profissional e doméstica é como ser GG e ter que caber num P. Corre daqui. Acerta dali. Finge que não vê de cá. Controla de lá. Assim era a vida dela. E ainda tinha a vaidade. Muito vaidosa. Ai sim. Era GGG. Mas contida num PP. Disfarçava. Jurava que já acordava assim. Era divertido de ver.

 

No dia da festa resolveu ir ao tal salão. De beleza. Programou a agenda. Suspendeu os atendimentos com uma semana de antecedência. Foi tudo assim. Rigorosamente planejado. Se deu esse pequeno presente. Como se uma madame fosse. Aliás, madame, ela sempre foi. Sempre elegante. Gestual delicado. Delicadíssimo. Falava um Português corretíssimo.

 

Comentavam que até sabia Latim. Nunca a escutei pronunciar sequer uma gíria. Todas as frases com riqueza de vocabulário. Concordância verbal perfeita. Infinitivos adequados. Tinha uma postura de dar inveja.

 

Caminhava com tranqüilidade. Não importava se atrasada ou não. O caminhar era sempre compassado. Tinha um jeito de colocar os cabelos – sempre bem cuidados - para trás da orelha. Assim. Com os três últimos dedos. E fazia isso de uma forma tão lenta e suave que sugeria um ballet.

 

Leveza e definição. Difícil encontrar alguém mais refinada.

 

Mas nesse dia parecia que tudo estava errado. O dia da festa. Começou com a lista. Que recebeu na hora que ia sair de casa. Uma lista para compras em supermercado. Não tinha como ser evitada. A tarefa. Acatou. Quando foi entrar no carro notou algo como meio inclinado. Concluiu numa observação rápida. Pneu furado. Controlou-se. Avisou à Seguradora.

 

Demoraram mais que o previsto. Avisaram que foi por um erro no endereço. Ela absteve-se de qualquer resposta. Enfim trocaram o pneu. Já estava atrasada para o salão. E lá o horário era rigoroso. Se atrasasse colocavam outra pessoa no horário. E depois tinha que esperar uma vaga.

 

No supermercado as filas estavam enormes. E lentas. Cinco filas depois – estava enfim na fila da carne. Esta já a última da lista. E o tempo desatento a ela. Esperou. Colocou os cabelos para trás da orelha umas vinte vezes. Mas persistiu no estilo delicado – dos três últimos dedos. Chegou a vez - dela. Ia fazer o pedido quando uma senhora materializou-se em sua frente. E foi logo dizendo. Que estava ali. Só tinha saído rapidamente. Mas que o lugar era dela. Estava ali muito antes. Ela que não tinha prestado atenção. Falou assim. Você que não prestou atenção.

 

Houve um segundo de silêncio.

 

Ficou irreconhecível. Uma profusão de palavras nunca dantes pronunciadas.

 

Acredito que nem sequer pensadas. Não parecia Latim. Mas um novo manuseio de determinados verbetes. Nem filólogos, nem etimólogos dariam conta. Tamanha a rapidez com que ela as pronunciava. Em meio a este sincrônico ato verbal deu um tapa nos próprios cabelos. Com as costas da mão. Espalmada. Jogou para trás de qualquer jeito. Passou na frente da senhora recém-materializada. Que nada falou. Pareceu fazer até um gesto com os lábios. Acredito que até pensou em sugerir um novo armazenamento para a carne. Mas, prudente, calou-se. Ela pediu o que queria. Desafiou a senhora recém-materializada com o olhar. Pagou e saiu.

 

Na festa, à noite, já estava recuperada. Do gestual à fala. E estava bela. Sorridente. Eles felizes com seus convidados. E todos felizes pelo convite. Sentindo-se cada um – um privilegiado. Eles resolveram incorporar a família. Na festa. Colegas de trabalho e alguns familiares. Uma confraternização completa. Como uma exposição dos afetos.

 

Em determinado momento ele veio abraçado a uma senhora. Apresentou. Carinhoso. Orgulhoso.

 

Minha mãe.

 

Houve um segundo de silêncio.

 

A senhora olhou para ela. Ergueu a mão. Como um sinal de advertência. Apenas disse. Como se falasse soletrando. Sílaba por sílaba.

 

Já nos conhecemos.

 

Ela pediu aos céus. Uma rápida desmaterialização. Mas continuou ali. Em carne. E osso. Colocou, com os três últimos dedos, os cabelos para trás da orelha.

 

Respondeu. Acho que não.

 

Curvou, com elegância, a cabeça. Muda, saiu.

 

 


Maio 07 2009

Estava decidido. Passaria o final de semana em casa. Lendo. O livro dele - a fascinara. Mais uma vez. A cada nova frase lida – quase uma hora de silêncio. Tentando entender todo o processo. O que gerou a frase. E o que a frase gerava. Até riu. Seria lido com calma. Não sabia por quanto tempo. Não que fosse volumoso. Em páginas. Era volumoso fora das páginas. Maravilhoso. Ele era e sempre seria seu autor favorito.

 

Havia o título. Começou a se apaixonar desde o título. Na hora nem se dera conta. Do por que o título também a atraíra. Assim são os livros. Ou os autores. Escrevem uma idéia. E são desapropriados dela por quem os lê. Assim. Desde o titulo. Enfim. Que cada um se utilize do fato. Como sendo fruto do próprio ato. E em meio às páginas sigam as duas trajetórias. Compondo e descompondo a cada nova linha.   

 

Era um mar calmo. O céu estava azul. E fazia aquele barulhinho doce. Suave. De ondinhas quebrando. Na areia. Tudo que uma criança compreendia. Tudo estava ali. Ela era bem pequena. Não diria corajosa. Era afoita e curiosa. Talvez termos mais adequados.

 

Lembrava do final de tarde na praia. Em especial daquele final de tarde. Ele veio e perguntou. Quem queria passear de jangada. De jangada. Ele estava ao lado dela. Recusou. Temeu. Ela concordou e o abraçou. Considerou prudente. Não ir.  

 

Ela olhou. Para o mar. Para a jangada. Para as pessoas que iriam. Sorriu. Decidiu e avisou. Eu vou. Assim. Com a voz de criança. Com a decisão tranqüila. Que só as crianças sabem ter. Não temem pelas escolhas. Porque não temem ainda pelas perdas. Para as crianças o mundo realmente gira. E trás de volta o que não pode ser escolhido num mesmo momento. O depois - é logo ali. Não existe a possibilidade do nunca mais. E quando existe o nunca mais a tradução é outra. É como um talvez. A infância é sempre talvez.

 

Enfim. Deu a mão a ele. Entrou correndo na água. E subiu na jangada.  

 

A jangada dançou. Na água salgada. Com pontinhos brilhantes aqui e ali. Balançando. Alternando as madeirinhas. Dentro e fora da água. Ele ficava de pé. Segurava o remo. Um banquinho de madeira amparava uma sacolinha. Uma rede. Se ninguém ia sentar – ela também não iria. Também ficou de pé.  

 

Ela segurou na mão dele. E sorria. Feliz. Olhou de volta para a areia. Ele ainda estava lá. Abraçado a ela. Sentiu aquela pontinha de orgulho. Não recusara a enorme aventura. Deve ter até erguido mais a cabecinha. Mas disso não lembrava. Lembrava dos pés. Lembrava que olhou para os pés. E viu que a água entrava por entre as madeiras. E daí por entre seus dedinhos. Fazia cócegas. Achou maravilhoso. Maravilhosa a sensação.

 

O jangadeiro olhava para ela e mostrava o mar.

 

Explicava o mar. Ela atenta. Nunca mais na vida esqueceria aquela explicação. E nem esqueceria que para entender o mar é preciso uma explicação. O mar não é assim tão simples. Água. Sal e onda. O mar é outro lugar. Que também tem suas curvas e suas retas. Seus mistérios e seus códigos. Tudo vai depender da explicação. E do conhecimento. De quem o apresenta. Sempre que ia para o mar - lembrava dele. E da seriedade com que explicava. E a concentração que ela ficava. Para que nada deixasse de ver.

 

Escutando e olhando. Sentiu-se diante de uma majestade.  

 

Ali ficara não por muito tempo. Aprendendo sobre jangadas e mar. Sobre mar e coragem. Sobre riscos e efeitos. Hoje sabia que fora um passeio curtinho. Na época se sentiu uma desbravadora. Como se há dias no mar.

Riu das lembranças.

 

O livro, que estava no colo, escorregou. O segurou antes que caísse. Releu o título. Aí então compreendeu. Acariciou a capa. Sorriu. Olhou para os próprios pés. Brincou com os dedos no tapete. Em terra firme como na água. O que valem são as sensações.

 

Lembrou da amiga. Que tinha um amigo indiano. Um dia ela lhe contara algo que ele falara.

 

É preciso um espaço para que a pena flutue – tranqüila. 

 


Maio 06 2009

Nem bem abri a porta e ela já foi logo entrando. Mais rápido ainda foram as lágrimas. Não falava. Só chorava. Com as mãos no rosto. Sentei ao lado. Não sabia o que dizer. Não sabia os motivos. São tão contraditórios os caminhos das lágrimas. Continuou chorando. Só toquei-lhe o ombro. Ela pôs as duas mãos no rosto. Como uma criança desamparada  

 

Decidi ir até a cozinha. E lhe entreguei um copo com água. Na hora foi o que me ocorreu. Assim. Num gesto automático.

 

Desta vez contrariei um pouco o meu amigo indiano. Ele sempre dizia. Se não sabe o que fazer – faça nada.

 

Mesmo não sabendo o que fazer, optei pelo copo com água. Um dia explicarei isso a ele. Quem sabe ele abre esta nova alternativa.

 

Ela bebeu. Quase que de uma vez só.  Assim. Com avidez. Pôs as duas mãos no copo. Como uma adolescente resgatada.

 

Foi um verdadeiro milagre. Parou de chorar. Conseguimos até rir. Ou melhor, eu consegui. Falei. Se era sede, não precisava chorar. Devia ter pedido. Já teria sido resolvido. Esboçou o que se poderia chamar de sorriso. Mas não foi adiante. Me desculpei.  Pelo gracejo inoportuno. Nada respondeu.

 

Começou a contar. O motivo. Muito além da sede. Embora não deixasse de ser também uma espécie de sede.

 

Ele estava mudando. Ela compartilhava. Cooperava. Solidarizava. E todos esses qualificativos. Que sempre se medalha em situações como esta. Como condecorações. Como se tudo não passasse de uma batalha. Interminável.

 

Assim parecia entender a parceria. Neste momento quase o choro voltou. Mas, se conteve. Muitas vezes as palavras não cedem lugar. E lá se vão saindo. Do jeito que podem. Impedindo outras saídas.

 

Ele não a convidara para a nova cidade. Ia se mudar sem ela. Sem  ela. Como isso podia acontecer. Não compreendia. Ela sempre avisara que também iria. Junto. E ele não a convidara. E já estava tão perto do dia. Da mudança dele. Ela nada podia fazer.Para alterar a mudança. Quase ri. Porque ela quase riu. Mas repetiu. Como isso pode acontecer.

 

Levantou. Caminhou. Parecia desatenta ao ambiente. Mas esbarrou em nada. Pôs as duas mãos nos bolsos. Como uma cega já treinada.

 

Repeti a minha mais nova sabedoria. Mesmo sem entender. Ofereci mais água.

 

Mas uma vez o efeito se repetiu. Cheguei a pensar que poderia ser o copo. Parecia um copo tão simples. Olhei para ele até com mais respeito. Vai ver era ele. O operador dos milagres. Conclui. Da próxima vez vou trocar de copo. Ou trocar de atitude.   

 

Sentei. Olhei para o copo – vazio. Em cima da mesinha. Tentei coordenar. Atos e fatos. Gestos e palavras. Nada parecia combinar. Ou vai ver estava tudo bem combinado. Eu que não conseguia entender. Talvez fosse um daqueles episódios de numeração de chances. Aliás, desconheço conta mais complicada. Não tem Aritmética que responda. Ou corresponda. Às vezes, a primeira chance já é a última. Outras vezes tem a terceira chance para depois possibilitar a segunda. Outras vezes, ainda, é no esgotar que a contagem recomeça. Vai lá saber.

 

Chance é da ordem do possível.

 

Seqüenciar é que é da ordem do impossível.

 

De repente o telefone dela tocou. Era ele. Convidava para almoçar. Juntos. Os dois. Num lugar que ela gostava. Ela sorriu. Levantou. Se recompôs. Ajeitou os cabelos. Agradeceu. Quando o elevador chegou, olhou para trás e sorriu. Segurou a porta com uma das mãos. Como uma senhora sofisticada.

  

Resolvi telefonar para o meu amigo indiano. Como uma ocidental desorientada.  

  

 


Abril 27 2009

Estava trabalhando. Agenda cheia. Em meio a todo o tumulto dos atendimentos recebeu um telefonema de casa. A dedicada auxiliar avisava que tinha um homem nada delicado dentro da casa. E que estava lá com uma finalidade inadiável. Ia cortar a luz. Isso. Cortar a luz.

 

Ela pediu três vezes que repetisse a frase. A história. A fala do homem. Então estava escutando bem. Mas por que. Por que não tinha sido paga há dois meses. Assim. Motivo simples. Ela quase pulou da cadeira. Não entendeu. Não podia ser. Devia ser algum equívoco. Usava a modernidade Bancária para isso. Há anos.

 

A dedicada e sempre prestativa auxiliar explicou. Vai ver que foi porque solicitei para ser mudado o nome do titular. Na conta de luz. Afinal já está divorciada há oito anos. Já está mais que na hora de aceitar o nome de divorciada. E ajudei nisso. Pedi para mudar para o seu nome de divorciada. Fiz isso com a melhor das intenções. Até comentei com a senhora. Deve ter esquecido.

 

Sim. Não lembrava. Concluiu. Com isso foi tirado da modernidade do Banco. Explicado. Agora só precisava ser resolvido. Banco não se interessa por questões de ordem emocional. Ou por decisões adequadas feitas de forma inadequada. Quanto mais por falhas de escuta ou de memória. É tudo feito com muita clareza. Quase riu. Justo agora estava na iminência do escuro.

 

Iria ao Banco rapidamente pagar. Pediu para falar isso para o homem. Um homem implacável. Não aceitou aquele célebre hoje não. Por favor. E na sexta feira. Às três da tarde. Pode ficar tranqüilo. Será resolvido logo. O senhor não pode fazer isso. Devo. Respondeu assim. E ainda falou isso rindo.

 

Depois da atitude dela, ele tomaria a dele. Deu um até breve. Deixou um número para contato quando estivesse com o débito em dia. Assim poderia pedir a re-ligação. Virou-se. Saiu.

 

Foi uma correria. Do local de trabalho e pelo telefone pediu o código de barra. Nervosa só anotava errado. Desistiu. Pediu que enviasse pelo computador. Com a pressa em resolver tropeçou.  Arrancou o fio da tomada do computador de vez da parede. Não conseguiu mais fazer funcionar a rede. Desistiu. Pediu para enviar a conta pelo fax do vizinho. Que se dispôs de imediato a ajudar. Mas lamentou em seguida. Estava sem papel de fax.

 

Tinha esquecido de comprar.

 

Nesse intervalo os filhos ligaram. Estavam apavorados. O que fariam sem luz. Um queria jogar. O outro tinha um trabalho da escola. Queriam aquecer a comida. Queriam água gelada. Queriam banho quente. Tudo a depender a luz.  E ela no trabalho.

 

Cancelou a agenda e foi resolver à moda antiga. Com a conta em mãos e na frente do caixa.

 

Pagou. Tentou relatar o acontecido. Mas a mocinha do caixa em nada se interessou. Fez ar de burocrata entediada. Confirmou o pagamento e dirigiu o olhar já ao próximo. Que estava atrás dela. Neste momento ela compreendeu. Algo que nunca se dera conta. Até riu do pensamento. Conta fora a palavra mais citada em questão de minutos. Mas sim. Se dera conta. Burocracia, Conta e Banco não têm questões. Só motivos. Até se acalmou. Com a nova filosofia recém criada. Mesmo no escuro.

 

Voltou para casa. Telefonou para o número deixado pelo homem que fez o corte. Informaram que seria solucionado de imediato. A esta altura a casa era uma verdadeira capela. Vela para todo lado. E avisos de cuidado com a vela a se repetir.  E todos a pedirem banho quente e água gelada.

 

Insistiu na ligação telefônica. Desta vez teve mais uma surpresa. Ninguém sabia da primeira ligação. Esbravejou. Gritou. Perdeu a calma. A classe. A compostura. Descobriu que perder a timidez no escuro é muito mais fácil. E aproveitou então da situação. Foi tanto que falou que do outro lado pediram calma. Respondeu com palavras nada publicáveis. Avisaram que toda ligação telefônica era gravada. Respondeu em alto e bom som. Ainda bem.

 

Eles desistiram da tal água gelada. Do banho quente. Sábios. E bons ouvintes. Ou prudentes. Ainda tinham um bom apego à vida. Escutaram o que ela falara com quem atendeu na Companhia de Energia Elétrica. A forma que ela falara. Optaram por ficar em silêncio. Sob a luz de velas. Bem caladinhos e sentadinhos no sofá. Aguardando apenas.

 

Resolveu. Iriam todos a um restaurante. Jantariam por lá e na volta já estariam de luz acesa.

 

Era noite de temporal. Muita chuva. Trovoadas e relâmpagos. Faltou luz no restaurante. Em meio à escolha do jantar. E antes de pedirem a água gelada.

 

No escuro todos só escutavam as risadas. Deles.

 

 


Abril 21 2009

Desta vez a ligação foi diferente. Nada de alegria na voz. Muito menos de comemoração. Não se festejou. Nem se falou em macarrão no desjejum. Hoje a dieta era fria. Com sabor de nada. Talvez acrescentado o amargo do fruto. Já tão proibido.

 

Parecia aflita. Aflita de realidade. É sempre difícil este tipo de aflição. Sobrecarrega. E não deixa espaços. Por isso não se consegue dissimular. Nem com a fantasia. Ficar na realidade por muito tempo tira o fôlego. Causa compressão nos músculos. Provoca uma dor que não se sabe onde. De tão pesada e difusa.

 

Descobrira uma verdade. Segundo ela. Concluíra a verdade. Do impedimento. Não era geografia. Não era paternidade. Não era sequer solidariedade.

 

Tinha uma atitude explícita. Estava com ódio de si mesma. Por que não entendera isso antes. Justo ela. Que convivia tão bem com os escondidinhos da alma. Com as entrelinhas dos discursos. Vivia disso. Vivia para isso. Para entender o que ninguém explicava. E explicava o que ninguém compreendia.

 

E agora estava confusa. Sem compreender. Nem a ela. Nem ao outro. Por que se não se entendia, como iria entender o outro. Era cada vez mais proibitivo. O tal testemunho. O tal julgamento.

Por um tempo se enganou. Jurou ter se equivocado. Tanto afirmou que quase acreditou. Mas podia lhe faltar tudo. Menos aquela dose certa de lucidez. Mesmo que na hora errada.

 

Chorou.

 

É preciso sempre estar atento. Ao que o outro exige. Nem sempre a proposta é de parceria. Parceria envolve a dois. No mínimo. E parceria é assim. Quando se vê já está estabelecida. Assim. No silêncio. Como dizia aquele poeta alemão. Onde uma palavra jamais pisou.  Sem discussão. Até sem nomeação. Parceria é só atitude. As palavras são moldura. Efeitos decorativos. Por isso prescindíveis. Ele descartou. Obstaculizou. Assim ela falou. Entre lágrimas e retórica. Ou entre lágrimas retóricas. Muitas vezes esta é a mais importante função da lágrima. Função retórica. Funciona bem para desavisados. Ele utilizou com grandeza este recurso. E na hora ela acreditou. Mais por necessidade do que por ingenuidade. Naquele momento se duvidasse perderia o prumo. Achou prudente acreditar. E se não podia sofrer junto com ele, ao menos sofria ao lado dele. Forma triste de parceria. Isso ela compreendeu. Parceria solitária.

 

Ele confirmou. Nada de ímpetos. Nada de mudanças bruscas. Deixaria assim. Voltaria para onde tinha saído. E torcia para que nada lá tivesse mudado.

 

Foi o que descobriu. Ele só tinha um único compromisso. E de exclusividade. Com ele mesmo. Só. Assim. Claro e destacado. Se estava bom, prosseguia. Se não estava, descartava. Se oscilava, partia. Mas tudo dentro de um acordo tácito. Nada que precisasse da aprovação do outro. Aprovação do outro já significava parceria. E isso ele indeferia. Tal um documento. Sem emoção.

 

Lembrei de uma orientação da minha avó. Quando estiver difícil consolar, sorria com delicadeza, menina, sempre sorria com delicadeza.

 

Sorri. Sorrimos. Depois rimos. De tudo. Do acordo. Do desacordo. Do engano. Do eu-bem-que-falei. Do champagne estourado em silêncio. Do perfume interditado. Da negação. Da contemplação. Não faltou ação. A distância de nada impediu. E ele foi sumindo. Nas palavras. Na retórica. Nas lágrimas. E quando o sorriso finalmente venceu, ele desapareceu. Ele e o compromisso solitário.

 

Ela ficou com as lembranças. E fez delas suas parceiras. Junto com o sorriso. Por um tempo seriam companheiras. Depois já não se sabe. 

 

 

 


Abril 16 2009

Não dava para acreditar. Aliás. Dava para acreditar. Não dava era para compreender. Minha avó sempre me disse isso. Fique atenta no que acredita e não compreende, menina, fique atenta. Às vezes penso que escutei pouco a minha avó. Vai ver por isso encontro mais problemas. Que soluções.

 

O lugar era adequado. A cafeteria uma delicadeza. Isso sem falar naquele burburinho. Vozes sussurradas fazem mais efeito que gritadas. Todos ali sussurravam. Dando seu estilo musical nas entonações. Nos pequenos silêncios. Como uma partitura. Numa sequência sem maestro. Mas com cadência. Assim era o ambiente. Uma quase orquestra. De sons. E tons. Até de sotaques. Uma exposição cautelosa das idéias. Em pianíssimo. Em alegretto. Até cabia um allegro ma non troppo.

 

O olhar veio antes. Era um olhar lúdico. O corpo todo veio depois. Mas tinha uma sintonia com o olhar. Deveria ser mesmo um lugar que gostava. Que frequentava. Ou que tentava frequentar. Com o olhar percorria os lugares. E buscava o seu. Vago. Uma mesa. Uma cadeira. Um assento. Onde pudesse abrigá-los. Corpo e olhar. E o riso. Ria como se para alguém. Conclui.

 

Deveria ser o alguém interior. Uma daquelas comemorações festivas. Entre ego e superego. Ou entre ego e alter ego. Vai lá saber.

 

Algo de repente ficou errado. Nesse momento o olhar mudou. Já não era mais lúdico. Era um olhar envelhecido. Ele veio na direção dela. Com ar de desagrado. Gesticulando para ela. Com desaprovação. O corpo em sintonia com o olhar. Desagradável. O dedo substituiu a fala e apontou faltas. Muitas faltas. Faltava lugar. Faltava tempo. Faltava espaço. Parecia que apenas sobrava espera. Desconforto. E dedos. Ele gesticulava. Ela observava.

 

Parecia hesitante, mas atenta. Por segundos retirava o olhar dele e olhava o espaço. O ambiente. Ele insistiu.O olhar dela mudou. Era agora um olhar resignado.

 

Ele foi à frente. Deu as costas. Ela o seguiu. Iam sair. Fiquei pensando no porque da concessão. Nas mil razões das concessões. Durou pouco meu pensamento. Não cheguei nem na segunda razão. Até respirei aliviada. Vi que ela voltou. Voltou. Quase dei um pulinho da cadeira. Que teria acontecido. E com ela um novo olhar. Olhar de decisão. Ia ficar. Quase aplaudi. Me contive. Ele ainda ficou por um instante de pé. Diante dela.

 

Reprovou. Apontou. Resmungou. Acatou.

 

Enquanto ela sentava, ele foi buscar o café. Estava irritado. Expressão de tédio, como ela diria se o estivesse vendo. Pensei. Este deverá ser o café mais caro do planeta. Mas ela deve saber o que faz. E se tudo tem um preço, que seja pago antecipado. Acompanhado de uma parcela de prazer. Procede. E vai ver sempre tem uma forma de evitar juros.

 

Era alta. Magra. Elegante. Porte ereto. Gestual delicado. Fugia ao comum. Tinha cabelos brancos. Não tingidos. Longos. Presos com uma fivela sofisticada. Uma roupa despojada e adequada. Já sentada, sorriu. Para quem estava em volta. Me incluí. Elogiei a decisão. Fez um olhar de surpresa. Não se imaginava observada. Agradeceu. Com singeleza. Com tranqüilidade.

 

Ele vinha em direção dela. Segurando a bandeja. Tentando equilibrar irritação, aceitação, cobrança futura, café e bolinhos. Não devia ser fácil. A expressão estava insegura.  Desta vez ela o recebeu com um outro olhar. Olhar de irreverência.

 

Sabe-se lá porque perguntei se era escritora. Nem sei de onde tirei esta idéia. Mas perguntei. Ela respondeu. Com serenidade. Com uma voz firme. Não. Sou atriz. Devo ter feito uma coletânea de todos os olhares dela. Em mim. Ao mesmo tempo. Pelo jeito que ela me olhou. Sorri. E parabenizei. Com entusiasmo.

 

Lembrei da minha avó. Agora sim. Acreditei e compreendi. E o contrário também vale.

 

 


Abril 08 2009

Desisti de evitar sustos. Nada resolve. Susto é parte integrante da vida. Só não toma quem já não faz mais parte dela. Ou o faz em outro nível. Mas nunca soube de algum relato. Se lá também se toma susto. Enfim. Susto é vida. Nada mais a acrescentar. Diriam os pragmáticos.

 

Fiquei assustada com a Palavra. Assim. Sem mais nem menos. Descobri o quanto a Palavra assusta. A congelada. A pretenciosa. A despretenciosa. A que tem entonação. Esta principalmente. Porque a entonação real é de quem escuta. De quem lê. Jamais de quem fala. Ou de quem escreve. Quem fala ou escreve está sempre do outro lado. Não sei qual. Mas de um outro lado.

 

Agora me lembrei dele. Tinha razão. Nada de colocar exclamação em poesia. Isso o outro quem faz. Correto. Corretíssimo. Quem escreve o faz à mercê. De quem lê. Isso faz da Palavra um objeto duplo. De desejo e de temor.  De quem gosta e de quem não gosta. Pode-se dar qualquer entonação. Pode-se até sentir proprietário da tal entonação. Mas nada. É coisa de locação. É dono só pela metade. Pela emissão.  A posse é realmente do outro. Pela omissão.

 

Há um poder em uma Palavra e em sua entonação. No ouvido alheio. Na estrutura alheia. Nas mágoas alheias. Pode dar em sim. Pode dar em não.  Pode até justificar um nunca pensei. Nem acreditei. Um apavoramento - estou pasma. Um extremo - estou saindo. Um chorado - adeus. Um aliviado - nunca mais. Um sorridente – adorei. Toda uma situação nova pode ser construída e reconstruída. E até muitos divãs preenchidos. De entonações. Se sobrepondo. Cada um jurando. Temendo. Se desculpando. Acusando.  Até sofrendo. Mas afirmando. O erro é do outro. A Palavra foi dita assim. E defender em causa própria. Não existe isso nas Palavras. Não existe causa própria.

 

Falam. Gritam. Num festival de entonações. Ninguém mais sabe quem falou.  Ou quem gritou. Nem por que. E acabam por desviar a atenção. Do objeto inicial. Como se a vida também corresse desta forma. Num estilo comissários-passageiros. No ar. Todos sempre tentando tirar um cinto da segurança. Para que possam correr atrás da Palavra sem segurança. Procede. É pela Palavra que surge a insegurança. Mas é nela que todos se seguram. Para se defender. Paradoxal e cruel.

 

Assim é a Língua. Feita para construir. Para compartilhar. Mas sempre presa naquela praga. Da torre mítica.

 

Nada a fazer. Com a Palavra mal soada. Ouvidos são – sempre -  egóicos.

 

Chorar não dá ritmo. Rir não dá bemol. Desconsiderar sim, pode dar em orquestra. Cada um e seu tom. Usando o seu instrumento da forma aprendida. Ensinada. Seguindo a sequência. Mas vai sempre acontecer um desafino. Um destoado. Mesmo que muito se ensaie. Nada poupa a Palavra dita. Não tem batuta que a oriente nas partituras da emoção. Nem dó de peito. Nem peito com dó. Cada um vai ter seu mestre. Sua maestria. Sua singularidade. Depositário das suas queixas. Das suas dores. Dos seus preconceitos. Das suas lembranças.

 

Lembro da minha avó. Não havia um dia que não repetisse. Pensa mais e fala menos, menina, pensa mais e fala menos. Sábia. Porque não há saída.

 

 A Palavra fica ali. Na ilusão de cada um. Do que foi claro - explícito. Do que restou dúvida – implícito.  Como se algo pudesse ser evitado. Se não hoje, se não amanhã. Dentro da complexa realização do que se diz. No até que a morte separe. Ou no que disse está dito. No eu falei primeiro. O que não faltam são frases falso-elucidativas. Palavra de honra.  Escreva o que digo.

 

Sem esquecer os mais crédulos. Avisam com voz segura. Entonação de força. Assino embaixo do que falou.

 

Nesta roda de letras se diferenciam homens e animais. Na natureza. Um tem a Palavra. Outro tem o instinto. Um a buscar “insatisfazer” as demandas. O outro a atender as necessidades. E cada um girando em volta da sobrevivência. Com ou sem Palavras. Como num grito de vôo com provérbios.

 

A Palavra sob Palavra. Como um pudor às avessas. E às pressas. Arriscada. Desafiada. Tentada. Com toda uma ética envolvida e constantemente burlada. Com gramática e sintaxe. Acentos e fórmulas. Por tudo isso – e para tudo isso - sempre surpreendente. Cercada de sustos e incoerências.

 

 


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