Blog de Lêda Rezende

Junho 17 2009

O convite chegou de repente. No começo de uma noite de muito calor - e pouca opção.

 

Convidava para o casamento dele. De repente - este virou o termo repetido. Porque as lembranças iam chegando de repente. E aos montes. Como dizia a minha avó. Só as lembranças nos comandam, menina, só as lembranças nos comandam. Ri sozinha.

 

Posso sim. Posso falar agora. Que aconteceu. Que voz tristinha. Sim. É arriscado. O período. Pode acontecer, sim. Sua mãe não vai gostar mesmo. Mas sossega. Nada vai acontecer. Alguém Cuida da juventude hormonal. Fica calmo.

 

Ainda bem. Acalmou agora. Mas faz favor. Veja se toma mais cuidado. Eu sei que é difícil. Mas a adolescência também tem mais ocupações. Além desta específica. Ainda bem que voltou a rir.

 

Pode lógico. Passa a semana aqui. Não importa se acabamos de nos mudar. Que graça tem uma casa se não for para receber os amigos. Diz a ele que pode vir. Sim.

 

Só rindo. Então vai ficar o dia todo aí. Em frente a este aquecedor. Vai ficar bem passado, isso sim. Tem razão. A temperatura aqui nem de longe está lembrando a de lá. Sei disso. Sim. Sinto saudades. Mas tinha que vir. E vim.

 

Assim. Sem muita dialética. Dialética virou foi queixo tremendo. De frio. Toma mais um. Edredom de plumas. Esse deve esquentar. Só cuida para não causar um incêndio. Com o aquecedor ligado o dia todo. Vai levar o aquecedor para o exame - também. Prometo nem vou rir mais.

 

Não nos víamos há anos. Muitos anos. Desde aquele último inverno. O do aquecedor acoplado. Ao corpo. Não sabia que ele havia sido requisitado. Soube na hora. Viera comemorar com o amigo de toda a vida. De pequenos a adultos. Mesmo distantes – sempre presentes. Nas noticias. Nas opiniões. Nos acertos. Nas profissões. Nas decisões. Nas escolhas afetivas.  

 

Nos encontramos no cortejo. Me viu. Veio feliz.  Em direção a mim. No dia exato e no momento exato. De toda aquela matrimonial confusão. Brinco perdido. Chuva sob marquise. Foco de luz nas costas. Gata assustada em sofá. Ameaça de desmaios em altar. Ele chegou. Sorrindo. Com aquele sorriso leve. Comemorativo. Abriu os braços. Não parava de me beijar, de me abraçar. Repetia meu nome mil vezes. E ria. Fiquei emocionada. Ainda bem. Que deixei este tipo de alegria plantada. Para ser colhida num reencontro.

 

Há uma certa fase da vida que as pessoas não sorriem simplesmente. Elas celebram. Comemoram. Riso tem uma outra equivalência. E quando essa equivalência desaparece e fica só o riso – muitos chamam de amadurecimento. As celebrações se recolhem. Já não há mais tanto festejo.  

 

Tem gente que já nasce com o riso amadurecido. E há os mais afortunados que o resguardam de qualquer distrofia. Às vezes amadurecer também equivale a uma distrofia. Mas enfim. Lá estava ele.

 

Cresceu belo. Forte. Saudável. Competente.  Brilhante. Mas manteve o riso comemorativo. Amadureceu sem se tornar um distrófico emocional.

 

Telefonou para fazer o convite. Fazia questão. Que lá estivéssemos. Casaria lá. Na cidade de onde vim. O trajeto se invertia. Agora nós que iríamos.

 

Tanto tempo sem voltar. Após um segundo de apnéia – escutando o convite pelo telefone – retomei.  O fôlego. O susto. A intenção. A voz.

 

Lá pode até ter brinco perdido, mas não tem chuva. Nem gata. Nem foco de luz. Nem prédio com marquise.

 

Tem sol. Tem mar. Tem cheiro de mar no começo do dia, no meio do dia e no final do dia. Tem cheiro de mar na brisa da noite, da meia noite. Tem até isso. Meia noite. Tem vista. Tem banquinhos para ver a vista. Tem coqueiro.

 

Tem paralela. Tem modelo. Tem forte. Tem ladeira. Tem uma sereia acolhedora de peito aberto. E  farol sinalizador de que está perto. Tem alta e tem baixa. Tem fita. Tem conta. Tem cor de ouro nas panelas. Tem mil molhos nas tigelas.Tem caldo. Tem lambreta. Tem até sururu. Lá tem tanto que nunca mais vi.

 

Tem a amizade que desprezou geografia. Que prestigiou afetos. Que memorizou amparo. E tudo em tão juvenis tempos. E contratempos.

 

Voltar requer sempre mais coragem que partir. Mas lá vamos nós. Outra vez sob o olhar de Manturna. Apertem os cintos. Entre céus e terras, passando pelo doce azul do mar. Uma certeza - o riso festivo se fará coro e cor. 

 

 


Junho 09 2009

De repente chegou a mensagem. Uma longa mensagem. Depois de muito tempo. Nem acreditei quando vi o nome no remetente. Ela estava ali. Se despojando. Não se expondo- mais se impondo. Relatando o silêncio. Muito mais que as palavras. Mas também não poupando palavras para falar do silêncio. Não se justificava. Se diagnosticava. Foi o que me pareceu.

 

Passei dias lendo e relendo.

 

Deve ser assim quando não se sabe as respostas. Muito menos as perguntas.

 

Como dizia a minha avó. As perguntas têm sempre mais conteúdo que as respostas, menina, as perguntas têm sempre mais conteúdo que as respostas.

 

E por isso fiquei assim. Só lendo. Relendo.

 

Contava que se afastara dos mais próximos e privilegiara os mais formais.

 

Os mais distantes. Buscava quem não via há dez anos. Mas não queria conversar com quem se despedira ontem.  

 

Fiquei com uma dúvida. Nunca os mais afastados – ou formais – mudarão de posição. Será assim. Posição estagnada. Ou será que vai se girando. Cada vez que a proximidade vence – passa-se a diante. Isso também não combina com a ela que eu conheci.

 

Continuei. Fez outros relatos. Sobre o choro fácil. Desautorizado, mas dominante. Sobre o sono difícil. Autorizado, mas desobediente. Sobre as condutas idealizadas. Banalizadas, mas sequeladas.

 

Fiquei eu estagnada. Nem próxima. Nem distante. Nem há dez anos. Nem ontem à noite. Por muitos dias. Nem sei mais quantos. Acho que fiquei projetada. Vai lá saber. Vai ver um silêncio puxa outro. E a memória não perdoa. Lembrei a frase do Francês. Quando a falta é muito grande as palavras também faltam. Devia ser isso. Faz tempo que não discuto com o Francês. Tenho me identificado com as idéias dele. Nunca pensei que isso pudesse acontecer. Eu concordar com as idéias dele. Do Frances. Mas enfim.

 

Lembrei de outra amiga. Também recém retornada. Nova sincronicidade. Mas esta me desejou serenidade. Vai ver alcancei. Ela deve ter me desejado com muita fé.

 

Ela é linda. Tem um sorriso lindo. Cabelos mais lindos ainda. Um estilo doce. Afetuoso. A voz dela só me traz vontade de sorrir. É uma voz sincera. Até pueril. Não tem voz de adulto desconfiado. Tem voz de criança crédula. Mas com a profundidade de quem já sabe. Ou de quem já duvida. Só de pensar – escuto. O jeito dela de falar meu nome. Rindo. Meu nome sempre vinha acompanhado de um riso. Com sotaque. Transmite segurança. Mas nem por isso é alheia. Aos sentimentos cruéis da humanidade. Reconhece os limites. Percebe as distorções dos limites. Inteligente. Mente interpretativa. Talvez esta a melhor definição dela. Possuidora de uma mente interpretativa. E refinada. Muito refinada.

 

Lembro das noites e noites que passamos nos comunicando. Com letras. Sem voz. Sem imagem. Diminuindo distâncias. Uma em cada exílio. Tentando fazer dele – do nosso exílio - o nativo. O natural. Sem raízes – mas com caules. Algo por aí. O monitor deveria se assustar de tantas risadas. Pela pobreza das nossas supostas metáforas. Ríamos e chorávamos. A nosso favor e contra nós.

 

E quando ela vinha. Saia do exílio dela e vinha até o nosso. Ele até ia dormir.

 

Sabia que a conversa seria longa. In vino veritas. Sentadas na cozinha. O vinho belo, formoso, sofisticado. Em nossa frente. Depois acabado, destituído, garrafa. No lixo. No intervalo - falávamos. Muito. Entre risos e risos. A veritas sempre vencia. 

 

Não posso. Imaginá-la chorando. Insone. Incrédula. Solitária. Racional. Escolhendo os distantes. Se distanciando dos próximos. Se aproximando dos rótulos. Guardando bulas. Escondendo sinapses. Alternando químicas. Seqüenciando idéias. Afastando atos. Colecionando saudades. Vivendo de social. Ou socialmente vivendo.  

 

Leio o aviso. Da distância concedida. Proibido particularidades. Só amenidades. Não chegue perto. Pode falar daí mesmo. Do portão. Cuidado. Ouvido bravo.

 

Mas quero que saiba. Adorei. Fiquei feliz. Com a proximidade distante. Ou com a distância aproximada. Tanto faz. Não importa. Importa é que podemos continuar. Seja onde for o tal portão.

 

Assim é a amizade.

 

Quase beijei o mensageiro.

 

 


Junho 06 2009

Acordei hoje lembrando lá. Deste período lá.

 

Sim. Já comprei tudo. De supermercado também. Fica difícil ir ao supermercado agora. Ou falta tudo. Ou se encontra nada. Sem falar nos acessos. Que são alterados. A cidade fica muito cheia. Sim. Do mundo todo.

 

Muitos sotaques. Muitos idiomas. Uma Babel dançante. Ótimo. É verdade.

 

Um povo hospitaleiro. Disso não se discorda.

 

Acorda. Acordei já. Sim. Este ano começou mais cedo. Cada ano isso muda.

 

Começa mais cedo. E acaba mais tarde. Deve ser. É  verdade. Este circuito cada vez mais divulgado. Se pagam caro os hotéis têm esse direito. De ver da janela. Maravilha. Para eles. Para os hotéis. Até para as janelas.

 

Não escutei. Fala mais alto. Não escutei ainda. Fala mais alto ainda. Não.

 

Não consegui sair de casa. Está tudo bloqueado. Sim. E ainda tem aqueles vendedores. Isso sem falar nas cozinhas nas ruas. Parece que todas as cozinhas do mundo estão na minha rua. Tem cheiro e fumaça de todo tipo.

 

Daria para fazer uma enquete. Se alguém se interessasse. Por enquetes. Mais do que pelas frituras. Sim. Tudo aqui é frito. Muda só a cor. Mas é frito. O cheiro de fritura pode até ser tocado. Fica denso.   

 

Sim. Também pensei a mesma coisa. Achei que ia cair para dentro da sala. A porta da varanda. Que trepidação. Tive até uma confusão mental. Como se estivessem tocando aqui na sala. A noite toda. O dia todo. A porta só trepida.

 

E faz um barulhinho fino. Do metal. Do vidro. Vai lá saber. Nem sei mais.

Impossível. Se deixar aberta - arrisco uma ruptura de tímpano. Se fechar - o calor fica insuportável. Sim. Tem que ligar o ar condicionado. O tempo todo.

 

Mas daí a trepidação parece que aumenta. Fosse eu Física diria que tem um novo efeito.  Aqui. O efeito tampão. Ou efeito sucção. Ou efeito dobrado. De tudo isso ao mesmo tempo. Sei lá. Também não sou Física. Só está me dando desespero. Porque se fecha e liga o ar - parece que a trepidação aumenta. E o cheiro das frituras - entram. Sei lá por onde. Só entram e ficam. Aqui dentro. Perene.

 

O telefone. Não escutei. Não dá para escutar mesmo. Nada além do ritmo. E dos convites. Milhões de vezes repetidos. Tira o pé do chão, galera. Se realmente obedecessem tantas vezes quanto solicitados - teríamos um novo espaço. Aéreo. Levitação. Nem indiano conseguiria. Tantos.  

 

Há quatro dias. Sem parar. Devem parar. Mas não aqui. Aqui nem bem passa um, já vem chegando outro. E a ordem prossegue. Tira o pé do chão, galera.

 

Você queria descer a ladeira. Para ver de perto. Ver o que exatamente.

 

Porque se não souber tirar o pé do chão - corre risco. De ficar com o pé no chão. Por uns dois anos. Com fraturas. Cominutivas. Nem pensar.

 

Não me diga. E ele correu. Por isso acabou no hospital. Dizem que não se pode correr. Tem que ficar parado. Procurando um cantinho. Para deixar passar a onda. Que onda. Ou melhor, que passar. Não passa. Só nas Cinzas. E cinzas de todo o tipo.

 

Tira o pé do chão, galera. Pela milionésima vez. Em quinze minutos.

 

PeloamordeDeus. Tirem logo esse raio de pé do chão.  A voz era de homem. Agora mudou. É de mulher. Não de homem. Não. De mulher. Não importa. Só a ordem importa.

 

Porta. Acho que vai quebrar a vidraça. Tem muita trepidação. Será que alguma vez me livro disso. Vou pedir para o Universo. Alguém tem que me ajudar. A tirar o pé – fora daqui.

 

Que silêncio. Absoluto. E os passarinhos mais ousados - cantando o seu refrão. Reconheci. É um bem-te-vi. A brisa está leve. Sim. Vou tomar um pouco de sol. Dar um mergulhinho. Está tão lindo o dia. E a cidade tão calada. Há apenas o som forte - do silêncio.

 

Aqui é só em determinado lugar. Ou pré-determinado. Estabelecido. Tem Lugar para isso. Nem sei se aqui mandam tirar o pé do chão. Vai quem gosta. E só quem gosta vai. Vai-Vai.

 

Liguei a televisão. No canal que retransmite de lá. A mocinha gritou no microfone. Tira o pé do chão, galera.  

 

Sorri. Leve. Solta. Voltamos para o sol. E para o nosso adorado silêncio – optativo.  

 

Com os pés – relaxadinhos – no chão.

    

 


Junho 04 2009

Se me contassem talvez não acreditasse. Parecia mesmo cena de filme.

Lá estava eu. E lá estava diante de mim. Todo o material espalhado. No chão. Pelo chão. A pasta abrira e caíra tudo. Gráficos. Separatas. Agenda. Tudo.

 

Fingi calma. Tranquilidade. Primeiro agradeci. Ao universo. Porque não acontecera lá dentro. Mas aqui fora. E nem caíra por sobre os trilhos. Caíra no melhor lugar que podia cair. Lembrei da minha avó. Sempre comentava.

 

O pior nem sempre é o pior, menina, o pior nem sempre é o pior. Procedia.

 

Por isso fiz o tal agradecimento. E até ri. Não nego que um pouco entre os dentes. Certo. E com os olhos nipônicos. É verdade. Um estilo raivoso-agradecido. Se é que isso existe. Mas se não existe – passou a existir. Mas enfim. Não é mesmo fácil. Administrar uma situação destas. Notei que alguns olhavam. Outros desviavam. Outros ainda olhavam até para cima. E nada havia em cima para olhar.  

 

Enfim. Abaixei. Comecei a juntar. Os papeis. E a possível serenidade.

 

Aquela mão. Esta foi a visão inicial. Em meio aos papeis. Aquela mão me entregava uma pequena pilha. Meio desalinhada. Mas já agrupada. Entre o pegar, aceitar e agradecer deve ter demorado toda a eternidade. Ou um milésimo de segundo. Impossível mensurar. Em seguida - o pulo. Com os papeis caindo novamente no chão. Tempo é relativo. Entendi agora. Toda aquela fórmula. Por que assim funcionou. O tempo presente. Passado. Futuro. Imediato. Retardado. Me virei para agradecer. Levantei os olhos.

 

Estendi a mão. E um outro fragmento do tempo se fez atuante.Se é que este é o termo correto.

 

Quantos anos. Muitos anos. Não nos víamos há muitos anos. E estava ele ali. Com os papeis na mão. E a agenda. Parecia cena de surrealismo.

 

Lembrei até do relógio escorrido.

 

Conseguimos rir. Juntamos mais uma vez os papeis. Sob todas as formas. Da real à metafórica.

 

Lembrei que ele adorava as metáforas. Adorava as figuras de Linguagem. Vai lá saber por que. Mas achava que a vida só tinha graça se lida assim. Através das muitas figuras de Linguagem.

 

Ele estava bem. Agora estava bem. A profissão - se colocada num gráfico - subira e descera durante este período. Riu quando olhou que eu segurava - gráficos. Mas, afinal, se recuperara.

 

Passara momentos difíceis. Muito difíceis. Emocional também. Parecia que só existia sempre uma possibilidade. Única. A errada. Porque só o errado vencia. Como se fosse uma moeda com o mesmo desenho. Nos dois lados.

 

Podia fazer o que fosse. Só dava errado. Lutara muito, lá ia a tal figura de Linguagem. Este hábito não perdera. Mas acrescentara algo. Um gesto se unia à palavra. Isso era novo.

 

Enfim lá um dia mudou. A situação mudou. Apareceu um certo. Comemorou. Com sutileza. Delicadeza e sigilo. Temeu que o errado voltasse. Poderia se sentir requisitado. Vai lá saber o que fazer nestas situações. Por isso escolheu o tal delicado sigilo. Mas não voltou. Desde aquela época. O certo permanecera alerta. E cotidiano. Ficara bem. De emoção. De situação. De profissão.

 

Estava envelhecido.  A tal moeda do mesmo desenho cobrara uma parte da sua pele. Dos seus cabelos. Do seu olhar. Mas conservava o sorriso. O de antes. E as piadinhas em volta do difícil. Do tempo difícil.

 

Perguntou por ele. Ficou feliz com o desfecho. Perguntou por ela. Lamentou as notícias tristes. Lembrava das noites de macarronada. Das risadas nas discussões de filmes. Do destempero dela. Esta a palavra perfeita. Ela sempre destemperada. Dos ímpetos de briga dos outros dois. Da solidão rebelde dela.

 

Parecia refazer um retrato. De cada um. Como se isso ajudasse.  O escoar do tempo. Ou das faltas.

 

Quando parou de falar e perguntar – me olhou. Senti que ficara triste.

 

Confessou. Muitas vezes não atendeu ao telefone. Para não ter que falar. Que contar. Agora entendia. Bobagem. E ele que sempre criticara a vaidade. Vai ver era por isso. Se sabia dominado. Pela vaidade.

 

Separamos os papeis. Rimos da metáfora. Demos um abraço. Pediu que avisasse aos outros. Trocamos os meios de contato. Dedicou um abraço especial para ele.

 

Cheguei em casa -  contei. Ficou surpreso. Comemorou o resultado feliz. Dele. E também dos papeis.

 

Agradeceu o abraço. Sorriu. Notei o olhar - de repente - um pouco distante.

 

Acho que também lembrou as noites de macarronada. Demos o assunto por encerrado.

 

Do jeito que estes assuntos devem - e podem -  ser encerrados. Com um talvez.

 

 


Maio 30 2009

Acordara assim. Plena de novas idéias. Ou talvez esvaziada das antigas. Não sabia ao certo. Mas sempre acolheu bem as incertezas. São ótimas conselheiras.

 

Avisou. Ou ameaçou. Vou mudar tudo. Nada mais de escutar. Chega de Filosofia. Teoria. Falação. Ia mudar até de endereço. Fazia gracejos. Vou colocar uma placa. Saiu. Não sabe se volta.

 

Surgiu uma alternativa. Lembrou da amiga. Dizia que ela adorava uma alternativa. Cada vez que escolhia uma alternativa - lembrava da amiga. Ou vai ver era o contrário. Cada vez que lembrava da amiga - escolhia uma alternativa.  Muitas vezes a ordem certa é a inversa. Justamente a inversa.

 

Mas acaba-se entendendo o contrário.

 

Acordou neste dia pensando nisso. Num comentário que escutara.

 

Comentaram que precisavam de uma funcionária. Achou esse título muito interessante. Nunca tinha sido uma funcionária. Aliás, nunca tinha feito uma entrevista formal. Destas de emprego. Na sua profissão não era imprescindível. Ninguém ganhava pela simpatia. Ou pela intenção. Só pelos conhecimentos. E as entrevistas eram quase provas. O que menos se fazia eram perguntas de cabeçalho. Mas não faltavam as de rodapé. Assim que ela entendia um contrato. De trabalho.

 

Mas enfim. Criou coragem e agendou a entrevista.

 

Passou um tempo escolhendo a roupa. Achou que estava demais. Achou que estava de menos. Revirou. Experimentou. Tirou. Trocou. Riu. Duas montanhas de roupa sobre a cama depois - e já estava pronta. Informal. Elegante. Despojada. Ar de desinteressada. Não queria parecer que estava com muita sede. Nem que o pote era tão importante. Deixou a sede e o pote para depois. Saiu.

 

Mandaram subir e aguardar. A sala era ampla. Um ar condicionado deixava o ambiente com jeito de outono daquela grande cidade. Sentou numa cadeira confortável. Giratória. Foi em meio ao giratório que ele entrou. Ela freou a cadeira. Meio sem graça. Mas ainda fingindo que nada tinha que ver. Nem com a sede nem com o pote.

 

Ele sentou em frente. Um tampo de vidro os separava. Deu uma olhada. Nele. Achou bonito. Cabelos grisalhos - rosto jovem. Mãos fortes - gestual delicado. Olhar sério - expressão tranqüila. Voz firme - sonoridade agradável.  Ele começou com as perguntas. Deviam ser as de praxe. As tais de cabeçalho. A primeira ela já respondeu entre um sim e um não. A segunda ela respondeu que concordava com a primeira parte. E assim foi. Na última – ele avisou que seria a última – ela sorriu. Sim. Poderia começar de imediato.

 

Começaria no dia seguinte. Pela manhã.

 

Saiu de lá feliz. Nunca tinha feito nada parecido. Sua vida profissional era o caminho oposto. Mas aprendeu algo. Aprendeu que se pode fazer o que quiser. Na vida a fora. Ou pela vida afora. Lamentou pelos menos afoitos.

 

Ficou muito feliz. Na volta para casa contou a eles. Riram muito. Acharam ótimo. Contou para ela. Não gostou. Achou que se minimizava.

 

Concordou com eles. Manteve firme a decisão.

 

No dia seguinte chegou cedo. Ao tal novo local. Ele estava lá. Esperando por ela. Apresentou aos outros funcionários. Ficaram surpresos. Acharam que ela não era o que falava. Não entendiam a troca da profissão. Ou o possível abandono da profissão. Estavam mais preocupados com a ordem. Do que curiosos com a desordem.

 

Ele orientou. Organizou a forma de começar - a trabalhar. Foi explicando em pequenos passos.  Ela entendendo em largos passos.

 

Com o tempo ficaram mais próximos. Conversavam sempre que podiam. Descobriram muito em comum. De música a livros. De filmes a sonhos. Sem contar as idéias. E o humor. O trabalho ficou agradável. Aprendera. Tivera seu primeiro sucesso. Deu até pulinhos de alegria. Ganhou um abraço dele.

 

Ficou lá por um ano. Depois retomou. Do Lugar de onde saíra. Retomou sua prática de graduação. Trocou a placa. Esta avisava. Voltei. Ele continuou. No cargo. Na função.

 

Hoje eles comemoram. O entrevistador. E a entrevistada. Oito anos. Mais precisamente - oito anos e três meses. De casados.

 

 


Maio 15 2009

Ficou parada. A boca aberta. Os olhos escancarados. Fria. Gelada. Paralisada. Parecia que só havia um movimento. O coração batia. E batia descompassado. Só o som do coração se escutava. Do coração dela.  Acho que não. Não foi só o dela. Todos deram sua contribuição. Com as batidas aceleradas. Em meio a um silêncio rigoroso. Quase silêncio de inverno.

 

Como aquilo pode acontecer. Em meio aos pulinhos e risinhos. Assim. De repente.O ambiente ficou como que congelado. Como quando se congela uma imagem. Uma foto congelada

 

Ele tinha decidido pela compra. Assim o fez. Escolheu o modelo desejado. Não poupou. Era uma decisão sem discussão. Objetiva. Sem figuras de Linguagem. Sem retórica convincente. Sem dialética. Assim. Crua e objetiva. Vou comprar. Comprou. Tela ampla. Todos os maravilhosos recursos da atual tecnologia. Backlight. Objeto de dar tanto orgulho quanto prazer. Por possuir.

 

Ficou linda. Num canto da sala. Com todos os equipamentos em espaços corretos. Conforto no ponto certo. Até uma mini adega completava o conjunto. Tudo calculado para dar toda a possibilidade de conforto.

 

Complementou. Veio o novo brinquedo. Daqueles que são pura festa com vantagens. Podia ser jogado com movimentos físicos além de dedinhos em controle. Maravilha. Tinha para todo gosto. Corrida. Esqui. Guerra. Travessia. Fitness. Boliche.

 

Alta sofisticação na mesma proporção que a alta satisfação. Assim ele ficou. Assim ele sentiu. Satisfeito. Quando viu tudo em funcionamento. Sorriu. Feliz. Um espaço lúdico. Mesmo que para gente já bem grande.

 

Decidiram por uma, também lúdica, inauguração. Convidaram amigos mais próximos. Queridos. Aceitaram. Comidinhas. Bebidinhas. Competição e risos. Na melhor forma de convivência. Concorrência esportiva. Sem angústias. Sem riscos. Com lealdade. Diversão pela diversão. Ela sempre muito delicada. Recebia os amigos com todos os cuidados. Para que todos se sentissem bem vindos. Acolhidos.

 

Depois de algumas competições escolheram continuar com um boliche.

 

Sugestão aceita de imediato. Primeiro eles. Muitos risos. Poucos acertos.

 

Chegou então na vez dela. Sempre fora muito boa em boliche. Assim pelo menos destacou. Nem bem a sugestão foi aceita. E já foi logo dizendo. De mim agora ninguém ganha. Disse rindo. Ficou de pé.

 

Já prática - dispensou determinados cuidados. Não prendeu o controle no pulso. Conforme indicado. Avisado. Até pressionado. Dispensou. Segurou o controle. Fez o gesto. Foi logo dizendo. Observem a pontuação. Assim. Em alto e confiante som. Orgulhosa das habilidades. E um risinho associado.

 

Ergueu a mão. Fez o gesto correto. Quando apertou o botãozinho. Não apertou.Não tinha mais botãozinho. O controle voou. Voou decidido. Qual mesmo uma bola de boliche desinformada. E lá se foi direto. Num strike, digamos, incorreto. Aquele som fino. Plasmático. Nem todo violino daria conta.

 

Partiu. Quebrou. A tela.

 

Parada. Ela ficou ali. De pé. A mão ainda erguida. Vazia. O escuro diante dela. E o silêncio. Salvo uma ou outra inspiração mais forte. Com um sonzinho tímido gutural acoplado.

 

Olhou para ele. Estava sentado atrás dela. Pálido. Os amigos. Pálidos.

 

Parecia até uma doença contagiosa súbita. Nem risos nem cores. Apenas o negro e a palidez.

 

Ele acalmou. Consolou. Acidentes acontecem. Tudo bem que falou gago. E nunca fora gago. Mas devia estar fazendo parte da tal doença súbita.

 

Os amigos ainda ficaram um pouco mais. Comentando. Repetindo. Solidarizando. Quando se despediram, ela os abraçou. Agradeceu, até sorriu.

 

Nem bem fechou a porta - chorou. Chorou. Chorou. Chorou a noite toda.

 

Discutiu metafísica. Recalculou até o horário de verão. Nada. Nada resolveu. Concluiu. Realidade é assim. Imutável.

 

Nem todas. Ainda bem. Algumas podem ser recicladas. Digamos assim. A solução se fez presente.

 

Ele curou a gagueira. Ambos curaram a palidez. Os amigos voltaram. A festa continuou de onde tinha parado. Ela não tira mais o prendedor do pulso. Como bracelete.

 

Mas sem strike.   

 


Maio 11 2009

Uma festa. Em casa deles. Eles que nunca fizeram uma confraternização. Mesmo com tantos anos de trabalho juntos. Sempre achei que não gostavam de misturar. Trabalho e social. Colegas e amigos. Amigos e família. Vai lá saber. Vai ver seguiam o estilo dos irmãos latinos-sofisticados.

 

Em lugar de trabalho não se faz amigos. Nem se tropeçar em algum. Até porque um bom trabalhador nem tropeça.

 

Mas enfim. Convidaram. Seria daquelas festas tamanho M. Nem muitos. Nem poucos. Sem sobras. Sem apertos. Eles sempre foram mesmo um casal ajustado.

 

Ela foi logo me avisando. Fora convidada. Estava feliz. Acho até que mais feliz que surpresa. Não sei bem. Tinha uma vida cheia de tarefas. Conciliar vida profissional e doméstica é como ser GG e ter que caber num P. Corre daqui. Acerta dali. Finge que não vê de cá. Controla de lá. Assim era a vida dela. E ainda tinha a vaidade. Muito vaidosa. Ai sim. Era GGG. Mas contida num PP. Disfarçava. Jurava que já acordava assim. Era divertido de ver.

 

No dia da festa resolveu ir ao tal salão. De beleza. Programou a agenda. Suspendeu os atendimentos com uma semana de antecedência. Foi tudo assim. Rigorosamente planejado. Se deu esse pequeno presente. Como se uma madame fosse. Aliás, madame, ela sempre foi. Sempre elegante. Gestual delicado. Delicadíssimo. Falava um Português corretíssimo.

 

Comentavam que até sabia Latim. Nunca a escutei pronunciar sequer uma gíria. Todas as frases com riqueza de vocabulário. Concordância verbal perfeita. Infinitivos adequados. Tinha uma postura de dar inveja.

 

Caminhava com tranqüilidade. Não importava se atrasada ou não. O caminhar era sempre compassado. Tinha um jeito de colocar os cabelos – sempre bem cuidados - para trás da orelha. Assim. Com os três últimos dedos. E fazia isso de uma forma tão lenta e suave que sugeria um ballet.

 

Leveza e definição. Difícil encontrar alguém mais refinada.

 

Mas nesse dia parecia que tudo estava errado. O dia da festa. Começou com a lista. Que recebeu na hora que ia sair de casa. Uma lista para compras em supermercado. Não tinha como ser evitada. A tarefa. Acatou. Quando foi entrar no carro notou algo como meio inclinado. Concluiu numa observação rápida. Pneu furado. Controlou-se. Avisou à Seguradora.

 

Demoraram mais que o previsto. Avisaram que foi por um erro no endereço. Ela absteve-se de qualquer resposta. Enfim trocaram o pneu. Já estava atrasada para o salão. E lá o horário era rigoroso. Se atrasasse colocavam outra pessoa no horário. E depois tinha que esperar uma vaga.

 

No supermercado as filas estavam enormes. E lentas. Cinco filas depois – estava enfim na fila da carne. Esta já a última da lista. E o tempo desatento a ela. Esperou. Colocou os cabelos para trás da orelha umas vinte vezes. Mas persistiu no estilo delicado – dos três últimos dedos. Chegou a vez - dela. Ia fazer o pedido quando uma senhora materializou-se em sua frente. E foi logo dizendo. Que estava ali. Só tinha saído rapidamente. Mas que o lugar era dela. Estava ali muito antes. Ela que não tinha prestado atenção. Falou assim. Você que não prestou atenção.

 

Houve um segundo de silêncio.

 

Ficou irreconhecível. Uma profusão de palavras nunca dantes pronunciadas.

 

Acredito que nem sequer pensadas. Não parecia Latim. Mas um novo manuseio de determinados verbetes. Nem filólogos, nem etimólogos dariam conta. Tamanha a rapidez com que ela as pronunciava. Em meio a este sincrônico ato verbal deu um tapa nos próprios cabelos. Com as costas da mão. Espalmada. Jogou para trás de qualquer jeito. Passou na frente da senhora recém-materializada. Que nada falou. Pareceu fazer até um gesto com os lábios. Acredito que até pensou em sugerir um novo armazenamento para a carne. Mas, prudente, calou-se. Ela pediu o que queria. Desafiou a senhora recém-materializada com o olhar. Pagou e saiu.

 

Na festa, à noite, já estava recuperada. Do gestual à fala. E estava bela. Sorridente. Eles felizes com seus convidados. E todos felizes pelo convite. Sentindo-se cada um – um privilegiado. Eles resolveram incorporar a família. Na festa. Colegas de trabalho e alguns familiares. Uma confraternização completa. Como uma exposição dos afetos.

 

Em determinado momento ele veio abraçado a uma senhora. Apresentou. Carinhoso. Orgulhoso.

 

Minha mãe.

 

Houve um segundo de silêncio.

 

A senhora olhou para ela. Ergueu a mão. Como um sinal de advertência. Apenas disse. Como se falasse soletrando. Sílaba por sílaba.

 

Já nos conhecemos.

 

Ela pediu aos céus. Uma rápida desmaterialização. Mas continuou ali. Em carne. E osso. Colocou, com os três últimos dedos, os cabelos para trás da orelha.

 

Respondeu. Acho que não.

 

Curvou, com elegância, a cabeça. Muda, saiu.

 

 


Maio 03 2009

Entraram os quatro.

 

Pela forma que ele entrou, previ novidades. O riso estava solto. Porém sereno. Não era um riso de irreverência. Ao contrário. Era de muita reverência. Estava com um certo ar de nobreza. Desde o virar de cabeça até o caminhar. Ele que sempre é tão afoito. Agitado. Estava assim. Com um estilo parcimonioso e elegante.

 

De repente, entendi. Trouxera a mãe. Para me apresentar. Ele a abraçou e avisou quem eu era. Lembrou a origem. A função. Ele já havia lhe falado antes. Agora era para unir imagem com relato. Ela me dirigiu um olhar sério, mas cúmplice. Foi o que me pareceu.

 

Ela viera da parte de cima do mapa. De uma região onde só as atitudes podem salvar. Palavras não causam bons efeitos.Talvez más conseqüências. São fatos diferentes.

A viagem fora longa. Difícil. Cansativa. Mas comentou que tinha tranquilidade em relação ao tempo. Ao difícil. E ao cansaço. Tudo tem um prazo. Portanto acaba.

 

Aguardou sem queixas o prazo ser cumprido. Para ver o filho. A neta que não conhecia. A nora. Os outros filhos não foram. Não dera tempo. Falou com um certo ar de resignação.

 

Tinha um rosto sereno. Expressão tímida, porém decidida. As mãos ásperas - expressavam carinho. As pernas um pouco arqueadas - denunciavam firmeza. A pele seca - tinha um toque morno. Sentou-se com recato - mas expôs seu estilo. Quando falava olhava nos olhos. Quando calava olhava para o chão. Parecia que só se dava de acordo com a necessidade. Nada desperdiçava.

 

A vida não tinha sido das mais fáceis. Comentamos da cisterna. Do nascimento deste seu filho. Do grito. Da água umedecendo a terra. Do balde caído. Da seca. Recontou a história. Lembrava da própria dor e do choro dele. Riu quando contou das amigas correndo. Apavoradas. Como se fosse o primeiro nascimento no mundo. Elas gritavam e choravam mais que eles dois. Ela que pediu calma. E foi dizendo o que fazer. Quando ficou de pé já foi com o filho no colo. Saíra de dentro dela para os braços dela. Ele fez um gracejo. Sobre a terceirização. Ela não riu. Continuou contando. Não precisou que ninguém o segurasse para ela. Uma mãe sabe como segurar seu filho. Seja qual for a situação. Olhou para ele. Como se só naquele momento lhe notasse a altura. Vi que se orgulhava dele. E de si própria. E olhou com um sorriso grato para a nora.

 

Um dia o marido a ofendeu. Desacatou. Não entendeu bem o motivo. Na pequena casa. Diante dos filhos. Quis agredi-la, mas se conteve. Só avisou. Vou embora. Antes que ele se retirasse - o olhar dela já se retirara dele. Não o olhou mais. Até o momento que saiu. E nunca mais o viu. Nem procurou ver. Um homem que dá as costas para a família não merece ser chamado. Ou convocado. E nunca mais falou dele ou sobre ele. Cuidou dos filhos. Como pode.

 

Quando ele veio de lá para cá - ela não chorou. Sentiu uma enorme tristeza.

 

Mas não chorou. Aprendeu a não gastar as lágrimas com tristezas. A tristeza sobrava lá de onde viera. Resolveu, vai lá saber por que, ser econômica com o uso das lágrimas. Ou usá-las sob suas próprias justificativas. Só chorava quando, feliz, se emocionava. Como no momento que o viu ao descer do ônibus. E viu a neta. Aí sim. Procedia. Chorou com alegria. Esbanjou lágrimas.

 

Chorou na sala mais uma vez. Ao pegar a neta no colo. E ver-lhe o riso. Acariciou-lhe a pele macia. O cabelinho. Arrumou a saiazinha dela. Discreta, secou uma ou outra lágrima mais insistente.

 

Na despedida abriu uma sacolinha. De dentro tirou algo como uma barra. Retangular. Pesada. Cabia nas duas mãos. Enroladinha num papel azul. Era um doce típico da sua região. Me entregou. Com o olhar mais carinhoso e afetuoso que faz tempo não encontro. E agradeceu. Em nome do filho. Da nora. Da neta. E da terra seca de onde viera. Fiz minhas as palavras dela. E acrescentei o nome dela ao meu agradecimento.

 

Caiu outra lágrima. Sorri. Compreendi. Ela estava feliz.


Abril 13 2009

Foram alguns dias de preparação. O casamento era importante. E havia sido convidada para ser madrinha. Ficara surpresa. Mas feliz. Muito feliz. 

 

Queria ir à altura. Do evento. Sem falar na sedução. Queria ir bela. Para que ele a visse - bela. E especial. Não sabia ainda. Estas coisas não servem.

 

Quando planejadas. Mas enfim. Nem tudo mesmo se sabe antes. De nada adianta a cultura. Os idiomas. Os estudos filosóficos. Aprendizado é coisa para depois. Solitário. Sempre. Processo retardado.

 

Escolhera uma estilista. Achou essencial. Uma mulher sempre entende destas situações. Decidida, foi até ela. Explicou o local. A função. A importância. A sedução. A temperatura.  A estilista olhou para ela. De cima a baixo. Depois de baixo a cima. Certo. Dos lados também. Lados devem ser algo fundamental para uma estilista. Porque foi onde mais demorou. Com o olhar. Séria. Refletindo. Ao menos parecia refletir. Porque ficou algum tempo em silêncio. Diante de um lápis e um croquis. Tentou até dar uma espiadinha. No desenho. Mas a estilista não se interessou. Em mostrar.

 

Depois saiu da frente dela. Subiu por uma escada. Demorou um pouco.

 

Talvez o suficiente. Para uma inspiração pertinente. De repente apareceu.

 

Desceu por uma outra escada. Ela até ficou tonta. Que interessante. Mas devia fazer parte da reflexão. Vai ver ela entendia nada. De reflexão. E de estilista. Muito menos de escadas. Mas ela voltou. Com um tecido. Uma cor. Achou indicado para ela. Sugeriu o modelo. Algo discreto. Mas carregado de mistério. Assim falou. A estilista.

 

Ela acolheu a idéia. O jeito era esse. Confiar na estilista. Das duas escadas. Confiou.

 

O casamento era em outra cidade. E lá a temperatura era oscilante. Por isso a estilista escolhera um modelo adaptável. Quase riu quando ela disse isso.

 

Lembrou de um carro. De um edredom. Só lembrou bobagem. Concluiu. Devia estar tensa. Isso só acontecia quando estava tensa. Não sorriu. Só escutou. E aceitou mais uma vez. Um modelo adaptável.

 

O modelo adaptável ficara bonito. Sentiu-se bonita. E acima de tudo adaptada. Agradeceu à estilista. Mas primeiro agradeceu a si própria. Tivera uma idéia excelente. Elegante. Mas sem falar no gasto. Este sim. Não merecia agradecimento algum. Era nada elegante.  Consolou-se. Lembrou do francês existencialista. Ele falava isso. Sobre uma verdadeira dama. Jamais saberia o preço das coisas. Relaxou. Ele devia saber o que falava. Esperava que a gerente do Banco concordasse. Ou no mínimo gostasse dele. Enfim. Isso ficaria para depois. Junto com o aprendizado.  

 

Arrumou malas. Arrumou bolsinha de maquillage. Arrumou sapato. Bolsa. Acessórios. Arrumou tudo.

 

Descobriu que muitas vezes o ato I sempre é mais belo. Que o ato II. Ou que a finalização.

 

Estava linda. Estava adequada. Mas não deu certo. Nada de sedução. Só de obrigação.  Nada de risos. Só sorrisos. Educados. Corteses.

 

A festa acabou tarde. Pensou na ambigüidade. Do acabou tarde.

 

Mantivera-se discreta. Elegante - até repetiria. Enfim. Nada a fazer. Fatos são fatos. Nada os modifica. No meio da noite acordou. Olhou o vestido no cabide. Inútil. Reto. Descarnado. Chorou. Pela presença das costas. Pela ausência das mãos. Chorou pelo calor da lágrima. Que descia calma. Disfarçada. Lenta. Chorou para saber que era. Que existia. Mesmo que pela lágrima.

 

Pela manhã levantou. Estava estranha. Não sabia bem o que era. Esta inspiração súbita. A angústia estava em alto padrão. Até riu. Do alto padrão. Adaptável e alto padrão. Aprendera algo com a estilista.

 

Procurou um jeito de expor. A sensação estranha. Mas de forma silenciosa. Discreta. Encontrou. Escreveu num papel qualquer que estava sobre a mesinha. Era a primeira vez que escrevia algo assim.

 

Algum tempo depois mostrou a um amigo. O escrito. Ele ficou surpreso. Achou lindo. Perguntou pelo autor. O nome. Respondeu tímida. Acho que estou com um encosto. Riram muito. Ele disse. Então cuida para este encosto não sair. Ele é muito bom.

 

Guardou a poesia. Vendeu o vestido num brechó.  

 

 


Março 29 2009

De repente lá estava a Vida emboscando os métodos.

 

Lembro o dia da chegada deles. De cada um em especial. Vai ver por que foi nesta época. Agora são dias de festejos. Tempo de festejos. A cada ano se renova a emoção. Eles sempre riem de mim. Por que a cada ano aviso que esta sim, é uma data especial. Pelos anos vividos. E eles sempre respondem. Que falo isso todo ano. É verdade.

 

Mas falo porque realmente acho. Que cada etapa vivida, seja de calendário, seja de emoção, é sempre única. Eis algo que não se pode repetir. Quando chega se bate palmas. No dia seguinte já acabou. E é seguir para aguardar a próxima. Que será, de novo, única.  

 

Chorei pelos dois. E dizem que só se chora pelo primeiro. Que a emoção é mais precipitada. Pela descoberta.  Pela iniciação. Sei lá mais o que dizem. Não conheço nada mais cantado. Em prosa e verso. Esculpido.  Pintado. Redesenhado. Referendado. Poderia aqui fazer um novo tratado.

 

Nem sei quantos já vi representados. De forma eterna. De forma prosaica. Dos sacros aos profanos. Do clássico ao cubismo. Sempre a busca pela representação perfeita. De um afeto. De uma nova função. Muitas vezes de uma esperança. Sobram estilos. Sobram cores. Sobram frases. Mas falta sempre a verdadeira exposição. Acho que afeto é assim. Uma força de expressão.  Eufemismo persistente diante do que realmente se sente.

 

De nada serve tanta informação prévia.  Experiência alheia. Teorias antigas. Modernas. Técnicas. Nada. Só no momento em que se instala é que cada uma vai poder sentir. E vai repetir. A constante busca da palavra perfeita. Da expressão perfeita. Para definir.

 

Avisei que não conseguia falar. Que estava perdendo a voz. Todos riram.

 

E ele disse em tom irônico. Que nunca tinha visto alguém falar tanto. E avisar que estava sem voz. Tudo isso antes. Imediatamente à tremedeira. Às tremedeiras, melhor dizendo. Porque tudo que aconteceu na primeira vez, aconteceu na segunda. Mesmo que com um hiato de alguns anos. Parecia reapresentação. Tudo igual. Mais uma vez. Tremi nas duas vezes.

 

Incontrolável. Tremia tanto. Sacudia todo o corpo deitado. Todos em volta riam. Todos eram amigos. Mas não compreendiam. Lembro de um detalhe especial. Por causa da tremedeira.  Seguraram meu queixo. E espantados comentavam.  Nunca souberam de alguém que precisasse ter o queixo segurado.  Neste tipo de situação. Para que a finalidade fosse cumprida.  Precisei. Seguraram com força. Bendigo até hoje esse ato de generosidade. Não me restaria um só dos necessários a uma boa mastigação.

 

Mandavam parar. Mandavam acalmar. As ordens vinham aos montes e de todos os lados. Mandaram até pensar em outra coisa. Nesta hora quase ri. Como. Como poderia pensar em outra coisa. Que coisa seria essa. Que boa idéia tiveram. Em segurar meu queixo. Assim pude transparecer educada. Que sorte. A deles. Pensamento não sai em legendas. Como nos desenhos animados. 

 

Como disse certa vez, o corpo não obedece a ordens. Pelo menos as de fora. Quando decide se comandar nada mais o impede.  E o meu estava se comandando do jeito que achava que devia. Tremer também é forma de expressão. É festejo. Hoje sei disso. Na época não sabia.

 

Só tremia.  Nunca mais tremi assim na vida. Só essas duas vezes.

 

Quando chegaram, cada um na sua época, o corpo parou de tremer. Chorei nas duas vezes. No início só falava e avisava que não tinha voz. No depois não conseguia falar. Como se a voz não tivesse mais importância alguma.  Por um instante me fiz silêncio.

 

O silêncio era diferente dos que já tinha vivido. Inegável.  Era silêncio povoado. De emoções mistas. E individuais. Não conseguia dividir com ninguém o que sentia. O que estava começando saber.  A conhecer. A aprender.

 

Me fiz colo. Me fiz olhar. E me desfiz e me refiz em sorrisos. Até hoje.

 

Não posso esquecer o poetinha que nos advertia deste – para sempre - logo depois. Dos pedidos fervorosos de salvação. Do choro de desespero por qualquer ameaça de sofrimento. Da solicitação eterna de proteção divina. Terrena. Angelical. Não há santo em descanso no depois. Nem bem se encerra um apelo e já vem muitos mais em seguida.

 

Agora se completam tantos anos. Nos festejos têm tantas vozes. Muitos se agregaram. Outros se foram. Somos mais que antes e menos que antes - ao mesmo tempo. Há lugares vazios nas fotos e lugares preenchidos na memória. Risos novos e lágrimas velhas. O inverso também procede.

 

Mas a magia da vida se faz valer. E faz valer a Vida. Continuando.
Ano após ano. A cada ano.


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