Blog de Lêda Rezende

Julho 14 2009

Daqui dá para ver com clareza. O gestual dele. O aspecto excepcional. A tranqüilidade de alguma forma adquirida. A ocupação de alguma forma conquistada.

 

Ficava ele ali. Na janela. Por horas. Brincando de bolhinha de sabão. Um potinho. O arco. E as bolhinhas se fazendo, voando e se desfazendo. Umas - maiores.  Outras - menores.  Não tem hora. Não tem turno. De repente ele começa a sua possível tarefa. Dentro da impossível ordem.

 

Sopra com delicadeza, embora o corpo seja forte e pesado. A cada bolhinha para e observa. Inclina-se um pouco para frente. Como um observador do percurso. Segue com o olhar. Talvez esta seja sua única forma de se libertar.

 

Diante de todo um contexto aprisionado.

 

Quem sabe expressa sua imobilidade assim. Pela mobilidade das bolhas. Ou se faz identificado. Pela curta mobilidade. Iguais a ele – elas também têm o caminho limitado. Ou o tempo. Mas diferentes dele – elas podem sair e voar. Mesmo que depois desapareçam. Como fora de si – e conduzidas pelo vento - partir.

 

Não parece ser importante o tempo de vida. Das bolhinhas. Mas o tempo de fabricação. Assim se pode chamar. O tempo que começam a voar por determinação dele. Libera as bolhinhas. Dá uma espiadinha. Vê a saída delas. E já retoma a produção. E repete o gestual. Por horas. Calmo. Sereno.

 

Como deveria ser todo autor. Diante da própria produção.

 

Houve uma vez uma festa de Natal. Podia se escutar as vozes. Os barulhos. Observando bem podia até escutar o olhar dele. O olhar vibrava. Ansioso pelo presente. Mexia as mãos. O corpo dançava um para lá e para cá com ritmo compassado.

 

Entregaram.

 

Alguém veio. Abriu bem a janela. Ele acompanhou. Prepararam. E ligaram a máquina. Uma máquina de fazer bolhinhas. Assim. Prática. Ligava e elas saiam. Simples. E numerosas. Saiam aos montes. Muitas. De uma só vez. E voavam pela janela a fora. Com altivez. Independência. E com um barulho próprio. Uma mágica ao alcance de um aperto de um botão.

 

A princípio ele olhou. Parado. Nem ergueu as mãos. Nem acompanhou com o olhar.

 

As bolhinhas saíram pela janela e ele entrou para a sala. Assim. De imediato. Como um ballet sem música. Sem tempo de perdas. Mas carregado de perda de tempo. Com sincronicidade. Mas sem simultaneidade. Assim ficou diante da máquina. Que independia da vontade dele. Que substituía sua rotina por um aperto de botão. Não sabia como lidar. Parecia temeroso. Como se tivesse perdido o controle. Da sua vida. Da sua janela.

 

Não comandava mais. Havia uma validade na quantidade. E a ele agora não mais pertencia. Vivia sob controle. Agora perdera seu único comando.

 

Assim parecia expor. Com a saída da janela. Com o descaso com as bolhas soltas. Dispersas. Aos montes. De repente deu as costas para elas. E sumiu para dentro da casa.

 

A máquina, solitária, lá ficou por um tempo obedecendo ao botão.

 

Parou de brincar. A janela se fechou. Não mais aparecia.

 

Um dia a janela foi aberta. Ele veio feliz. Parecia feliz. Com o potinho. O arco.

 

Mas algo se modificara.

 

Antes já chegava libertando as bolhinhas. Desta vez - primeiro olhou. Em volta. Para cima. Para baixo. Para os lados. Até para dentro da casa. Segurava o potinho com um gesto protetor. O arco entre eles. Apertadinho na mão. Talvez buscasse a traição. Ou o descontrole. Parecia procurar pela ausência, muito mais que pela presença. Buscava uma certeza. Talvez tenha aprendido que até as certezas oscilam. E nem sempre estão do lado favorável.

 

Depois de todo esse cuidado colocou o potinho na murada. Acariciou o arco. Mergulhou no potinho. E sorriu. As bolhinhas saíram pelo mundo afora. De novo. Mas desta vez sob sua orientação. Sob sua guarda.

 

E manteve a produção de acordo com a própria vontade. Exibindo no rosto a expressão feliz de quem cria. Mesmo que depois perdesse o controle. Não importava.

 

A criação é mais importante que o prazo da entrega. Ou da durabilidade.

 

 


Julho 08 2009

Acordou no horário habitual. Com a reclamação habitual.

Já. Nem vi o tempo passar. Nem vi o sono passar. Nem deu tempo de sonhar.

 

Isso é um absurdo. Um contra-senso.

 

Os sonhos já devem estar fazendo fila para poder sair. Vai ter sonho atropelado. Empurrado. Ou, quem sabe, caidinho fora da fila. Até os sonhos - sempre tem algum deles mais esperto. Outro mais lento. E vai vencer o mais sábio. Ou o mais amadurecido. O amadurecido observa mais tranqüilo. E sempre chega na hora acertada. Sonho jovem sempre é impetuoso.

 

Deve ser assim a formação do pesadelo. É apenas uma falta. De logística. De hierarquia. De ordem na saída. De respeito na fila. Enfim. Assim se constróem os pesadelos. Da falta de liberação organizada.

 

Mas assim fazia. Todos os dias. As mesmas queixas. Desta vez uma pequena diferença.

 

Resolveu dizer isso a ele. Talvez para dar vazão aos sonhos impossibilitados de sucederem. Resolveu formalizar verbalmente a queixa. E naquela hora. Tão cedo.

 

E formalizou. Ou melhor, tentou formalizar. Se assustou. Nada saiu da garganta. Ficou a princípio preocupada. Seria por conta do amontoado de sonhos. Alguma sufocação por excesso. Sonhos reunidos impedindo a realidade. Dava até para ser slogan.

 

Repetiu. Nada de novo. Simplesmente assim. A voz não saia. Não saia.

 

Tocou nos lábios. Precisava ter certeza de que se moviam. Sim. Moviam com segurança. Mas a voz não saia.

 

Ele dormia feliz e ausente de toda aquela mais nova alteração.

 

Acordara sem voz. Vai lá saber exatamente por que.

 

Lembrou. O dia tinha sido terrível.

 

Se somasse as horas de fala sem parar dariam quase sete horas. Explicara métodos. Avisara riscos. Complementara orientações. Recomendara prudência. Lembrou até de uma orientação filosófica. Disse a ela. Melhor relatar apenas o que fez e o que viu. Se externar opinião já virou pessoal. Lembre-se disso. Não esquecia o olhar dela. No início tão feroz. Olhar de salto alto. Depois tão temeroso. Olhar já de chinelinho. Enfim.

 

E ainda teve aquele telefonema. Tarde. Bem tarde. Ficou tensa. Com ela. Sabia dos perigos. Das causas e até dos efeitos. E se confirmasse. Como poderia ajudá-la. As dores da alma se somando às dores do corpo. Dela. Delas.

 

Lidou com idiossincrasias. Verossimilhanças. Teve de tudo. Só podia dar nisso.

 

Chegou de volta no final do dia. Cumpriu todo um ritual. Já estava até se acostumando. Era algo que detestava. Viver de véspera. Mas como o dia começava muito cedo não tinha opção. Ou o dia começaria mais cedo ainda. Fez o que tinha que ser feito. Organizou o dia seguinte.

 

Foi assim que adormeceu. Depois de um dia intenso. E um ritual cumprido.

 

Quase um cochilo. Foi nisso que pensou quando acordou. E recompôs toda a

véspera.

 

Riu. Na véspera reclamava. De viver de véspera. Agora reclamava. De viver do dia anterior.

 

Não deve ter sido à toa. Que acordara sem voz. Tentou novamente falar com ele. Desistiu. A voz não saia. Assunto encerrado.

 

Saiu ela - então. De corpo inteiro. Ou quase inteiro. Pensou. Se a voz emudece – o corpo cala. Mas não tinha certeza disso. Nem do contrário. Concluiu. Sem voz e sem sonho – a vida fica mais complicada. Riu. 

 

Seguiu os tais trilhos. Sem bondade e sem voz. Sem sonho. Mas com sono.

 

Enfim algo tinha. Não estava esvaziada de tudo. Tinha sono. Muito sono.

 

Com o passar do dia a voz deu algumas notas de presença. Tímida. Mas audível. O sono se foi.

 

Na volta para casa riu. Eis um dia diferente. Não dá para reclamar pelo menos de uma coisa. Monotonia. Isso jamais.

 

Torceu por muitos sonhos. Nesta noite.

 

 


Julho 06 2009

Fiquei olhando para ele. Sentado próximo a mim. Quase em minha frente. Quase. Falando. Por horas.

 

Vi quando chegou. Foi pontual. Na hora agendada – estava lá. Era o que parecia. Estar lá. Deveria conviver com aquele grupo há muito tempo.

 

Havia uma certa desenvoltura no caminhar entre eles. E todos o conheciam. Mas poucos se dirigiam a ele. Ou poucos ofereciam um espaço a ele. Ele cumprimentava efusivo. Exagerado - até poderia se dizer. Recebia de volta um riso social. Formal e polido. Mais ou menos assim.

 

Não sentou. Circulava entre o ambiente. Os passos fortes e rápidos. Mais fortes e rápidos que a situação solicitava. Carregando, sobre os sapatos, o verniz escuro da ansiedade.

 

A postura lembrava a de uma emergência. Como se tivesse vivendo um prazo a expirar. Passava de um canto a outro. Da porta à janela. Da janela à porta. Seu corpo parecia saído de uma dança flamenca. Esguio – mas exausto.

 

Esta a idéia que sugeria. Girava sobre si mesmo. Olhava para os lados. Para cima. Para baixo. Dava uma idéia de agitação. Muito mais interna que externa. A externa apenas coreografava a interna.

 

O olhar seguia o ritmo dos passos. Da dança. Cansado. Mas curioso. Olhar ávido. Ávido por retorno. Ávido por espaço. Ávido – talvez muito mais - por espelho. Mas era um olhar ambíguo. Como os passos. A busca parecia já vir com a certeza. Parecia conformado. Como se soubesse desde sempre o acolhimento que teria.

 

Comecei a entender. Atuava para si mesmo.

 

Ainda tinha o riso. Vez ou outra escapulia. Um riso alto. Frenético. Mas parecia ter o fim determinado. Como se o riso não tivesse destinatário. Era apenas uma obrigação do remetente – para o remetente. Os lábios continham o riso com a mesma força e rapidez dos passos.

 

Por fim escolheu uma mesa. Fazia dos objetos - íntimos companheiros. Acariciava a caneta. Dobrava e desdobrava o guardanapo. Percorria os dedos pelo copo de cima a baixo. Passava de leve os dedos pela toalha sobre a mesa. Assim - também - se amparava. Muito mais que nos passos - alegóricos em sua rapidez. Ou no olhar - míope de si mesmo. Menos ainda no riso aleatório.

 

E tão rápido quanto a escolha - começou a falar. Começou a expor.

 

Sentou-se diante deles. Ofereceu-se como um totem. Desfilou tabus.

 

Lembrei o mestre austríaco. Teria se encantado. Ou se desiludido de uma vez. Vai lá saber. São muitas as nuances da interpretação. Cabem – sempre - todos os tipos e gêneros.

 

Falava a idéia e contrapunha – sozinho - a idéia adversária. Fez um diálogo monologado. Ou um monólogo dialogado. Diante de todos. Discutiu. Concordou. Discordou. Recitou. Foi enfático em alguns momentos. Depois eufêmico por poucos instantes. Em seguida alheio. E repetia – quase matematicamente - esta sequência.

 

Sugeriu grifes. Citou filósofos. Redesenhou telas. Criticou conceitos. Exortou preconceitos. Ofereceu banquetes. Em nome da audiência. Fez da retórica uma dialética. E vice-versa. Desafiou paradoxos. A dança parecia não mais ter fim.

 

Alguém tentou um aparte. Ia discordar. Começou a fala com a palavra não.

 

Incauto. Ou inocente. Não se desafia um totem. Corre-se o risco imediato de ser imolado.

 

E assim foi. Não acabou de registrar a primeira nota e a regência se fez violenta. Alterou o tom de voz. A salada quase saiu do espaço que a continha. Uma taça balançou. O guardanapo encolheu.  

 

A vítima se recolheu. Se acautelou.

 

Notei que a mulher que o acompanhava apertou-lhe o braço. Num sinal de alerta. Sempre atentas. As mulheres. Não deve ser à toa que a preservação da espécie gira em volta delas.

 

Olhei para ele mais uma vez. Desta vez de forma bem mais disfarçada. Temi por outra imolação.

 

Diante da fala. Dos gestos. Dos objetos acariciados. Da luz do sol que vinha da janela. Diante de tanta citação. De tanta teoria. Não me lembro. Jamais. De ter visto alguém mais triste e solitário.

 

E o imitei. Concordei comigo mesma. Igual a ele. E desta forma me fiz mais próxima. Mesmo silenciosa. Tentei diminuir a solidão dele. Ao menos diante de mim para mim. Novamente igual a ele.

 

Conclui. Melhor mudar de mesa. Levantei e ri. Desta vez de forma bem menos disfarçada.

 

Ele me olhou - não devolveu o riso. O almoço acabou. Sai pensando. Se a solidão tem culpa. Ou desculpa.

 

 


Julho 05 2009

 

Querido:

        Não esqueça  de escovar os dentes deles.
  Falar para a médica sobre a vacinação, a carteirinha está na sacola
  Fale sobre as manchinhas atrás das orelhas deles

  Fale sobre a alimentação

  Pergunte se ela vai passar alguma vitamina

  Fale do dedo que a Marina não tira da boca e já está até machucado – (o que fazer?)

  Pergunte se já está na hora de sair das fraldas (o que podemos fazer?)

  Leva os exames – já coloquei na sacolinha, não achei o comprovante para pegar os outros. Acho que você levou para a Empresa e não trouxe. Leva as carteirinhas que dá para pegar.

  Lave o cabelo do Paulinho.

  O cabelo da Marina é só prender. Fala pra minha mãe fazer dois rabinhos que ela sabe.

  Dá um banho bem dado nos dois, tá?

  Ah! Traz o papelzinho que marca a altura e o peso deles para eu marcar depois na carteirinha...

  É isso. Estou indo sem querer, mas fazer o que... logo estou aí

  Um beijo

 

 

Gêmeos. Foi um susto a noticia. Eles mal tinham saído do juramento na saúde e na doença e lá estavam. Na alegria e na certeza. Sim. Eram dois. E um casal.

 

Entenderam a Vida. A arte da Vida. E a razão de viver. Entenderam tudo isso ao mesmo tempo.

 

A consulta era de rotina. Estava atrasada a fisiologia. Mas devia ser o cansaço. Viajaram logo depois da cerimônia. Na volta foram cuidar de organizar a casa nova. E isso incluía documentos e volta à rotina do trabalho. Nem se preocupou. Tinha engordado um pouco. Devia ter sido pela ansiedade. Da festa. Da viagem. De toda a mudança de vida. Da volta ao trabalho. Dos horários mudados. Estava explicado.

 

Quando a certeza é garantida - é sempre bom duvidar. A experiência é a arte de carregar – com segurança - muitas dúvidas. Assim foi a sabedoria do médico. Achou segurança demais.  Examinou. Solicitou um complemento. Era rápido. Eles, tranqüilos. Conversando e rindo.  

 

Veio o resultado. Foi cuidadoso. Perguntou se já tinham a vida arrumada.

Escutou que sim. Se estavam empregados. Escutou que sim. Se pensavam em ter filhos. Escutou um sim – mais tarde. Entendi.

 

O que vocês acham de sete meses. Acham muito tarde. Muito cedo.

 

Os que riam – silenciaram. O que silenciou – riu. Gêmeos.

 

Saíram do médico e voltaram para casa. Já da porta - no abrir da porta - a casa já não era a mesma que tinham deixado. De repente parecia tão pequena.

 

Horas antes sobrava espaço.

 

Foram a caminho do hospital combinando a decoração. Pensaram em comprar mais uma poltroninha. Quem sabe incorporar um dos quartos à sala. Seria o local da música. Mais um sofá. No terracinho – uma churrasqueira. Teriam tempo. Com calma a casa ficaria como queriam.

 

Na volta já era outra casa. Não a que eles fecharam a porta. E deram as costas. Agora abriam a porta. Olhavam de frente. Tão pequena. Não cabia mais nada. Nem poltroninha. Nem churrasqueira. Naquele minúsculo terraço. Nada mais de som. Muito menos de quarto incorporado.

 

Incorporada estava ela. Duplamente incorporada.  

 

De repente se deu conta. Nem soube dizer por que. Mas entendeu.O mundo das listas.

 

Havia este mundo paralelo. A lista do chá de cozinha. Depois a lista do casamento. Passando por uma lista de convidados. Até a empresa de turismo cooperara - uma lista de hotéis. Teve a do chá de bebê. Bebês. Duas listas. Com direito a cor. A lista das compras. Então assim era o mundo. Só não sabia como não tinha percebido. Que listas não finalizam. Nunca.

 

Agora estava ele ali. Mais uma vez – diante de uma lista.

 

Seguiu – rigorosamente. Com toda a atenção que uma lista merece.

 

Estava com os “listados” no colo. Lindos. Os rabinhos dela maravilhosos. Cheirosos após um banho bem dado. Dentinhos limpíssimos. Feliz. Felizes.

 

Na saída pegou o papelzinho com o peso e a altura para colocar - na lista de acompanhamento deles.

 

Riu. Se sentiu integrado ao mundo.

 

 


Julho 01 2009

Lembrou daquele texto. Ele falava mais ou menos assim - a pena parou.

 

Como se no meio do texto a pena tivesse parado. Ali. Estancada. Sem nada a dizer. Muito menos a declarar. Fez-se paralisia. Congelou. Atos. Não sentimentos.

 

Os sentimentos estavam tão abalados que não se davam conta. Não podiam continuar. Atropelavam-se. E ao mesmo tempo paralisavam. Sensação estranha.

 

Parecia que os fragmentos do tempo se afastavam. Deixando pedacinhos soltos. Como mosaicos abandonados – decompondo sua forma. O que era para ser continuação – virou passado. E como passado foi reportado.

 

Tudo numa mesma declarada inversão. Onde tinha que ter não tinha. Onde tinha que estar – já não mais existia.

 

De repente tudo ficara sem cor. Sem lastro. O alcance tinha sido maior que pudera imaginar.

 

A notícia viera junto com uma lágrima. Ficou ali escutando. Dizem os entendidos - em situações limites - falta chão. Parece uma metáfora sem importância. Ou uma analogia. Ou apenas uma comparação banalizada. Mas se é verdadeira não se sabe. Porque ali parecia o contrário. Sobrava chão. Muito chão. E não se sabia que lugar pisar. O que faltava era ar.

 

Se sentiu sufocada. Presa em algum ponto do discurso dela. Ficou assim. Suspensa na palavra. Presa na angústia. Paralisada na dor.

 

E ela em frente. Contando. Contendo. Relatando. Expondo a sua dor. A sua falta. O seu desamparo. Mostrando no corpo o resto inútil que lhe ficara.

 

Lembrou o Francês. Se uma perda é muito grande – a perda seguinte é das palavras. Procede. Teve abraço. Teve choro. Mas não teve palavra. Pelo menos a palavra certa. Deve existir uma só que seja. Que se diga. E que acalme. Proteja. Explique. Console.

 

Mas isso já é pedir demais a uma palavra. Ela vem em auxílio - em auxílio. Nunca em função. Parece que a palavra não tem função. Tem regra. Tem sinônimo. Tem antônimo. Tem até acento. Mas não tem função. Descobriu isso na hora. Na hora de verbalizar. Por que verbalizou silêncio.

 

Fez um esforço enorme. Para mover os lábios. Começou pelas letras. Tentou formar a palavra. Construir uma frase. Assim, desta forma. Como quem engatinha. Pensando em andar. E perdida naquele excesso de chão.

 

Não conseguiu falar. Ou melhor, conseguiu falar. Não conseguiu dizer.

 

Dizer da enormidade da dor compartilhada. Da compreensão da dor individualizada. Da certeza de uma dor materializada. Que até – de tão forte - podia ser tocada. E que não faltava chão. Sobrava espaço. Tinha agora ali, diante delas - um lugar vazio.

 

Foi tudo isso que quis dizer. Letra por letra. Mas só disse silêncio.

 

E paralisou diante da dor. Da ausência.

 

Quando ela saiu não sabia o que fazer. Com o dia. E fez o que tentou fazer com a palavra. Fez minuto a minuto. Depois as meias horas. Para depois completar o ciclo das horas. Seguiu então o compasso das horas inteiras. Fez o dia - apenas - cronológico.

 

E levou consigo os dias que não virão. Junto com este dia encerrado.

 

Haverá sempre um chão sobrando. Uma presença faltando. Haverá a ligação. Pelo elo faltante.

 

Uma ligação pela ausência. Fazendo assim bascular a impossível presença. Mas ainda assim - presença. Ou ainda assim – ausência.

 

Quando uma ordem é invertida – toda uma nova equação tem que ser estabelecida. E todo um tempo novo precisa ser – existencialmente - acreditado.

 

Ficou - em meio a este passar de dia cronológico - pensando nas idéias do filósofo alemão. Ele garantia que só a dor é positiva. Devia saber o que falava. 

 


Junho 28 2009

Nunca fizera algo sequer parecido. Sempre fora tímida. Recatada - como uma prima mais sarcástica a denominava. Quando queria ser mais cruel a chamava de recatadinha.

 

Estava sempre com expressão calma. Tão calma que até sugeria um conformismo. E devia ser. Porque de nada reclamava. Ou criticava. Enfim.

 

Vivia em um silêncio simples. Daqueles que nunca diz nada. Porque tem mesmo nada a dizer. Silêncio carregado de si mesmo.

 

Acordara cedo. Leu alguns jornais. Era um sábado chuvoso. Nublado. Cinza.

 

Ligou o computador.

 

Se alguém quisesse explicar o que seria um corte no tempo – ali estava. Materializado. Tudo mudara. Não o tempo. Estava ainda cinza e frio. Mas ela sim. Estava vermelha e acalorada.

 

Diante da tela. Agitada. Falando pelos dedinhos o que nunca falara pelos lábios. Pela vida toda. Na busca de encurtar o tédio usou a curiosidade. Nada melhor que a curiosidade para diagnosticar o tédio. E afastar as suas causas.  

Era uma sala de pessoas da mesma faixa de idade. Não do mesmo sexo. Nem da mesma disponibilidade. Mas estavam lá. Por certo com a mesma projeção que ela. Amparados pelos textos. Pelas palavras. Buscando mais semelhanças que diferenças. E encontrando mais diferenças que semelhanças.

 

Nem viu o tempo passar. Ele era mais objetivo. Perguntou o que queria saber. Respondeu o que queria ceder. Por horas ali ficaram. Tentando ler mais as entrelinhas que as linhas. Parecia um teste. Vocacional. Admissional.  Psico-social. Enfim passional.

 

Foi tudo tão rápido que já estavam até discutindo. Quase brigaram. Fizeram as pazes. Combinaram. Sim. Conheço. Vou lá ocasionalmente. Mas pode ser sim. O horário está perfeito. Até lá. Como assim. Vai ter que descobrir. Está certo. Saia vermelha. Só isso. Calça jeans não vale. Vou falar com todos lá.

 

Certo. Malha vermelha. Adorei. Combinado.

 

Desligou a tela. E parecia que ela se ligara. Numa voltagem alta. Porque começou a correr pela casa. Procurando saia. Blusa. Sandália. Sapato. Sandália. Alta. Baixa. Olhou para os dedos. Horríveis. Não os dedos. As unhas.

 

Telefonou para o salão. Não tinha mais reserva. Fez uma expressão de horror. A mocinha deve ter visto. Porque arrumou um horário em seguida.

 

Passou as mãos pelos cabelos. Não poderia ir assim. Telefonou de novo. Para o mesmo salão.  A esta altura a mocinha já estava permissiva. Foi um tal de pode sim. Claro. Pode deixar. Dá-se um jeito. Pode vir. Finalizou com um autoritário vem logo.

 

Obedeceu. Foi.

 

Sentiu um toque no braço. Você por aqui. Hoje. Que aconteceu. Você sempre tão sem vaidade. Decidiu assistir televisão de unhas pintadas. Riu.

 

Era a prima – a do recatada. Não poupava ironia. E se divertia. Parecia que nada mais tinha a fazer. A não ser perguntar e responder. Sim. Não aguardava por respostas. Satisfazia-se com as perguntas. Em parte. A outra parte era comentar a programação da noite. Não a convidaria porque sabia que ela não ia gostar. Poderia sentir sono cedo. E deixaria todos preocupados por voltar sozinha.

 

Por um segundo se calou. A prima do recatada. Talvez para buscar fôlego.

 

Procedimento correto. Porque foi nesta brecha que ela falou. E a prima quase- seriamente - perdeu o fôlego que – divertidamente - buscara.

 

Não iria. Obrigada. Por favor. Pinte de vermelho. Tenho um encontro. Hoje à noite. Pode deixar com cachos soltos. Não. Quero soltos. Nada de cabelos presos. Sim. Como ia dizendo. Tenho um encontro. Quando. Hoje. Pela manhã. Eu de camisola. Ele de cueca. Um encontro casual. Que deu certo.

 

Marcamos mais tarde. Para dar tempo de trocar a camisola. E ele cobrir a cueca. Depois explico com calma. Agora quero fazer uma massagem. E riu.

 

Riu mesmo.

 

Não desistiu. Não tremeu. Nem temeu. Escolheu a blusa. Colocou a saia vermelha. Combinado é combinado. Sandália. Fez o próprio reconhecimento diante do espelho. E saiu.

 

Ele chegou. Bela malha vermelha. Pensou mas não comentou. Ela se aproximou primeiro. Deu um beijo sorridente - mas cauteloso. Ele sorriu.

 

Falou qualquer coisa. Com o barulho do lugar ela não entendeu. Sorriu de volta. Ele indicou uma mesa. Ela aceitou. Escolheram bebidas. Ele fez um comentário. Você é sempre assim decidida. Ela negou. E se eu estivesse acompanhado. Ou esperando alguém. Por que você faria isso. Sabia que eu viria.  Ele fez um ar estranho. Ela notou. Mas desconsiderou.

 

De repente olhou para a porta de entrada. Do restaurante.

 

Lá estava. Bem ali. Um senhor. Com uma malha vermelha e um vasinho de flores. Pesquisava o ambiente por trás dos óculos.

 

Olhou para o seu parceiro de mesa. Entendeu as perguntas.

 

Riu. Só riu. Não tinha mesmo muito a fazer. Imaginou. Se a prima do recatada estivesse ali.

 

 

 


Junho 25 2009

 

A semana fora toda complicada. Aguardava o resultado. Não conseguia se concentrar.

 

E o que mais queria era se concentrar. Para esquecer que aguardava o resultado. Mas não havia jeito. Nem bem dava uma pequena tarefa por encerrada e lá vinha o pensamento. Melhor dizendo – uma cachoeira de pensamentos. Lembrou até do nome daquele filme. Sim. Uma torrente.

Mil teorias. Mil planos. Mil contradições. Não faltou o inevitável por que eu.

 

Entre raiva e condescendência. De si. Dos outros. Lembrou do russo. Mas não cometera crime algum. Mas também sabia. Crime nem sempre tem objeto e objetivo explícito. Em geral é implícito mesmo. E mesmo assim é crime. Se irritou com o russo.

 

Nunca imaginara. Que uma resposta provocasse tanta aflição. Aliás - não a resposta. A falta dela. Estava difícil conviver com a falta dela. Da resposta.

 

Queria comiseração.

 

Nem bem formulou este pensamento e já o retirou da lista. Nada mais triste que um olhar de comiseração. Receber esse olhar. Ler no outro a sua situação. Esse olhar só é maravilhoso quando não se precisa dele. Ai sim. É perfeito. Dá até para inclinar a cabeça. Uma quedinha para afagos. Fazer ar de mais comiseração.

 

Com motivo, não. É diferente. E divergente. Fica-se ainda mais destituída. Mais desorientada. Empobrecida de valor próprio. Doeria muito mais. Não brincaria com isso. Até se sentiu desanimada.

 

Ainda tinha uma outra questão. Quem iria buscar. O resultado. Ela sozinha. Ou solicitaria companhia. Mas quem escolheria. Ele ficaria muito tenso. E nem contara a ele. Como poderia falar assim. Vamos lá. Vamos juntos. Ele nada sabia. Não seria saudável. Detestou esta palavra. Ela era amiga, mas muito delicada. Ela também era muito ansiosa. E ela própria não gostava de se expor. Entendia que exposição só quando se está sob controle.  Caso contrário dá mesmo é em muito caso contrário.  

 

Ótimo. Grande idéia. Mandaria um moto boy. Do moto boy até riu.

 

Imaginou ele chegando. Trazendo o envelope. Ela já até derrubando o coitado. O capacete caindo. A moto despencada no chão. Ela arrancando o envelope das mãos dele. Ela abrindo. Se agarrando no pescoço dele.

 

Parava ai o pensamento. Se agarrando por que. Por que dera negativo. Ou porque dera positivo. E lá voltava ao pensamento número um.

 

Pior é não poder mandar acelerar o resultado. Quer dizer. Poder - podia.

 

Poderia se lamentar. Falar do excesso de angústia. Esbravejar. Falar alto. Chorar baixinho. Fazer uma verdadeira cena convincente. Mas onde se escondera a coragem. Ao menos isso aprendera. Coragem era algo evanescente. Aparecia e sumia numa rapidez além das medidas. Nem bem se sentia a presença, e ela já ia se ausentando.

 

Continuou trabalhando. Achava incrível ninguém perceber como ela estava agindo. Mudara alguns hábitos. Era um tal de água e cafezinho que pensou em pedir aumento – para pagar a conta da cantina. Só a mocinha da cantina deveria estar feliz. Nunca vendera tanto. Em tão pouco tempo. Enfim alguém estava feliz. Viva a mocinha da cantina.

 

Quase engasgou. Com o cafezinho. Notou que estava bebendo um gole de cada alternado. Café quente e água gelada. Viu isso pelo olhar da mocinha. Que discreta virou de lado. Foi mudar o canal da televisão. Procede.

 

O celular tocou. Escorregou da mão dela e caiu na latinha do lixo.

 

A colega olhou para ela e riu. Solta. Leve. Olhou o riso dela e pensou.

 

Suspendeu o pensamento. Melhor deixar assim. Sem pensamentos. Achou o celular entre os papeis. Ainda tocava.

 

Atendeu. Era de lá.

 

Pode vir buscar o resultado do exame, senhora. Claro, Já está pronto. Ele achou que quanto mais rápido melhor. Não, senhora. Não abro exames. Desculpe. Também não perguntei. A senhora virá buscar hoje ainda. Certo. Estarei aqui sim.

 

Vou sozinha. Pronto.

 

Decidiu pelo elevador. Era só uma escada. Mas achou que o elevador seria melhor. Teria companhia. Escada é solitária. Cada um sobe e desce e nem se olha. Só se afasta. Num elevador ninguém se afasta e se olha.

 

Achou que estava grave. Deveria já estar disseminado. E já no cérebro. Ninguém pensa tanta bobagem - tão rápido. Sorriu para a mocinha do elevador. Sorriu para todos no elevador.

 

Desceu. Entrou na sala. Disse o nome. Foram pegar o exame. Recebeu. Agradeceu.

 

Pelo jeito que falou até achou que falara em outro idioma. Um dialeto talvez. Nem ela mesma entendera o que dissera à mocinha. Sem importância. Ela lhe dera as costas. Atendia já outra pessoa.

 

Não abriu. Saiu. Optou pela escada. Não queria que ninguém a olhasse. E queria que se afastassem.

 

Era um momento daqueles de extrema solidão.

 

Abriu o resultado. No último degrau da escada. Já perto da saída. Estava escrito. Negativo. Negativo. Negativo.

 

Subiu a escada de volta. Desceu pelo elevador.

Queria agora que todos a olhassem. E não se afastassem.

 

Nunca mais se descuidaria por tanto tempo. Fez as pazes com o russo.

 

Nunca mais. Falou isso para a mocinha do elevador. Que a olhou sem nada entender. Mas sorriu.

 

 


Junho 24 2009

 

Estava ali. Sentadinha. Parecia tão pequena. Tão frágil. Mas estava decidida. Isso a fazia mais alta. Mais forte.


Decisão sempre provoca uma tri-dimensão. Na expressão. Na fala. No gestual.  Vem de dentro para fora. Causa impressão e denuncia posição.  


Eram muitos hematomas. No tórax. Nos braços. Na face. Um ferimento no lábio. Parecia que sentia uma dor abdominal. Passava a mão sobre a barriga de minutos em minutos. Já não chorava mais. Talvez tivesse já consumido seu estoque conceitual de lágrimas.


Ela se aproximou. Tinha uma prancheta nas mãos. Levou-a até um lugar reservado.


Uma reserva relativa - o corpo expunha as marcas de uma situação.


Não sabia bem o que tinha dito. Achava que fora nada. Em excesso. Ou tão provocador. Mas ele estava irritado. E daí só se lembra da dor. No corpo. Muita. Lembra que pediu piedade. Usou esta palavra. Palavra errada. Ele se descontrolou mais. Quando escutou o pedido de piedade. Não parava. Ela caiu e levantou várias vezes. Até que não conseguiu mais levantar. Ele saiu.


Passou um tempo. Com ajuda de uma mesa próxima, virada, conseguiu ficar de pé. E pediu ajuda. Agora estava ali. Diante de exames e curativos. E perguntas. E desconfianças.


Sim. Sempre há quem olhe com desconfiança. Porta-se junto com as marcas – as possibilidades de culpa. Assim parecia ler no olhar dela. Mas nada falou. Estava cansada.  


Outra pessoa entra na sala - e avisa. Ele está aí. Quer falar com ela. Informamos que dependeria dela. Se aceita falar ou não. Ela terá que dar queixa para que alguma atitude Legal possa ser tomada.


Ela disse que não precisava repetir. Ela escutava. E estava ali. Falavam como se ela estivesse ausente. Mas ela estava ali. Sim. Poderia falar com ele. Poderia deixá-lo entrar. Alguém repetiu. Está certa disso. Ela confirmou com um meneio de cabeça.


Ele entrou. Olhou para ela com ar de surpresa. Tentou se aproximar. Ela ergueu a mão. Não. Só queria que visse de perto. O que fez. O resultado do que fez. Só isso. Agora vou registrar a queixa.


Ele repetiu o ar de surpresa. Por que isso. Não precisa. Perdão. Nunca mais vai acontecer. Você não sabe o dia que tive hoje. E depois ainda teve aquela ida rápida ao bar. Deve ter sido por isso. Deixa disso. Vamos voltar para nossa casa. Você não tem ninguém. Você sabe disso. Não vai ter quem cuide de você. Não vai ter quem lhe sustente. Vai morar onde. Nas ruas. Na casa de alguma colega. Sabe que não vai ter jeito. Esquece isso e vamos embora. Não posso perder meu emprego por uma bobagem de uma briga em casa. Faz favor. Nunca mais vai acontecer. Você sabe que lhe amo. E temos os nossos planos. Vou ao seu emprego. Digo que você ficou doente. Eles vão entender. Uns dias em casa e - tudo voltará ao normal.


Assim ele falou. Assim ela escutou. Sentada na maca. Tocando a barriga dolorida. Abrindo o olho com dificuldade.


Ele repetiu. Vai trabalhar muito. Vai ficar sozinha. Não vai ter quem lhe proteja. Não vai encontrar mais companhia. Vai viver na solidão. Esperando que alguém lhe queira um dia. Mas você não vai conseguir.


Falou já irritado. A enfermeira deu um passo à frente. Olhou para a porta. O segurança caminhava já em direção à sala. Ele falara alto.


Nessa hora ela riu. Ou esboçou um riso. Então era assim que seria a vida dela. Dali para frente. Não entendeu a diferença. Dali para trás. Sempre fora solitária. Trabalhava muito. Não tinha beijo. Não tinha abraço. E agora ele dizia isso. Enfim. Até ficou grata a ele. Ele formalizara o que ela vivia sem assimilar.


Mandou que ele saísse. Pediu um espelho. Chorou. Diante do espelho. Da sua imagem retorcida. Distorcida. Ferida.


Quando acabou o curativo e os exames necessários – registrou a queixa.


Muito tempo depois a re-encontrei. Tinha uma expressão tranqüila. Morava sozinha. Comprara sua moradia. Assim se referiu. Tinha sido promovida no emprego. Estava bem. Sorria com suavidade.


Não perguntei pelo percurso. Pelo discurso. Pelas dores. Nem pelos amores. Apenas a abracei. 


 


Junho 21 2009

Ele se fora.

 

Tempos depois que se deu conta. Nunca se sentira tão só na vida toda. Até aquele dia. Quando ele se foi. Solidão. Ampla e irrestrita. Fiel. Apegada a ela.

 

Na cidade para onde se mudara com ele não tinha parentes. Nem padrinhos. Nem comadres. Pensou isso e até riu. Tinha amigos. Mas não tinha ombro amigo. Isso veio descobrir na época. A diferença entre amigo e ombro amigo. É muito mais que filosófica. Ou conceitual. É material. Assim. Nua e crua verdade. Talvez melhor definindo. É factual.

 

Espalhou as cinzas onde ele pediu. Junto com os filhos. Ainda menores. Obedeceu ao pedido. Cumpriu as promessas.

 

E se viu só. Duas crianças. Sem a casa – ele vendera pouco antes de partir. Sem o carro – ele fizera o mesmo.  Num pequeno imóvel alugado. Desconfortável. Amontoado. Cobrira as janelas com um papel. Da rua se via a intimidade dela.

 

Sempre repetia uma frase. Página virada. Página virada quer dizer muito. Tem relação com o tempo. Tem relação com o espaço. Tem relação com o ato. E foi desse tripé que se amparou.

 

O tempo. Esse foi sua primeira intervenção. Noite e dia passaram a ter um só relógio. Nem sol. Nem lua. Rapidamente vistoriou papéis. Aprendeu a ler documentos jurídicos. A interpretar cantinhos de seguros. Leu todas as letras minúsculas – e põe minúsculas nisso – dos contratos. Estudou tanto que até discutiu com advogados. Com contadores. E os convenceu.

 

Vencer já era uma outra etapa. Agora precisava primeiro convencer. Convenceu. Isso em tempo recorde. Em menos de um mês deu entrada em protocolos nunca dantes imaginados. A cada resposta tediosa que escutava de é só aguardar – devia fazer um olhar especial. Especial de assustador.

Porque todos emendavam. E garanto que vai ser logo. Descobriu assim que se pode domesticar até o tempo.

 

O espaço. Concluiu antes de qualquer aviso. Não poderia continuar ali. Naquele lugar exposto. Eles que sempre foram tão recatados. E decidiu que iria ser dona de novo. Entendeu bem o significado de Casa Própria. Aí cabiam as letras maiúsculas. Aproveitou todas as brechas da sua profissão.

 

Montou um novo viés. A aceitação foi excelente. Juntou daqui. Catou dali. Economizou de lá. Em dois meses já estava se mudando. Desta vez para um lugar bem alto. Vigésimo andar. Devassado talvez por algum passarinho mais afoito. Apenas.

 

Eles ficaram felizes. Comemoraram o quarto novo. Individual. Com seus códigos e insígnias. Nesta noite dormiu tranqüila. Sentiu que albergando – se albergava. Antes de dormir olhou em volta. Sorriu. Discreta - chorou.

 

Dormiu com tanta segurança que pela manhã até perdeu a hora. Todos riram. Isso nunca acontecia a ela. E todos gostaram de voltar a rir em conjunto. Foi um desjejum perfeito. Do corpo e da alma.

 

O ato. Organizou a rotina. Horários. Compromissos. E cada um fizesse a sua parte. Para que todos pudessem usufruir de uma tranqüilidade comunitária. Esta virou a palavra em seguida ao ato. Não sabia se esta era a ordem certa. Palavra - primeiro.  Ato - depois. Ou, ato primeiro - palavra depois. Fazia tempo que não pensava mais no Fiat Lux. Agora a sincronicidade se fazia necessária e impositiva. Leis teriam que ser cumpridas. Os filhos entenderam.  Se não entenderam – aceitaram.  Isso era o de menos. O importante era prosseguir com maturidade.

 

Até ria quando pensava isso. Maturidade é coisa de quem tem tempo. Para ficar com pequenos devaneios. Para extrair grandes conclusões. Ela não tinha dedicação para tanto. Para a filosofia. Estava - cada dia mais - pragmática. E isso agora era amadurecimento. Pragmatismo. Que fiquem os desavisados com suas conclusões igualmente desavisadas.

 

Teve uma instante de contra-senso. Para dar conta – perdeu as contas. Em meio a papéis e decretos – comia. Barras e barras de chocolate. Nem sabia quantos. E a noite ficava mais doce. Esta a desculpa interior. Interior.

 

Porque o exterior se impunha sem desculpas. Foram quinze quilos. Este o saldo da tal página virada.  

 

Mãos à obra. Nada de excessos. Se auto-limitou. Lá se foram os quinze invasivos quilos. Cabelos cortados. Tingidos. Luzes. O que mais gostou.

 

Também era uma adoradora das metáforas. Luzes nos cabelos.

 

Com sua casa. Com seu carro. Com seus filhos. Com sua profissão em atividade. Deu conta.

 

Se perdeu algo nesse meio tempo – nem notou. Meio tempo. Assim poderia se resumir até de forma poética.

 

Meio tempo. Ação inteira. Espaço completo. Agora sim poderia dizer aquela palavra - que no começo se sentia tímida.

 

Ela vencera.

 

 


Junho 20 2009

Ela ia falando. Eu ia acreditando. Ela não era de criar contos. Ou de sublimar encontros. Era de efetivar desencontros. Se não estava bom – destituía. Por isso fui acreditando quando avisou. Acabou.

 

Ele ia viajar. Passaria trinta dias fora a serviço da empresa. Naquele país privilegiado. Boa música. Maravilhosas orquestras. Vinhos de especiais safras. Bosques. Rio com nome de valsa. Para completar - até aquelas tortas irrecusáveis. Era bem para lá que ele iria. E para lá ele foi.

 

Observou. Não sentiu saudade da parte dele. Nem uma mínima expressão de quanto-tempo-longe. Sentiu que ia feliz. E que surgira um certo ar juvenil. Juvenil até demais. Olhou. Mudou o ângulo do olhar. Quis ser a mais justa e o menos paranóica possível.  Respirou.

 

Decidiu pesquisar. No caso de estar errada – pediria desculpas. Mas não era mulher de julgamentos errados. Era boa nisso. A própria profissão lhe exigira e lhe qualificara desta forma. Era boa em avaliações. Por isso – mesmo sabedora antecipada – temeu. E tremeu.

 

Abriu a mala. A dele. Perto da hora da saída. Ele – desatento - dava os últimos retoques na imagem. Não a viu abrir. Ainda bem. Porque o olhar dela fora da ordem do selvagem. Do devastador.

 

Encontrou. Vários presentinhos. Que delicadeza. Deveria ser uma princesinha. Sim. Por certo não era para ele usar. Eis algo que tinha absoluta certeza. Esboçou até um risinho. Mas daqueles tetânicos. Com trismo. As crisálidas devem ter trabalhado só para aquelas compras. Eram realmente belas sedas. Suaves ao toque. Belas cores. Fortes. Sedutoras. Mas delicadas no recorte.

 

Agiu.

 

Fechou a mala. Deixou dentro as lindas caixinhas intactas – porém ocas das delicadezas. E ela. Ali. completamente fora - plena de tristeza.

 

Ele se despediu. 

 

Um abraço mais rápido. Um beijo menos efusivo. Não precisa me levar. O motorista virá. Fica em casa mesmo. Olhou para trás mais uma vez ao entrar no carro. Comentou algo sobre a casa. Deu mais um adeus. E saiu.  Assim. Como um ato perfeito de premonição. Ou como um ballet contemporâneo. Cada dançarino com seu ritmo. Mas num mesmo palco.

 

E assim pareceu ser.

 

Enquanto ele de lá se assustava. Ela daqui se mobilizava. Discussões. Exageros. Emoções. Desculpas. Perdões. Nada resolveu. Avisou que era já um assunto encerrado. Um mês se passou.

 

Comecei a rir. Não foi à toa que aquele filósofo diplomata Francês ganhou o ilustre prêmio.  Entendi muito bem o que ele explicava sobre o riso. É preciso exceder duas vezes o trágico para que seja cômico. Começou a ficar cômico.

 

Assunto encerrado é o termo mais flexível que se utiliza. Ou que se desconsidera. Todos buscam a nota de rodapé. Sempre se espera uma báscula. Ele não fugiu à tal regra.

 

Voltou.

 

Chegou com as malas. Tentou abrir a porta. Não conseguiu. A chave desobedecia. Ou a fechadura não reagia. Compreendeu de imediato. Esbravejou. Um homem tão ilustre. Esbravejou.

 

Ela firme – mas assustada - telefonou para aquele número hollywoodiano. Sim. Porque até aquele dia só o reconhecia por filmes. O tal número. Veio o reforço. Ele desconsiderou. Também fez outra ligação. Para o mesmo número. A esta altura já mais suburbano que hollywoodiano. Veio outro reforço.

 

Uma porta.

 

De um lado – de dentro – ela. E sua decisão.  

Do outro lado – de fora – ele. E sua intenção.

 

Para completar as malas. Duas policias. E a porta. Imóvel. Fria. Só não diria ausente porque esta palavra não cabia. Mas ficava ali. As policias negociavam entre si. Alguém tinha que ser convencido. Demorou. Mas enfim - um consenso.

 

A porta não abriu. Ele deu as costas e se foi. Ela foi para o quarto. 

 

Nesta noite chorou. Toda a noite. Se culpou. Se recriminou. Se descabelou. Se perdoou. E se curou.

 

Não cedeu. Sabia que a concessão lhe cobraria um preço maior que a possível solidão anunciada. E o que está destituído – não pode ser restituído.

 

Pensou algo por aí. Pensou muito mais. Talvez nunca tenha pensado tanto durante uma noite. E teve mais certeza quando a noite se foi. Concluiu. No final cada um é refém dos próprios atos. Que cuide muito bem, então, do próprio cativeiro.

 

Pela manhã abriu a porta. Saiu. Para o trabalho. Para a responsabilidade. Para os propósitos e os projetos.

 

Nada quis. Nada pediu. Só caminhou no percurso que escolheu.

 

E recuperou a si mesma. Por inteiro.

 

 


Junho 19 2009

Morara toda a vida lá. Numa cidadezinha onde a terra, o sol, a lua, a pouca chuva - eram as fronteiras e as sem-fronteiras conhecidas.

 

Apaixonara-se. Talvez. Mas ele disse que iam morar juntos. Que ia cuidar dela. Acreditou. Talvez.

 

Ficou grávida. Nem chegaram a morar juntos. Nem ele cuidou dela. Foi não-sabe-para-onde. Um lugar por certo bem distante. Não soube mais dele.

 

Viveu de talvez. Foi amparada pelos parentes. Desamparada pelos mesmos parentes. Acolhida e cobrada. Não tem rima, mas tem realidade. Talvez.

 

O tempo passou. Numa conta certa. A barriga cresceu. Sentiu uma dor.

 

Talvez tivesse chegado a hora. Assim falaram para ela. Foi para um pequeno hospital. Nasceu. Menino. Bem pequenino. Deu o nome do santo do dia. Viu num calendário do hospital. Decidiu. Seria este o nome dele. Foi o primeiro nome que viu depois que ele nasceu. O santo ajudaria. Confiou nos sinais.

 

Notou que estavam todos um pouco sérios. Começaram uma explicação. Curta. Mas prolongada. Para quem não sabia muito bem o que explicar.

 

Assim pensou.

 

Segundo entendeu do médico ele tinha um probleminha. Mas quem sabe teria alguma solução. Talvez. Precisaria de muitos exames. Na cidadezinha não havia possibilidade.

 

Assim começou a tecer a poesia dela.

 

Com a ajuda de amigos e vizinhos conseguiu uma consulta numa cidade próxima. Talvez melhor equipada. Nada concluíram. Nem diagnóstico. Nem prognóstico.

 

E de versinho em versinho chegou até a cidade grande. Enorme. Uma viagem longa. Difícil. Mas enfrentou. Todo o tempo. Noite e dia sem dormir. Cuidava do filho no espaço minúsculo do assento onde estava.

 

Quando chegou nem sabia bem onde - e já estava no hospital. Com o filho. Se sentiu igual a ele. Sem prognóstico. Mas aguardou.

 

Estava muito magra. Tinha os músculos dos braços bem marcados. Era bem jovem ainda. Mas as marcas da pele desconsideravam a cronologia. Ou o contrário. As mãos rudes e ásperas pareciam leves. Tocava os cabelos do filho com muita suavidade.

 

Sentada com ele no colo escutou o que buscara. Uma certeza. Qualquer uma serviria. Não poderia era administrar os não-sei. Não suportaria mais talvez. O saber lhe dava nomes. Diminuía a angústia. Permitia o medo.

 

Medo é mais fácil de assimilar. Porque já se sabe do que é. Na angústia fica-se balançando numa dor que não tem vínculo. Nem com o corpo, nem com a alma.

 

Estava cansada de talvez. 

 

Definido. A doença era sem resgate. Haveria uma aparente evolução física normal - tempo de calmaria. Assim tentava entender. Depois uma queda na evolução natural - até a fase terminal. Não seria muito curta. Mas também não seria muito longa. Passaria por vários estágios. Seriam necessárias algumas intervenções. Algumas mais complicadas. Outras mais simples. Mas faria muitas delas.

 

Foi-lhe dito assim. Com delicadeza. Mas com a sinceridade necessária.

 

Escutou. Compreendeu.

 

Abraçou o filho. Sorriu para ele. Disse com um sotaque forte. Vamos tocando a vida. Já chegamos até aqui. Parecia impossível. E já chegamos. Agora vamos continuar. Consegui um lugar para nós dois morarmos. E um trabalho que posso também ficar com ele. Vou mudar. Não volto mais para lá. Aqui ele terá melhores cuidados. De onde vim - vai ter nunca o que tem aqui. 

 

Olhou em volta. Para cima. Para as paredes. Deu a impressão de que olhava toda a cidade. Daquela cadeirinha onde estava sentada – visualizava a geografia. Um vôo além do marcado. Dimensionava o espaço numa forma de reduzi-lo. Do tempo já entendera. E não queria mais discussão sobre quanto. Nem quando. Escolhera apenas o onde. Isso era o que entenderia dali em diante. Do onde.

 

Falou com a métrica certa. Uma estrofe perfeita. Onde as palavras faziam marcações corretas.

 

Não havia queixa. Não destacava lamentos. Muito menos referência a sorte. Ou à falta dela.

 

Havia emoção. Solidão. Intenção. Ela era toda a atemporalidade.

 

Quando levantou sorriu com ar de criança. Talvez o único instante em que a idade cronológica se igualou à aparente. Pareceu tão frágil. Tão assustada.

 

Mas se recompôs rápido. No instante seguinte já carregava o filho. A esperança. As certezas. E a força. Visível nas veias dilatadas do braço fino, mas musculoso. Na sacola que segurava tinha o desenho de uma flor.

 

Tinha dor. Mas tinha flor. Tinha rima. Tinha certeza. Tinha valor. Tinha clareza. Tinha pranto. Tinha santo. Ele tinha partido. Ele tinha nascido.

 

 

Somando tudo, tinha tanto. 

 

 



Junho 17 2009

O convite chegou de repente. No começo de uma noite de muito calor - e pouca opção.

 

Convidava para o casamento dele. De repente - este virou o termo repetido. Porque as lembranças iam chegando de repente. E aos montes. Como dizia a minha avó. Só as lembranças nos comandam, menina, só as lembranças nos comandam. Ri sozinha.

 

Posso sim. Posso falar agora. Que aconteceu. Que voz tristinha. Sim. É arriscado. O período. Pode acontecer, sim. Sua mãe não vai gostar mesmo. Mas sossega. Nada vai acontecer. Alguém Cuida da juventude hormonal. Fica calmo.

 

Ainda bem. Acalmou agora. Mas faz favor. Veja se toma mais cuidado. Eu sei que é difícil. Mas a adolescência também tem mais ocupações. Além desta específica. Ainda bem que voltou a rir.

 

Pode lógico. Passa a semana aqui. Não importa se acabamos de nos mudar. Que graça tem uma casa se não for para receber os amigos. Diz a ele que pode vir. Sim.

 

Só rindo. Então vai ficar o dia todo aí. Em frente a este aquecedor. Vai ficar bem passado, isso sim. Tem razão. A temperatura aqui nem de longe está lembrando a de lá. Sei disso. Sim. Sinto saudades. Mas tinha que vir. E vim.

 

Assim. Sem muita dialética. Dialética virou foi queixo tremendo. De frio. Toma mais um. Edredom de plumas. Esse deve esquentar. Só cuida para não causar um incêndio. Com o aquecedor ligado o dia todo. Vai levar o aquecedor para o exame - também. Prometo nem vou rir mais.

 

Não nos víamos há anos. Muitos anos. Desde aquele último inverno. O do aquecedor acoplado. Ao corpo. Não sabia que ele havia sido requisitado. Soube na hora. Viera comemorar com o amigo de toda a vida. De pequenos a adultos. Mesmo distantes – sempre presentes. Nas noticias. Nas opiniões. Nos acertos. Nas profissões. Nas decisões. Nas escolhas afetivas.  

 

Nos encontramos no cortejo. Me viu. Veio feliz.  Em direção a mim. No dia exato e no momento exato. De toda aquela matrimonial confusão. Brinco perdido. Chuva sob marquise. Foco de luz nas costas. Gata assustada em sofá. Ameaça de desmaios em altar. Ele chegou. Sorrindo. Com aquele sorriso leve. Comemorativo. Abriu os braços. Não parava de me beijar, de me abraçar. Repetia meu nome mil vezes. E ria. Fiquei emocionada. Ainda bem. Que deixei este tipo de alegria plantada. Para ser colhida num reencontro.

 

Há uma certa fase da vida que as pessoas não sorriem simplesmente. Elas celebram. Comemoram. Riso tem uma outra equivalência. E quando essa equivalência desaparece e fica só o riso – muitos chamam de amadurecimento. As celebrações se recolhem. Já não há mais tanto festejo.  

 

Tem gente que já nasce com o riso amadurecido. E há os mais afortunados que o resguardam de qualquer distrofia. Às vezes amadurecer também equivale a uma distrofia. Mas enfim. Lá estava ele.

 

Cresceu belo. Forte. Saudável. Competente.  Brilhante. Mas manteve o riso comemorativo. Amadureceu sem se tornar um distrófico emocional.

 

Telefonou para fazer o convite. Fazia questão. Que lá estivéssemos. Casaria lá. Na cidade de onde vim. O trajeto se invertia. Agora nós que iríamos.

 

Tanto tempo sem voltar. Após um segundo de apnéia – escutando o convite pelo telefone – retomei.  O fôlego. O susto. A intenção. A voz.

 

Lá pode até ter brinco perdido, mas não tem chuva. Nem gata. Nem foco de luz. Nem prédio com marquise.

 

Tem sol. Tem mar. Tem cheiro de mar no começo do dia, no meio do dia e no final do dia. Tem cheiro de mar na brisa da noite, da meia noite. Tem até isso. Meia noite. Tem vista. Tem banquinhos para ver a vista. Tem coqueiro.

 

Tem paralela. Tem modelo. Tem forte. Tem ladeira. Tem uma sereia acolhedora de peito aberto. E  farol sinalizador de que está perto. Tem alta e tem baixa. Tem fita. Tem conta. Tem cor de ouro nas panelas. Tem mil molhos nas tigelas.Tem caldo. Tem lambreta. Tem até sururu. Lá tem tanto que nunca mais vi.

 

Tem a amizade que desprezou geografia. Que prestigiou afetos. Que memorizou amparo. E tudo em tão juvenis tempos. E contratempos.

 

Voltar requer sempre mais coragem que partir. Mas lá vamos nós. Outra vez sob o olhar de Manturna. Apertem os cintos. Entre céus e terras, passando pelo doce azul do mar. Uma certeza - o riso festivo se fará coro e cor. 

 

 


Junho 15 2009

A mocinha do boletim meteorológico parecia feliz. Avisava que os dias seriam lindos-dias-de-sol-de-verão. Acabou de informar e confirmar. E se despediu. Feliz quatro dias de feriados a todos.

 

Ela já foi logo se incluindo.

 

Tanto tempo sem sentir o sol na pele. Ou chovia. Ou ela trabalhava. Não havia sincronicidade. Do querer com o ter. Até se sentiu poeta. Poeta do sol.

 

Riu.

 

Mas agora ali estava ela. Com o sol. Sob o sol. E o restinho de óleo protetor. Avisava no rótulo. Anti-envelhecimento. Provavelmente para ambos. Para ela – para o óleo. Confiou nisso naquele momento. Aliás – naquele momento – ela era a imagem caricaturada da confiança.

 

Ele permitira. Poderia, sim, ficar lá embaixo. Tinha um espaço disponível. Não tinha cobertura – mas a mocinha do boletim meteorológico informou que não choveria. Combinado. Ele ficaria lá então.

 

E o terraço se transformou. Só dela. Viva o doce sabor do egoísmo. E ainda tem gente que discursa contra. Nem pensar. Achou que até escapou um obá.

 

Quatro dias de folga. Plenos. De sol. De céu. De dolce far niente.

 

Esparramada. Pensou esta palavra letra por letra. Assim ficou na espreguiçadeira. Palavras perfeitas. Ambas.

 

Levantava. Caminhava. Sentava. Deitava. De vez em quando recordava a adolescência. E conferia as diferenças de marcas entre o exposto e o oculto.

 

Na água estava a cadeira. Inflável. Quase uma chaise longue. Já estava até sofisticando os pensamentos. Riu de novo. Mas lá estava. Balançando com absoluta serenidade sobre a água. Quem inventou o inflável entendia de prazer. Seja qual for o viés. Cada um com seu pedido. Ou com sua idealização. Mas quem inventou sabia. Inflável. E ela inflada. De pueril alegria.

 

E nem precisava dizer aquelas três palavras. Saia – Fora - Não. Pensou até que elas tinham saído do dicionário. Riu de novo. Estava mais que poeta. Já estava também filósofa. Viva o ócio. Sempre dizia e repetia. Só falta agora o ócio aceitar o convite. E ir morar para sempre a lado dela. Como feliz e inspiradora companhia.

 

Abriu as portas. Todas. Do quarto via o mundo. Os prédios. O céu. A luz entrava sem formalidade. Já com a intimidade de quem sabe. O tamanho da permissão. E ainda sem as três palavras. Aquelas que nem vale repetir.

 

Não é porque não as pronuncia que vai ficar lembrando. Não teria sentido. Sentido. Outra palavra perfeita. Falta em sentido tudo o que sobra em sentido. E por ai vai.

 

Um chá. Já estava na jarra. Em cima da mesinha. Geladinho. Por sobre uma toalha branquinha. Feita de uma fibra especial - a toalha. Presente que recebera de lá. Onde tudo é aproveitado, apreciado e vendido. Naquele mercado. Um modelo.

 

Com a porta aberta do quarto o som se fez intenso. Colocou as músicas preferidas. Alternando. Entre ritmos e tons. Entre líricos e populares. Os ouvidos também merecem uma festa. Não é festa só de olhos. Ou só de pele. Ou só de economia de palavras. Se não se toma um certo cuidado - a imaginação pode acabar ficando deficiente.

 

Há algum tempo começou a entender as mil artimanhas do prazer. Tudo que tem que ser igualmente satisfeito. Vai ver por isso prazer é sempre da ordem do difícil. Ou do impossível. Nisso as queixas sempre vencem. Qualquer queixa, por mais tola que seja – convence. Queixa já é da ordem do perfeito. Do completo. Nem bem formulada – já incorporada. Tão diferente do prazer. Este nem bem formulado – já inacabado.

 

De repente o vento mudou. A cor do céu também. Viu um traço luminoso ao longe. Um risco. Seguido de outro. E mais outro. O que poderia – talvez - ser chamado de uma nuvem se aproximava. Era uma formação escura. Densa. Decidida. Pareceu estacionar. No exato espaço sobre a espreguiçadeira. Sobre a cadeira inflável. As toalhas, subitamente desarvoradas, dançavam sem rumo e sem ritmo. Assim. De repente.

 

Queria saber como encontrar aquela mocinha. A do boletim meteorológico. A que descreveu os dias de feriado. Como uma tela. De impressionista.

 

Mudou rápido o pensamento. Onde ele estava não tinha cobertura.

 

Correu. Fechou a espreguiçadeira. Esvaziou a cadeira inflável. Recolheu as mesinhas. Cobriu as marcas da diferença. Deu adeus à recriada adolescência - tão rápido quanto à verdadeira.

 

Ele subiu. Olhou para o terraço. Marcou imediatamente o espaço. Deitou no meio dele. Desconsiderou a chuva. A cobertura.

 

Lembrou de um desenho animado. Havia um deles. Sorria por entre os dentes a cada batalha travada e vencida com algum humano. Teve a impressão que ele fizera o mesmo. Tinha certeza de que escutara um riso fino. Seguido daquelas três palavras. E dirigidas a ela. A ela.

 

Fechou as portas. A chuva continuava. Os tracinhos luminosos ainda riscavam o céu acinzentado. Ele ainda deitado no terraço. As cadeiras amontoadas na salinha. O chá descuidado sobre a escrivaninha. Num cantinho, murcha, se acomodava a ex-sofisticada chaise longue.

 

Relembrou. As “erínicas” três palavras. Mas não as verbalizou. Em nenhuma direção.

 

Silenciosa, ligou a televisão. Alguém oferecia um novo tipo de desodorante. A uma mocinha que precisava não suar no calor.

 

 

Riu. De impressionista a realista foi um pulo quase tão rápido quanto aquela demonstração de verão.

 

Perdoou - a mocinha relatora do boletim meteorológico.   

 

 


Junho 09 2009

 

Foi uma decisão. Daquelas que a gente toma confiante. No que faz. No que fez. Por que faz. Por que fez. Calcada em propósitos e objetivos.

 

Decidi. Não fico mais.

 

Telefonei avisando. Dispensei os ganhos protocolares. Até me surpreendi. Teve choro. Lamentação. Não esperava. Emocionada, agradeci.

 

O projeto era de boa qualidade. Assim me pareceu. A idéia inovadora. Num país em que a infância é tão banalizada – se é que esse é um termo correto – o projeto me pareceu maravilhoso. Rico em detalhes. Soberano em soluções. Por isso aceitei. Feliz. E lá fiquei por algum tempo. Também feliz.

 

Começaram pequenas alterações. Internas. Ficou parecendo que a questão passara a ser mais individualizada que socializada. Ou mais particular que social.

 

Lembrei de uma frase célebre. Da minha avó. Não poder mudar não é igual a aceitar, menina, não poder mudar não é igual a aceitar.

 

Pedi para sair.

 

Daí começa uma nova etapa.

 

Ela explicou um pouco chorosa. Mas com a delicadeza habitual. Com este documento vá à rua X e lá já estará tudo resolvido. É perto daqui. Pode sim. Vá caminhando. Nem vai sentir o calor. Será rápido.

 

Uma mocinha de cabelos louros-forçados me atendeu com um sorriso. Na rua X. Leu o documento. Séria. Explicou. Precisa de mais esse documento.

 

Junte esse com mais esse e vá até a rua Y. É pertíssimo daqui. Só três quadras acima. Sim. Uma ladeira. Fica a três paralelas daqui. Daí que você sobe as três quadras.

 

Foi de lá que lhe enviaram. Eu sabia. Erram isso a todo instante. De jeito algum.

 

Você tem que voltar lá. na rua X. E avisar que o documento precisa de mais uma assinatura. Depois do exame médico. Que por sinal é feito lá mesmo. Na rua X. Sim. De onde você veio. Mas agora é rápido. E também é só descer a ladeira. Não tem mais subida.

 

Eles que não entenderam. Ou a senhora não soube explicar. Mas tudo bem.

 

Aguarde naquela salinha. Fará o exame médico.

 

Escutei meu nome. Enfim. Atendida e liberada.

 

De novo diante da mocinha de cabelos louros-forçados.

 

Agora volte até lá. Sim. Na rua Y. Mas é rápido. E perto. Já sabe onde é. Ótimo. Suba as três quadras. Não esqueça. Avise que foi daqui que encaminhamos. Da rua X.

 

Já fez o exame então. Eles reconheceram o erro. Não falaram sobre isso. Não faz mal. Devem ter reconhecido. Enfim. Pode sentar ali. E aguardar. Não sei responder. Mas vai ver não pode. Sim. Deveriam. Mas é uma questão operacional. Vai ver fica complicado. Colocar tudo no mesmo prédio. Mas quer que anote. A sugestão. Então correto. Não anoto.

 

Veio de lá. E o pedido foi seu. Desistiu. Achou que o sentido estava se perdendo. Vai lá saber. Correto. Aguarde mais um pouco. Não se preocupe.

 

Daqui a uma hora já deve ter finalizado. Sei como é horário. Sim. E trânsito desta cidade também. Mas aguarde só mais um pouco.

 

Pode entrar. Pensou errado. Não pode ser finalizado hoje. Sei que começou há três horas. Todo o processo. Mas só poderá ser finalizado lá. Aqui está o endereço. Sim. É longe tem que ser agendado. Pode escolher o dia. De nada. Melhor ir de táxi. Sim. Não é uma região muito segura. O metro fica um pouco distante. Tem estacionamento. Mas de táxi será mais fácil. Olha lá. Se não puder ir tem que avisar. Com antecedência. Sabe que não pode se desorganizar um serviço.

 

Faria mais esta gentileza. Escreva aqui. Preencha este formulário.

 

Olhei o formulário. Era quase uma entrevista. Só que invertida. Ao contrário. Entrevista de despedida. A última pergunta era interessante. Diga o que você deseja para a Instituição. Esta. Da qual você está – voluntariamente - se desligando.

 

Sou educada. Definitivamente. Contida talvez explique melhor. Os meus sinceros votos. Certo. Só os votos. Deixa pra lá os sinceros. Depois de horas. Subindo e descendo ladeira. Indo e vindo. Entre as ruas X e Y. E num calor de trinta-e-três-graus-centígrados! Queriam os meus votos.

 

Apenas isso. Contida. Recatada. Uma dama. Suada e esgotada. Mas uma dama.

 

Escrevi. Quero que ... tenham uma boa sorte.

 

 


Junho 09 2009

De repente chegou a mensagem. Uma longa mensagem. Depois de muito tempo. Nem acreditei quando vi o nome no remetente. Ela estava ali. Se despojando. Não se expondo- mais se impondo. Relatando o silêncio. Muito mais que as palavras. Mas também não poupando palavras para falar do silêncio. Não se justificava. Se diagnosticava. Foi o que me pareceu.

 

Passei dias lendo e relendo.

 

Deve ser assim quando não se sabe as respostas. Muito menos as perguntas.

 

Como dizia a minha avó. As perguntas têm sempre mais conteúdo que as respostas, menina, as perguntas têm sempre mais conteúdo que as respostas.

 

E por isso fiquei assim. Só lendo. Relendo.

 

Contava que se afastara dos mais próximos e privilegiara os mais formais.

 

Os mais distantes. Buscava quem não via há dez anos. Mas não queria conversar com quem se despedira ontem.  

 

Fiquei com uma dúvida. Nunca os mais afastados – ou formais – mudarão de posição. Será assim. Posição estagnada. Ou será que vai se girando. Cada vez que a proximidade vence – passa-se a diante. Isso também não combina com a ela que eu conheci.

 

Continuei. Fez outros relatos. Sobre o choro fácil. Desautorizado, mas dominante. Sobre o sono difícil. Autorizado, mas desobediente. Sobre as condutas idealizadas. Banalizadas, mas sequeladas.

 

Fiquei eu estagnada. Nem próxima. Nem distante. Nem há dez anos. Nem ontem à noite. Por muitos dias. Nem sei mais quantos. Acho que fiquei projetada. Vai lá saber. Vai ver um silêncio puxa outro. E a memória não perdoa. Lembrei a frase do Francês. Quando a falta é muito grande as palavras também faltam. Devia ser isso. Faz tempo que não discuto com o Francês. Tenho me identificado com as idéias dele. Nunca pensei que isso pudesse acontecer. Eu concordar com as idéias dele. Do Frances. Mas enfim.

 

Lembrei de outra amiga. Também recém retornada. Nova sincronicidade. Mas esta me desejou serenidade. Vai ver alcancei. Ela deve ter me desejado com muita fé.

 

Ela é linda. Tem um sorriso lindo. Cabelos mais lindos ainda. Um estilo doce. Afetuoso. A voz dela só me traz vontade de sorrir. É uma voz sincera. Até pueril. Não tem voz de adulto desconfiado. Tem voz de criança crédula. Mas com a profundidade de quem já sabe. Ou de quem já duvida. Só de pensar – escuto. O jeito dela de falar meu nome. Rindo. Meu nome sempre vinha acompanhado de um riso. Com sotaque. Transmite segurança. Mas nem por isso é alheia. Aos sentimentos cruéis da humanidade. Reconhece os limites. Percebe as distorções dos limites. Inteligente. Mente interpretativa. Talvez esta a melhor definição dela. Possuidora de uma mente interpretativa. E refinada. Muito refinada.

 

Lembro das noites e noites que passamos nos comunicando. Com letras. Sem voz. Sem imagem. Diminuindo distâncias. Uma em cada exílio. Tentando fazer dele – do nosso exílio - o nativo. O natural. Sem raízes – mas com caules. Algo por aí. O monitor deveria se assustar de tantas risadas. Pela pobreza das nossas supostas metáforas. Ríamos e chorávamos. A nosso favor e contra nós.

 

E quando ela vinha. Saia do exílio dela e vinha até o nosso. Ele até ia dormir.

 

Sabia que a conversa seria longa. In vino veritas. Sentadas na cozinha. O vinho belo, formoso, sofisticado. Em nossa frente. Depois acabado, destituído, garrafa. No lixo. No intervalo - falávamos. Muito. Entre risos e risos. A veritas sempre vencia. 

 

Não posso. Imaginá-la chorando. Insone. Incrédula. Solitária. Racional. Escolhendo os distantes. Se distanciando dos próximos. Se aproximando dos rótulos. Guardando bulas. Escondendo sinapses. Alternando químicas. Seqüenciando idéias. Afastando atos. Colecionando saudades. Vivendo de social. Ou socialmente vivendo.  

 

Leio o aviso. Da distância concedida. Proibido particularidades. Só amenidades. Não chegue perto. Pode falar daí mesmo. Do portão. Cuidado. Ouvido bravo.

 

Mas quero que saiba. Adorei. Fiquei feliz. Com a proximidade distante. Ou com a distância aproximada. Tanto faz. Não importa. Importa é que podemos continuar. Seja onde for o tal portão.

 

Assim é a amizade.

 

Quase beijei o mensageiro.

 

 


Blog de Crônicas - situações do cotidiano vistas pelo olhar crítico, mas relatadas com toda a emoção que o cotidiano - disfarçadamente - injeta em cada um de nós.
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