Blog de Lêda Rezende

Abril 27 2009

Estava trabalhando. Agenda cheia. Em meio a todo o tumulto dos atendimentos recebeu um telefonema de casa. A dedicada auxiliar avisava que tinha um homem nada delicado dentro da casa. E que estava lá com uma finalidade inadiável. Ia cortar a luz. Isso. Cortar a luz.

 

Ela pediu três vezes que repetisse a frase. A história. A fala do homem. Então estava escutando bem. Mas por que. Por que não tinha sido paga há dois meses. Assim. Motivo simples. Ela quase pulou da cadeira. Não entendeu. Não podia ser. Devia ser algum equívoco. Usava a modernidade Bancária para isso. Há anos.

 

A dedicada e sempre prestativa auxiliar explicou. Vai ver que foi porque solicitei para ser mudado o nome do titular. Na conta de luz. Afinal já está divorciada há oito anos. Já está mais que na hora de aceitar o nome de divorciada. E ajudei nisso. Pedi para mudar para o seu nome de divorciada. Fiz isso com a melhor das intenções. Até comentei com a senhora. Deve ter esquecido.

 

Sim. Não lembrava. Concluiu. Com isso foi tirado da modernidade do Banco. Explicado. Agora só precisava ser resolvido. Banco não se interessa por questões de ordem emocional. Ou por decisões adequadas feitas de forma inadequada. Quanto mais por falhas de escuta ou de memória. É tudo feito com muita clareza. Quase riu. Justo agora estava na iminência do escuro.

 

Iria ao Banco rapidamente pagar. Pediu para falar isso para o homem. Um homem implacável. Não aceitou aquele célebre hoje não. Por favor. E na sexta feira. Às três da tarde. Pode ficar tranqüilo. Será resolvido logo. O senhor não pode fazer isso. Devo. Respondeu assim. E ainda falou isso rindo.

 

Depois da atitude dela, ele tomaria a dele. Deu um até breve. Deixou um número para contato quando estivesse com o débito em dia. Assim poderia pedir a re-ligação. Virou-se. Saiu.

 

Foi uma correria. Do local de trabalho e pelo telefone pediu o código de barra. Nervosa só anotava errado. Desistiu. Pediu que enviasse pelo computador. Com a pressa em resolver tropeçou.  Arrancou o fio da tomada do computador de vez da parede. Não conseguiu mais fazer funcionar a rede. Desistiu. Pediu para enviar a conta pelo fax do vizinho. Que se dispôs de imediato a ajudar. Mas lamentou em seguida. Estava sem papel de fax.

 

Tinha esquecido de comprar.

 

Nesse intervalo os filhos ligaram. Estavam apavorados. O que fariam sem luz. Um queria jogar. O outro tinha um trabalho da escola. Queriam aquecer a comida. Queriam água gelada. Queriam banho quente. Tudo a depender a luz.  E ela no trabalho.

 

Cancelou a agenda e foi resolver à moda antiga. Com a conta em mãos e na frente do caixa.

 

Pagou. Tentou relatar o acontecido. Mas a mocinha do caixa em nada se interessou. Fez ar de burocrata entediada. Confirmou o pagamento e dirigiu o olhar já ao próximo. Que estava atrás dela. Neste momento ela compreendeu. Algo que nunca se dera conta. Até riu do pensamento. Conta fora a palavra mais citada em questão de minutos. Mas sim. Se dera conta. Burocracia, Conta e Banco não têm questões. Só motivos. Até se acalmou. Com a nova filosofia recém criada. Mesmo no escuro.

 

Voltou para casa. Telefonou para o número deixado pelo homem que fez o corte. Informaram que seria solucionado de imediato. A esta altura a casa era uma verdadeira capela. Vela para todo lado. E avisos de cuidado com a vela a se repetir.  E todos a pedirem banho quente e água gelada.

 

Insistiu na ligação telefônica. Desta vez teve mais uma surpresa. Ninguém sabia da primeira ligação. Esbravejou. Gritou. Perdeu a calma. A classe. A compostura. Descobriu que perder a timidez no escuro é muito mais fácil. E aproveitou então da situação. Foi tanto que falou que do outro lado pediram calma. Respondeu com palavras nada publicáveis. Avisaram que toda ligação telefônica era gravada. Respondeu em alto e bom som. Ainda bem.

 

Eles desistiram da tal água gelada. Do banho quente. Sábios. E bons ouvintes. Ou prudentes. Ainda tinham um bom apego à vida. Escutaram o que ela falara com quem atendeu na Companhia de Energia Elétrica. A forma que ela falara. Optaram por ficar em silêncio. Sob a luz de velas. Bem caladinhos e sentadinhos no sofá. Aguardando apenas.

 

Resolveu. Iriam todos a um restaurante. Jantariam por lá e na volta já estariam de luz acesa.

 

Era noite de temporal. Muita chuva. Trovoadas e relâmpagos. Faltou luz no restaurante. Em meio à escolha do jantar. E antes de pedirem a água gelada.

 

No escuro todos só escutavam as risadas. Deles.

 

 


Abril 10 2009

Quando o despertador tocou foi como um chamado sobrenatural. Aquilo não deveria ser comigo.  Mas era.

 

Jurei. Fiz promessa. Nunca mais durmo tão tarde. Em véspera de trabalho. Em dia chamado útil. Nunca mais. Mas descobri. Não adianta. Promessa não transforma. Não dá crédito imediato.

 

Resmunguei. Que injustiça. Sossegadinha. Em meu edredom. Em total acordo com aquele deus que nos tira do dia. Nos acolhe na noite. Permite fantasias, criações. Qual uma tela de cubismo. Distorcidas. Mas com uma lógica particular. Podendo se fazer o que quiser. Entender como quiser.

Analisar como quiser. Até negar. Relatar. Aumentar. Muitas vezes esquecer. Uma quase perfeição. Um deus até mais da liberdade. Esta sim. Sua maior função. Libertar. Só não sei mais do que. Por agora só queria duas liberdades. Alternativas. Ou me libertava do sono. Ou do trabalho. Cruel.

 

Libertou de nada.

 

Ainda tive aquela idéia. De colocar o toque de um sonar. Para me despertar. Um sonar.  A princípio me irritou. Depois - entendi. Até me elogiei. Não fora mesmo uma má idéia. Afinal, quando a gente desliga do dia, ou da noite é o que parece. Que estamos dentro de um submarino. Silenciosos. Deslizando.

 

Para um mundo onde as cores e os vínculos são absolutamente particulares. Acredito que sejam estes os únicos momentos de verdadeira privacidade em toda a vida.

 

Depois do primeiro toque do sonar decidi me organizar. Primeiro lembrando onde estava. Depois meu nome. Em sequência tentando entender pernas. Braços. Cabeça. Cabelo. Localizando. Nomeando. E me juntando. Para poder me levantar. Acho que isso faz parte não só da rotina do amanhecer. Mas ainda tinha um agravante. Pior. Muito pior. Horário de verão. Verão.

 

Não sei qual. Porque acordo e ainda está escuro. E sempre chovendo.  Deve ser uma piadinha.  Algo tipo depois verão. Só depois. Porque agora vejo nada.  

 

Mas sai do meu submarino. Não importa em que fase estava. Em que profundidade estava. Estava na hora de emergir. Foi o que o sonar ordenou.

Momento de abrir os olhos e fazer uma troca. Sair da fantasia. Entrar na realidade. Tudo bem que não precisava fazer o mesmo com o vizinho. O de dois andares abaixo. Tal o pulo que dei. Mas enfim. Nem tudo é perfeito no mundo dos submarinos. Ou no mundo da emersão.

 

No automático se foram arrumação e desjejum. Sai. Entrei no famoso trilho. Não sei se ainda da bondade. Mas acredito que um verdadeiro comboio. Como diriam os portugueses.

 

De repente me senti alucinando. Que estranho. Eu parecia estar acordada. A paisagem parecia ocidente-terceiro-mundo. O idioma era o corriqueiro. Mas algo estava estranho. Só tinham japoneses. Todos eram japoneses. Arrisquei, sabe-se lá porque, me olhar num reflexo do vidro. Quase perdi o fôlego. Eu também era uma japonesa. Eu. Que acordara com espírito helênico. Dentro de um submarino. Tinha me transformado numa japonesa.

 

Olhei de novo. Desta vez com mais cuidado e apuro. Não eram japoneses. Era a dificuldade de todos. De abrir os olhos. Semi cerrados. Este o termo exato. Todos pareciam orientais. Todos sonolentos com seu meio olhar. E eu compondo o quadro pseudo-oriental.  Quase ri.

 

Uma hora depois cheguei lá. Ai sim. Acordei. Nada mais de bobagem de submarinos. De deus acolhedor. A cura do olhar japonês veio rápida e certeira. Já foram me avisando. Que estava lotado. Que tinham cometido um erro. Que tinha mais gente que o previsto. Que eu tinha que atender.

 

Para não complicar a pobre da mocinha que agendara errado. Se eu queria um chá. Se eu estava com meu material. Que uma outra se demitira. Que não estavam concordando. Com tanto trabalho. E que aquela ali só chorava.

A outra lá só corria. Muitos já reclamavam. E tão cedo. E ninguém tinha sido pesado. Nem medido. Nem contado. Que não tinha cafezinho. A cafeteira estava quebrada. E ninguém sabia quem quebrara. Os gráficos tinham sumido. Teve quem falasse que parecia que tinham comido. E ainda mais. Comido com farinha. Os gráficos.

 

Sentei. Arrumei o meu material. Lembrei do amanhecer. Fazendo promessas. Tentando negociações com divindade. Filosofando com um sonar. Viajando no Expresso do Oriente. Dissertando sobre dia útil. Reclamando do horário. Do verão.

 

Pensei. No milésimo de segundo que me foi permitido um pensamentozinho particular. Pensei. Nada como um dia após o outro. Amanhã tem mais. Vai ver por isso inventaram o pesadelo. Para sacudir o tal deus acolhedor-libertador. Que ele me aguarde. Fantasia não tem limite.

 

publicado por Lêda Rezende às 22:11

Março 22 2009

Quem será que teve a idéia. Como diria minha avó. Toda idéia tem que ter um motivo, menina, tem que ter um motivo. Falava algo mais ou menos por ai. Na realidade acho que se viva ela estivesse me daria um puxão nas orelhas. Onde já se viu. Ficar repetindo o que ela falava assim. Sem mais nem por que. Ela também adorava uma pilastra. Herdei dela. Agora estou saindo junto com ela. Da pilastra.

 

Mas enfim. Quem será que teve aquela idéia. Eu, de pé diante dele, tentava achar uma explicação. O tal motivo. Basculava se teria uma conotação terrena ou divina.

 

Um calor que poderia ser comparado a um outro, não fosse a impropriedade do termo em meio ao ambiente.

 

Colocaram um foco de luz. Um enorme foco de luz. Nos degraus da escada. Vai ver foi o mesmo decorador da enorme pedra.

 

E ficava atrás de mim. Também atrás dele que estava ao meu lado. Imaginei mil títulos de reportagem. O tule incendiado. Fogo na cerimônia. Cabelos tostados. Calças queimadas. Lembrei do filme. Paris está em chamas. Até uma mais trágica. Tochas humanas. De um outro filme. Por quem os sinos dobram. Não faltaram slogans.

Lembrei dos cílios. Do ventinho suave. Das ameaças da véspera. Do riso na cozinha. De nada resolveu. Podia piscar acelerado que não diminuía o calor. Olhar plumoso. Nada resolvido. E o calor aumentava.

 

Ainda tinham os fotógrafos. Com um foco de luz. Um carregava o foco. O outro a câmera. Acharam poucas as luzes. Olhei para baixo. E atrás. O enorme foco ficava aos pés. Nos calcanhares -  para dar uma precisão anatômica. Aquiles teria se sentido vingado. Ou solidarizado.  Nada de tendão cortado. Isso era coisa do passado. Tendão assado. Tostado. Incinerado. Nem precisei me esforçar para não rir. Não estava em condições locais e climáticas que permitissem o riso.

 

Ele me sussurrou. Sentia os pés queimando. Fiz que se faz nestes lugares. Para que fosse apenas uma metáfora. Depois informou. Nem sentia mais os pés. Já deviam estar necrosados. Novamente não precisei conter o riso.

 

Tentei piscar mais uma vez para diminuir o calor. Nada. Vou processar o fabricante. Dos cílios. Do foco vou pensar. Não pode ser nada assim. Sem muita reflexão. Até porque reflexão é o termo exato.

 

Mas como vivo agora entre sustos lá se veio mais um. Olhei, tranqüila, para as pessoas que estavam em frente ao grupo que eu estava. Havia, dentre eles, uma mocinha. Vestido azul claro. Longo. Cabelos longos. Pele clara. Uma franjinha. Não acreditei no que vi. Lembrei dos desenhos animados. Os meus emplumados olhos saindo da face com uma molinha. Fiquei mais atordoada do que pasma. Entendi até o ator-doado de tempos idos. Vai ver foi assim que começou. O atordoamento dele.

 

Os cabelos dela, a franjinha - voavam. Os fios até chegavam ao rosto. Ela, já com impaciente delicadeza, afastava da face. Olhei para todos os lados. Para cima. Para baixo. Queria descobrir. De onde vinha o vento. Pensei assustada. Seria dos meus cílios postiços. Testei. Mantive os olhos fixos. Como aquela brincadeira de criança. Nada. Eu fiquei catatônica e suada. Os cabelinhos dela voavam. Pensei de novo. Porque será que Ele só gosta dela. Faço nada de tão errado assim. Porque esse demérito. Ou seria uma forma divina de lembrar. As diferenças. As culpas. Lá me lembrei do russo novamente.

 

E suava. Suávamos. E o calor aumentava. Só conseguia pensar nos destaques das noticias. Já sentia até o cheiro do couro queimado. Dos sapatos dele. Ou dos pés. Olhei para o fotógrafo que se postou a minha frente. Imediatamente me veio à mente um termo cientifico. Sudorese profusa. Isso dá até UTI.

 

Mas acho que Ele se apiedou. Porque foi rápida a resposta aos meus pedidos. A lâmpada. O foco. A luz. Apagou. Apagou. Esta única luz apagou. As demais continuaram acesas. Desta vez foi diferente.  Me deu vontade de rir. Enfim. Tive que conter o riso. Olhei para cima. Pedi perdão pelo riso afoito. Pelo pensamento que insistia em se fazer notado. Porque pensei que podiam ter sido os meus cílios. Vai ver olhei séria para o foco. Ou pisquei para ele. E ele apagou. Assim nas costas. Contive o riso.

 

Um escuro se fez. Ao contrário do que se fala. Bem ao contrário. Foi quando a luz apagou que veio a esperança. E prosseguia a cerimônia. Sem interferências. Com menos risco de furo jornalístico. Os pés dele sobreviveram.

 

Olhei para ela mais uma vez. Continuava tranqüila. Os fios da franjinha dela, irreverentes, esnobes, ainda voavam.

 

Aceitei. Agradeci. Não ao Edson. Não ao fabricante.

 

Olhei para Cima. Agradeci!!!!!

 

 

publicado por Lêda Rezende às 14:44

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