Blog de Lêda Rezende

Agosto 22 2009

 

Fiquei lendo o que ela escreveu e pensando.

 

Fui até mais além. Fui aos pensamentos por trás dos pensamentos. O que sempre é um risco para a lucidez. Mas enfim. Lucidez é coisa que se perde aqui – acha ali. É saber aproveitar do efeito elástico. Isso a vida vai ensinando.

 

Se tem conceito que não se estabelece é este. O da lucidez. Cada um faz sua leitura. Sua assinatura. Sem esquecer a crítica amadurecida e imatura. E assim se vai construindo e destruindo no dia-a-dia - a lucidez.

 

Assim pensando - fiquei diante do texto. E o texto diante de mim. Por um tempo.

 

Havia chegado tarde. E naquele estado de final de jornada. Poderia até dizer estado letárgico. Sim. Não queria mais pensar. Muito menos decidir. A jornada cobrara seu alto preço em decisões. Estava exausta. E num estilo sofisticado. Colocando as costas da mão por sobre a testa.

 

Mas vi que chegou uma mensagem. Optei por ler. Era ela. Vai lá e leia. Depois se puder comente. Um recadinho tímido. Fosse uma voz eu diria que era rouca. Mas na escrita sugeria letras minúsculas. Discreto e recatado. O recadinho.

 

Obedeci de imediato.

 

Vou ter muito que agradecer a ela. A começar pela sabedoria. E pela forma refinada de expor. Pela maneira singela. Como se me mostrasse um álbum de fotos delicadas. Timidamente impressas em papel fino. Envoltas em papel de seda. Que precisavam ser desenroladas e tocadas por mãos hábeis. Para que nada se perdesse. Ou fizesse riscos encobridores. Coisa mais linda.

 

Pela primeira vez acho que entendi. A originalidade da escrita. A força da escrita. As marcas que pode deixar.

 

Aprendi com ela. Escrever também é assim.  Escrever é como fotografar. Ler pode ser como olhar para uma foto.

 

Essa idéia me levou a lugares onde nunca fui. Vi fotos em cada página escrita. Redesenhei textos. Revelei relatos antigos. Guardei os esquecidos negativos. Fui de lembrança em lembrança enquadrando as imagens. Foi aí que rebusquei todos os cantinhos por trás dos pensamentos. Assim me senti.

 

Ela descrevia a nós todos. Coloria a descrição.

 

Era como se – olhando para o texto – lesse fotos. Como fazia aquela minha amiga. Discorria sobre as fotos. E colocava textos nas imagens. Ela foi mais sábia. Metaforizou imagens - uma a uma - no texto. E esbanjou instantâneos. Desconsiderou poses. Deliberadamente recusou imitações.

 

Ficou no silêncio. E no próprio silêncio – nos expôs. Nos organizou.

 

Impossível não lembrar a minha avó. Ela sempre dava um aviso. Nunca leia sem emoldurar as páginas, menina, nunca leia sem emoldurar as páginas. Não entendia muito bem – nem muito mal – o que ela me dizia. Achava complicado.

 

Agora sim. Tantos anos depois. Agora entendi. Até repeti aquele meu aceno positivo em memória dela. Estava correta.  Foi lendo o texto que compreendi. E consegui emoldurar as páginas. Mais ainda. Emoldurei parágrafos. Separei por cores. Por nuances.

 

Dava para ver os risos. Os dentes brancos. As taças. As cores dos vinhos.

 

Dava até para enxergar os códigos e simulações. Tudo estava na foto. As pessoas eram poucas. Cabiam num pequeno enquadramento. A moldura não deixava ninguém de fora.

 

Assim fiquei diante do texto dela. Como que subitamente despertada.

 

Compondo fotos. E decompondo palavras. E vale o vice-versa.

 

Muito mais que um limite impreciso – é um des-limite preciso. De quem escreve e descreve. Para quem lê e assimila.

 

Mesmo por trás da lente. Amparado por um tripé de letras. Até se usasse aquele paninho preto dos fotógrafos de rua antigos. Decidindo por onde começar. Como continuar. Salvaguardando ângulos. Priorizando luzes.

 

Nada impede - o fotógrafo fica na foto. Estava ela ali. Focando. Escolhendo. Gravando. Mas estava dentro. Todo o tempo.

 

Não sei se ela sabe. Se entendeu. Ou se disfarçou. Mas – independente - a mágica se fez. Esta também uma possibilidade que somente a escrita permite.

 

 

Esta é a verdadeira magia da letra. Não porque vira contra o feiticeiro. Mas porque inclui o feiticeiro. 

 


Agosto 16 2009


Ela sempre alertava. Muitas vezes as faltas são tantas que acabam ocupando lugares indevidos.

 

Não sei se são muitas. Ou se estão muitas. Ou se as vemos muitas. Meio complicado falar de falta. Expõem metades. Pelas metades. É sempre um paradoxo.

 

E pela metade muitas vezes são as explicações. E os excessos ambíguos da falta de explicações. Os descuidos com as gentilezas. O desuso das delicadezas.

 

Eis um terreno fértil. Com enorme rapidez fica-se pleno de faltas. Falta de interpretação. Falta de motivos. Falta de compreensão. Falta de confiança. Falta de lealdade. Falta de reciprocidade. Falta de conclusão. Falta de solidariedade. Falta de afetuosidade. A antiga e sempre conceituada falta de paciência. Isso sem esquecer a falta de compostura. Ou a sempre citada falta de condescendência. Que tantas vezes é aliada da falta de coragem.Ou da falta de conceito. Mas não se pode esquecer jamais - a falta de resposta.

 

Assim eu estava. Diante deste redemoinho de faltas. O telefone tocou. E o som fez um corte no tempo das faltas. Por que nas faltas do tempo isso já é comum.

 

Ela viera por uns dias. Rápidos. Era uma festa de família. Teria que participar. Mas conseguiu uma breve saída. Para vir até aqui.

 

Aguardei feliz. Chegou feliz. Desbravadora e vencedora dos trilhos. Nos trilhos. Confiante na decisão. Sorridente com a conclusão. Impossível errar o caminho. Já começamos a rir desde esta frase. Muito mais que uma frase.

 

Tudo reafirmava os caminhos trilhados. Não no destino. Mas na Vida. E certos. Ao menos parecia até o momento.

 

Quando sentamos para o vinho – nos repetimos. Rimos e choramos. Como no tempo das inaugurações do exílio. Ela no dela. Eu no meu. E o som das teclas fazendo vínculo entre nós duas.

 

Foram tempos difíceis. Mas nunca em tempo algum nos falamos tanto.

 

Nunca contamos tanto uma sobre a outra. Nunca soubemos tanto de nós.

 

Ali sim. Não havia falta de assunto. Eis uma falta abolida. Enfim uma. Até comemoramos. Podia faltar tudo. Mas nossa conversa era abundante. Um mais jorrar de palavras. De comparações. De questionamentos. De textos lidos. De textos a ler. Ela reclamava a impossibilidade do trabalho externo. Eu invejava o ócio temporário. Dela. E ela ria da minha agenda se construindo. Ou se paginando.

 

Descobrimos o sabor das páginas. Que só passam a existir quando preenchidas. Só se folheia o que está preenchido. Parece óbvio. Mas nem tanto. Páginas em branco são completas. De faltas. Não se brinca de olhar para elas por muito tempo.

 

Lá um dia me avisou. Arrumei as malas. E voltou para as raízes.

 

Depois disso – alguns hiatos. Um silêncio. Um retorno. Uma noticia. Um bilhete. Um sufoco. Um até mais. E por muito tempo nos afastamos. Da nossa história. Da nossa rotina. Até que um dia – faltou assunto. E sobrou silêncio. A tristeza - por saber mais faltas – se fez presente.

 

Agora estávamos ali.

Naquele momento. Sentadinhas nas cadeiras - na cozinha. A tentar atropelar o mínimo possível. Os relatos. Os excessos do - eu me lembro. Os inúmeros - você não sabia. Incontáveis - nem sei por que não lhe disse.

 

Quase foi preciso contratar um cronômetro.  De emergência. Ou uma nova emenda. Uma legislação de urgência. Você fala. Ela fala.

 

Fez um comentário. Sobre duas coisas que fazia bem. Dirigir e criar. E torcia pelo futuro. Para continuassem sendo elogiadas. Mesmo que num tempo passado. Rimos porque não faltou tempo. Achei genial a informação. E o pedido. Daria até para inscrição em pórtico. Passado. Presente. Futuro. Numa única eleição.

 

Mas enfim. Lembrei do Filósofo santificado. Ele falava isso. Que não existe futuro nem passado. Só presente. Porque é nele que falamos. Seja em que tempo for. Perfeito.

 

Quando nos despedimos – já todo o velho código estava re-paginado. Os risos resgatados.

 

As faltas pareciam diminuídas. Mas nunca se sabe. Talvez tenham escapado pela porta da saída. Ou ficaram atrás das cortinas. Ou se esconderam como poeira sob o tapete. Até ri quando pensei nisso. Pode-se passar a Vida toda permitindo que ele acolha faltas e erros. Deixando por cima risos e acertos.

 

O tapete como o Presente do Filósofo. Salvaguardando. O Futuro do Presente. Eis a enevoada solução. Arriscada por certo. Pisar sobre faltas é atividade que requer arte. Muito mais que sabedoria. Até por que quem sabe – não pisa.

 

Mas como dizia a minha avó. O que falta e o que sobra é sempre misterioso, menina, o que falta e o que sobra é sempre misterioso.

 

Olhou para trás. Deu um sorriso. E lá voltou pelos trilhos até o encontro agendado para a festa. Dia seguinte voaria cedo para as raízes.


Agosto 13 2009

 

Ele escolheu o lugar. Eles concordaram. Nós aceitamos.

 

Estava tudo perfeito. Nada fora do estilo habitual. Marcaram a hora de nos pegar. Com eles dois iríamos encontrar já no lugar combinado.

 

Começamos a nos arrumar. Tudo com muita calma. Ainda fazia parte dos festejos. Mas agora imitávamos – em parte - o título do livro. Seis. Não éramos. Somos. E lá organizamos os seis o restante das risadas e congratulações.

 

De repente uma idéia.

 

As idéias são assim. Nunca sabemos se estão contra ou a favor. Ele sugeriu. Uma taça de vinho antes de chegarem. Depois descemos. Dá tempo. Aliás – tempo é o que mais temos hoje.

 

Concordei. Procedia.

 

Já arrumados – iniciamos nosso festejo particular.

 

Sentamos diante da mesinha. Organizamos taças e guardanapinhos. Tudo com muita delicadeza. Em tempos de comemoração toda a gentileza é pouca. Ele, cuidadoso, foi se adiantando – eu lhe sirvo.

 

Abriu a portinha de vidro. Olhou. Escolheu. Pegou a garrafa que descansava na prateleira.

 

Solidária a tal garrafa. Ou a prateleira. Não quis vir sozinha. Veio em conjunto com mais três. E foram abruptamente ao chão. Assim. Sem mais nem por que. Sem maiores explicações. Sem menores detalhes. Sem grandes considerações.

 

Caíram. Unidas. Deviam ser da mesma videira. Vai ver vieram na mesma importação. Nascidas e criadas juntas. Um primor de união. Pensei num daqueles milésimos de segundo. Que surgem diante destas pequenas tragédias. Concessões do bom humor que ajudam a manter a sanidade.

 

Por um segundo antes o cenário parecia em ordem. O piso branco. Os tapetes – azul e branco. As cadeiras com a madeira envernizada bege.  Os sapatos com tom e brilhos corretos. A saia longa colorida dava um toque informal. A calça de um jeans acinzentado já avisava da chegada do inverno. Assim. Tudo sob controle.

 

Por um segundo depois – o cenário já se re-organizava de forma espontânea. Pelo piso branco escorria apressado e caudaloso o líquido vermelho. Os pedaços de vidro sugeriam um mosaico sem limites sob o brilho da luz do teto. Os tapetes afogados pareciam ter engordado de repente. E lentamente a cor deles ia mudando. Muito mais lenta e no inverso da nossa. Nós rapidamente de corados passamos a brancos. Esverdeados até diria.

 

Os sapatos. Estes sim. Se adequaram rapidamente ao ambiente. Vermelhos e com lasquinhas de vidro. Pareciam os sapatos mágicos daquele filme clássico-preferido dos irmãos do Norte. Só não tínhamos as pedras amarelas para seguir. A saia – mais colorida que antes - pingava o vermelho com uma delicadeza especial. A calça – já distante do tal jeans acinzentado - não mais anunciava o inverno. Homenageava uma arena. O touro já tinha vindo. E - certamente - vencido.

 

Não mais havia espaço sem cor. Ou vazio. Exceto dentro da portinha de vidro. Lá sim. Tudo continuava com a temperatura mantida. Nos espaços projetados. Com a calma da frieza. Ou com a frieza da calma. Aquela altura não dava mais para ser teórico.

 

Entre pulinhos para não aumentar a composição do tal mosaico e corridas aos paninhos para diminuírem a tal arena – o riso se fez.

 

Impossível nos olhar e não rir. Uma pergunta não calava. Falamos mesmo o que a respeito da sobra do tempo. Mais risos. Panos jogados às pressas.

 

Roupas trocadas como se num desfile de modas – tamanha a ligeireza dos gestos. Sapatos retirados com cuidado. Telefone tocando. Avisos de – já estamos aqui. Podem descer.

 

E nós ali. Entre os verbos. Poder. Querer. Dever. Descer.

 

Escolhemos o verbo - telefonar. Avisamos a ela. A ela. Quando chegar amanhã pela manhã – cuidado. Quatro garrafas de vinho se quebraram. No chão. Acho que escutei um possível o que. Com alguns decibéis mais sofisticados. Não sei bem.

 

Desliguei.

 

Talvez esta tenha sido uma frase da minha bisavó. Já não posso garantir. Se não tiver a solução – apenas feche a porta. Sugestão obedecida – ato praticado.

 

Já no carro - vi um brilho na meia dele. Um caquinho de vidro a enfeitava. Retirei com delicadeza.

 

Mas não contamos a eles.

 


Agosto 11 2009

 

Estou sempre lembrando os poetas.

 

Nunca estive tão à mercê deles como atualmente.

 

Hoje foi a vez dele - invadiu o meu pensamento. De repente veio assim. Uma poesia específica. Procede. Era sobre o dia dos anos dele. Como ele olhava para os anos passados. E como comemorava o ano presente.

 

Desconheço enredo mais belo.

 

Assim são os poetas. Não deixam que nada escape. E, a cada versinho, cada um se enlaça dentro da sua pessoal desorganização. Sim. Porque diante das organizações – a poesia escapa. Fica-se com as estatísticas. Ou com as listas. Ou até com as falsas verdades. Mas a poesia só denuncia a desorganização. Aprendi há tempo. Sem atalho e sem todo.

 

Brinca-se com as palavras. Como na arte da dobradura. Começa-se com um papelzinho sem marcas. Dobra-se daqui. Vira-se dali. E a figura que surge parece até espontânea. Mas não é. Palavra é escolhida a dedo. Mesmo que seja vinda de um ato falho. Ou de um ato perdido. Até de um ato esquecido.

 

Como as dobraduras – as palavras nos levam ao Lugar que manufaturamos. Disso ninguém escapa. Pode negar. Recusar. Mas não tem saída.

 

E lá estávamos nós. Há quatro dias. Diante de tudo que representava ato e fato. E até o contrário cabia. Festejo é sempre assim. Um não mais acabar de vice-versa.

 

Desta vez – mais uma refeição antes da partida. Reiteramos votos e afirmamos dúvidas eternas. Lógico. Não existe continuidade se não há as cultivadas dúvidas.

 

A minha avó estava certa. As certezas não constroem as grandes amizades, menina, as certezas não constroem as grandes amizades.

 

Foi pensando nisso que nos despedimos. Sob o som do zíper das malas sendo fechadas. Do barulhinho das rodinhas pelo piso. Do girar delicado da chave na porta.

 

Elas se foram. No final da tarde. Ou no final do dia. Não importa. Despedida não tem horário. Simplesmente é.

 

Saíram levando novos risos e novos códigos. Um pretenso caderninho com novas páginas escritas. Em meio às páginas amareladas dos velhos e recontados acontecimentos. Cada uma com seu olhar para o que viu. Para o que negou. Para o que descobriu. Até para o que esqueceu.

 

Quando saíram – sentei.

 

Olhei a mesa com a toalha branca ainda sobre ela. Caminhei com os dedos pelos bordadinhos. Uma manchinha vermelha me fez rir. Lembrei dela cobrindo com o guardanapo a pequena marca do desatento gestual. O cafezinho esvaziado em sua proposta marcava com fina textura a xícara deixada num cantinho da mesinha. As cadeiras desalinhadas denunciavam o senta-levanta. Nas pias alguns pratos se amontoavam certos da função bem aplaudida. Um papel colorido e brilhante num cantinho do sofá demonstrava os motivos do encontro. As flores coloridas erguiam-se alheias se idas ou vindas. Na bancada as fotos mexidas marcavam a dança da memória.

 

Um ventinho entrou por uma fresta da porta da varanda e percorreu o espaço como posseiro.

 

Em meio a esse amontoado de lembranças - o telefone tocou. Até dei um pulo da cadeira. A realidade se apresenta de todas as formas. Foi o que pensei. Procedia.

 

Do lado de lá alguém solicitava informações precisas. Práticas. Pragmáticas. Respondi o demandado. Sorri. Parecia que me acordavam. Que os acontecimentos giraram em torno de um cochilo. Uma piscadinha mais longa.  

 

A rotina re-estabelecia as suas metas. Não sei se com tranqüilidade – como pensei num primeiro momento. Mas por certo com determinação. Até acelerei os movimentos. E já fui olhando para o relógio. Só não olhei logo porque esqueci onde o havia colocado. Mania antiga. É sair da rotina – e o coitado do relógio vai para um canto qualquer. Mas – resgatado – voltou a dar as ordens.

 

E me pus de imediato a obedecê-las. Agora era só recolocar o que estava deslocado. Arquivar novos dados na memória. Voltar a prever o dia seguinte.

 

Guardar objetos em seu devido Lugar. Fazer o mesmo comigo. Retomar o meu tal devido Lugar.

 

Bem o contrário do que foi vivido. Pensei enquanto colocava os registros em ordem. Enquanto alinhava as fotos no balcão. Ou arquivava a poesia. Ou enrolava e dispensava o papelzinho colorido do presente. E o tempo se fez total. Sem fragmentações. Quase sem antes e depois.

 

Estávamos com os dias ao nosso redor. Agora era continuar ao redor dos nossos dias.

 

Tudo co-memorado na forma de-vida. Ri. Feliz.

 


Agosto 09 2009

 

A semana girara em torno da expectativa.

 

Até sorriu. Quando começou a entender. A expectativa em si – letra por letra – estava já sendo vivida. Já acontecia.  A existência do ato já era fato. É sempre assim. O difícil é enxergar. Vai lá saber por que. Quando uma programação se estabelece – já começa a ser vivida desde o primeiro passo.

 

E a rotina passa a ter outro colorido. Algo por aí.

 

Mas estava muito agitada para ser parcimoniosa. Com as idéias. Os pensamentos vinham desordenados. Não havia fila nem senha. Chegavam de qualquer jeito.

 

Sempre fora assim. Quando chegava esta época – ficava mais feliz. Muito mais feliz.

 

Quando criança – era o mês das reclamações.

 

As notas caiam. O boletim ia para o Departamento das Recuperações. O comportamento ficava um horror diante dos critérios aprovados. E lá se ia para o Departamento das Complicações. As queixas se sucediam.

 

Parecia que professores e coordenadores só sabiam o nome dela. Era o nome mais repetido do mês. Não se importava. Como se não lhe dissesse respeito. Muito menos autoria. Falava mais do que o costumeiro. Ria muito mais que já se conhecia.

 

Quando o mês acabava – voltava para o seu estado habitual.

 

Não que fosse de todo bem disciplinado – porém menos acelerado.

 

O tempo passou. Não tinha mais problemas de boletim. Nem de comportamento. Nem de coordenadores. Não frequentava mais os Departamentos. Mas continuava em seu festejo particular.

 

E desta vez não foi diferente.

 

Quando elas chegaram – todos já sabiam. Estava inaugurada a semana. Os festejos. As lembranças. As saudades. Os acertos. As surpresas. As noticias de todos os lados. As fotos antigas. O riso dela pelas fotos antigas. As escavações na memória. Estavam iniciadas as comemorações.

 

A mesa arrumada. A toalha branca. As flores. As cores da comida. A música bem escolhida. Elas vieram de lá. Saíram da rotina. Re-agendaram as tarefas. Para participar.

 

Eles passaram a semana tramando surpresas. Monitorando a organização. Para que nada faltasse. Para que tudo agradasse. A ela.    

 

Todos juntos. O espaço acolhia a todos. A casa parecia mais clara. Com mais luz.

 

Não faltavam abraços. Beijos. Piadinhas. As fotos assustadas. Agora não. Nem sorri. Apaga essa. Não fiquei bem. Essa - adorei. Me envia. Agora pode. Mais um pouco. Você fica aqui. O preferidinho é ele. Não. É ela. Ela faz assim. Eu que me desdobro. Sim. Ela sempre foi muito elegante. Não acredito. Mexendo com terra. Adora o sitio. Não o chalé. Certo. Cada um nomeia como quer. Mas ela mexendo com terra. Surpreendente. Quem diria. Então tudo bem. Luvas de borracha com grife. Agora a reconheço.

 

Falou sim. Falou que não estava bonita naquela festa. Eu escuto bem. Não faz mal. Eu me vingo. Ele também faz nesta época. Teremos que acertar tudo de novo. Sim. Diante do mar. Ia ser bom. Vamos organizar. Como assim eu quem decide. Sou submissa.

 

Estão rindo do que mesmo. Não entendi. De novo. Ela não esquece a tal Cidade Luz. Não tem assunto que não possa ser citada. Até unha encravada.

 

Sim. Outro brinde. Também achei. Delicioso. Que surpresa. É ela sim. Está ligando de lá. E no momento exato. Dos nossos brindes de aquém mar.

 

Que alegria. Você ligou para estar presente. Nem precisava. Você está presente esteja onde estiver. Além mar não é distância. É só localização. Sim. Todos também estamos sentindo sua falta. Que bom que ligou. Elas estão aqui sim. Haja ciúmes. Depois dizem que ciúme é bobagem. Sei.

 

Diante desse coral perfeito – ela parou. Sentou. Olhou para todos. Se sentiu a privilegiada. Repetiu uma frase costumeira. Bem baixinho. Alguém lá de Cima me adora. E balançou a cabeça. Grata. O prazer de estarem todos juntos era de uma obviedade que até emocionava.

 

E o dia exato ainda nem tinha chegado. E já tinha chegado. Lá se veio – de novo - a questão do tempo. Redundância perfeita. Mas ele proibiu. Não se pode dizer a palavra chave. Esta só no dia certo. Dá azar. E todos obedeceram a ele. Como sempre. Um avisou de lá. A Lei chegou. E todos riram. Obedientes. Lógico.

 

Agradeceu. A todos. A um por um. A elas que viajaram. A eles que se organizaram. E a ela - que mudou a rotina para contribuir com sua acertada arrumação.

 

Deu um beijo nele.

 

Concluiu. É o afeto que enlaça a alegria. E qualifica o Tempo certo.

 

O mais é calendário.

 


Agosto 06 2009

 

Eis a questão inicial. O tempo passa muito rápido. Não dava para acreditar.

 

Lembrei o poetinha favorito. De um versinho breve. Tão breve quanto a Vida. Algo sobre quem é aquele envelhecido ali que me olha. No espelho.

 

Pode-se até amor-daçar o desperta-dor. Pode-se esconder o objeto. Só o objeto. Por que o tempo fica ali. Servindo-se de si mesmo. E servindo-se do outro.

 

Impossível não pensar.

 

Como dizia a minha avó.  Sempre parece que foi ontem, menina, sempre parece que foi ontem.

 

Foi assim que me senti – de repente. A  serviço do tempo. Como uma habitante do seu cárcere privado. 

 

Mas os planejamentos já se iniciavam. Dava para ler nas entrelinhas das comunicações. Dos olhares. Das frases ditas com rapidez. Estilo ao bom entendedor. Cada ano vem com uma novidade. Uma orgia de criatividades.

Cada um expondo seus afetos de forma especial.

 

Lembro de uma vez. Quando cheguei de volta em casa. Ele havia iluminado a sala toda com pequeninas velas. Muitas. Nem dava para saber quantas.

 

Pareciam estrelinhas contratadas. Ali. Em cada lado que virasse – um pontinho de luz delicada. Da cozinha rescendia um odor quase onírico. A música fora escolhida com total adequação – havia sido a primeira música.

Lembro quando entrei na sala. E vi os brilhos no escuro. A música. O cheiro.

 

Passei um tempo em posição de surpresa. De pé. As duas mãos no rosto. Um riso assanhadinho entre as mãos. A mais pura expressão de prazer.

 

Lembro da pergunta dele. Não vai entrar. Na mesinha muitos pacotinhos enrolados com laços e papeis brilhantes. O vinho no balde. A mesa posta. O olhar dele. O riso. Uma festa. Entrei. Sentei. O difícil foi tirar as duas mãos do rosto. O riso foi fácil. Ficou para sempre.

 

Até hoje – quando lembro sinto o cheiro e vejo as cores.

 

Uma outra vez caiu num domingo.

 

Ele levantou antes. Desceu. Da cama escutei uns barulhinhos. Perguntei se estava tudo bem. Sim.

 

De repente muitos barulhinhos. E pés pela escada acima. Estavam todos lá. Ela também estava do lado de cá do mar. E ali. Dentro de casa. Todos. Risos e risos.

 

Me convidaram a descer. Estava lá uma festa. De flores. Um pacote enorme enrolado de branco com fita vermelha - descansava seu peso no sofá.

 

A mesa. A mesa estava linda. Toda arrumada. Com tudo que agradaria aos deuses gregos. E eles todos felizes. Ela só ria. E apontava a sua parte na composição. Para destacar o – lhe conheço bem.

 

Tantos anos que ela não participava deste festejo. A comemoração passou a ser múltipla. Não faltaram motivos. Desta vez a música era mais comunitária. Regida apenas por risos e vozinhas.

 

Naquele dia deu para entender o que falam sobre a magia do afeto.

 

Agora escuto os burburinhos. Vejo olhares enviezados. Desta vez ela não virá. O além mar está mais além. Mas hoje cedo já se fez presente.

 

Informou da celebração. Antecipadamente. Como contagem regressiva. Sempre atenta. E delicada. Já acordei rindo.

 

Foi aí que veio o tal de repente. Aliás veio duas vezes.  Sempre explico a ele porque gosto de ópera. Acho que ele já entendeu. Se não entendeu vai entender. Quando ler.

 

De repente o Tempo passa. E passa mesmo. Ciente da sua função. Com absoluto desprezo por reclamações. Vai lá fazendo um percurso que nem sequer é planejado. Lida com tudo com total despropósito. Este é o Tempo.

 

Mas de repente também o Tempo traz as respostas. Os retornos. Os possíveis merecimentos.

 

Entre esses dois de repente – discordei de mim mesma. Depois me convenci de mim mesma. Para depois entrar em estado de dialética.  

 

Diferente do meu poetinha querido, me reconheci.  E,feliz, dei um beijinho no espelho.

 

Não fiquei tão-somente a serviço do Tempo.

Também o fiz existir a meu serviço.

 


Julho 23 2009

 

Acordou com uma nova sensação. Não diria estranha por que não temera. Mas diferente.

 

Nem bem abriu os olhos e já entendia o dia que se iniciava. Enxergou o dia muito mais que o dia já a enxergava. Ainda não se tinham olhado frente a frente. Estavam seguindo nos subterfúgios da noite disfarçada. Uma troca de faltas por excessos. Ou ao contrário. O dia requeria calma. Para ser vivido. Mas vai lá saber por que – já sabia disso antes.   

 

O brilho entrava por baixo de uma porta. E pelas frestas da outra porta. Compreendeu. O sol se fazia forte.

 

Junto com o despertar um súbito pensar. Duas palavras. E tudo isso antes de levantar. Antes de por o primeiro pé no chão. Antes sequer de imaginar colocar o segundo pé no chão. Ate riu quando pensou nisso. É verdade.

 

Começo é colocar os dois pés no chão. Parece um chiste á toa. Mas não é.

 

Condescendência amorosa. Estas eram as duas palavras. Sob a luz da manhã.

 

Lembrou da avó da amiga. Ela sempre avisava.  O sol sempre cria a possibilidade da sombra, menina, o sol sempre cria a possibilidade da sombra.

 

Entendeu bem a avó.

 

Mas coragem. Pôs os dois pés no chão.

 

Se sentiu como uma caricatura de si mesma. Ali. Ao lado da cama. Olhando a fresta da luz e de pé. Até olhou para os pés. Em outros tempos voltaria para a cama e começaria tudo de novo. Agora não. Enfrentou. Lá se foi com seu pé ordenando e obedecendo. A caminhada.

 

Saiu do quarto.

 

O céu estava de um tom de azul quase artificial. Intenso. Lindo. Um leve ventinho frio ainda se despedia da madrugada. O sol brilhava no alto. Foi até a varanda. Fez um gesto casual. Os passarinhos na sacada – saíram.

 

Casualidade permite leituras bem particulares.

 

As duas palavras não escapavam. Firmes. Condescendência amorosa.

 

Vai lá saber por que desceu as escadas correndo. Olhou o mundo em volta. E deu inicio ao programado. Pratinhos. Talheres. Toalhas. Bandejas. Até incenso. Foi fazendo na sequencia. Para que escapasse o mínimo. E todos se sentissem privilegiados. Dentro do seu estilo. Dentro do seu festejo.

 

Tudo marcado para o final da tarde. Para uma múltipla celebração. Todos felizes.
Ele com o sucesso já invadindo as portas recém abertas. Uma consequência do trabalho ético e árduo.
Ele tinha sido promovido na semana. Uma consequência da dedicação e responsabilidade.
E ele estava com os limites orgânicos se restabelecendo. Uma consequência da persistência e confiança.

 

E todos com um fio condutor em comum. A vida. Quase como uma poesia.

 

Se sentiu como numa platéia. Participante entusiasmada deste mundo em organização. Até se viu aplaudindo e dando vivas.

 

Telefonou para ele. Houve um pequeno mal entendido. Acertou meio que às pressas.
Telefonou para o outro. Novo pequeno mal entendido. Emendou o mais rápido que pode.

 

Riu. Até riu mesmo. Já estava tomando proporções maiores. Melhor não falar com o terceiro. A esta altura já se sentia numa maratona de palavras. E erradas - lógico. Como se em saltos com vara. Fora do risco permitido. Desistiu.

 

Achou melhor cuidar das tarefas braçais. Com dedicação. Com parcimônia. Com sobriedade. E dentro do que elas representavam. Sem buscas pela intelectualidade. Sem esforços analíticos. Sem digressão filosófica. Assim ela me disse. Assim ele falou. Assim você se comportou. Nada disso. Não era o momento.

 

Encerradas as tarefas – sentou. Sob o sol. Não viu a própria sombra. Nem tampouco procurou. Recostou numa cadeira. Com total tranquilidade.

 

Achou dentro de si o que procurava fora. Concluiu. É algo sempre solicitado. Mas pouco disponibilizado. E vira um-sem-fim-de-queixumes. Afastou esta frase inteira. Apagou hífens. Retirou as ligações. Os plurais. Os infinitesimais.

 

Deixou – simplesmente - que o sol esquentasse a pele. Sorriu. E aguardou. Aguardou a chegada deles. Para a celebração.

 

Estava feliz. Muito feliz.

 

Com toda a condescendência amorosa o vento balançava - com suavidade - a toalhinha branca sobre a mesa posta.

 

 


Julho 21 2009

 

Acordava sempre muito cedo. Não tinha um só dia que não reclamasse.

 

Lembrava dos tempos da graduação. A única matéria que tivera problema. A aula se iniciava quase com o nascer do sol. Não dava muito certo. Se faltava – era porque não conseguia acordar. E quando ia - passava todo o horário da aula dormindo. O professor até ria. Quando estava de bom humor.

 

Mas nem sempre ele estava. De solidário bom humor. Perdeu. Fez uma recuperação. Que - por sorte dela - começava depois do dia já normal. Assistiu todas as aulas. Foi aprovada. Com as boas notas de sempre.

 

Enfim. Sempre fora desse jeito. Podia emendar noite com dia. Em tarefas ou prazeres. Mas nunca acordar antes do sono já vencido. Quando isso acontecia o sono é que saía vencedor. Assim explicava. E assim ria. De si e da explicação. Podia até faltar disposição matutina. Mas bom humor nunca faltou. Fato verídico e comprovado.

 

Mas parece que é desta forma que o mundo rege. Ou é regido. Na contramão do desejo. Ou da vontade. Ou da idéia. Não importa.

 

Após a tal graduação não faltaram motivos. Ou imposições. Ou talvez ainda ocasião. Parecia que tudo para ela só começava cedo. Cedíssimo.

 

Aceitou. Se é para ser – aceito. Não adianta ir contra. Fui vencida.

 

Pior ainda do que no tempo da graduação. Agora acordava antes do sol. Enquanto ele se espreguiçava - ela já estava de saída.

 

Mas não era tão resignada. Fingia. Mas não era. Reclamava. Muito. Fez mil invenções. Inventou susto oriental. Afundou despertador. Toques de submarino. Da mitologia à tecnologia não faltou ameaça. Ameaçava tanto que já nem sabia mais a ordem.  

 

Mas uma coisa não se podia dizer dela. Que atrasava. Nunca. Nem uma só vez. Não atrasava. Ao contrário. Até se antecipava. O amadurecimento tem lá suas vantagens. Não se luta contra o óbvio. E aprende-se que minutos não compensam horas. Às vezes ela se atrapalhava e dizia o contrário.

 

Mas cumpria o que tinha que ser cumprido. E recebia elogios. Muitos perguntavam se vinha daquele país onde a pontualidade tem nome e sobrenome. Faziam piadinhas e gracinhas. Com a pontualidade antecipada dela.  Não se aborrecia. Ria. E se surpreendiam. Quando revelava a origem. Aprendeu a se divertir com isso também. Eis algo que o despertador não tirou. O entusiasmo pelo riso. Isso era factual. De relação profissional a particular. Ou de afetiva e amorosa. Sempre era esse o comentário. Estava sempre bem disposta. E procedia.

 

Neste amanhecer foi especial.

 

Desceu as escadas. Ainda estava escuro. Reclamava de si para si. Sim. Não tinha ninguém saudável àquela hora acordado. Tinha que reclamar e responder. Ela com ela mesma. Como uma esquizofrenia matutina. 

 

De repente escutou o aviso de mensagem no celular. Conferiu. Era dela. De lá. Além mar. Mandava um recadinho. Não imaginava que ia ser lido naquela hora exata. Outro fuso. Outro horário. Mas em tempo real.

 

Entendeu pela primeira vez o significado emocional disso. De tempo real.

 

Não resistiu. Respondeu. Ela retornou. Surpresa. E ficaram de conversinhas. De combinações. De comparações. Uma de cá - no escuro do dia recém amanhecido. A outra de lá - no escuro do dia já alto e enevoado. As duas no escuro. Clareando as idéias com o feliz riso solto.

 

O pão queimou. Ficou igual às duas auroras. Num momento de concentração na resposta se viu colocando manteiga dentro da xícara de café.  Informava a sequencia de erros. E riam. E trocavam as novidades. Rapidamente. Não podia se atrasar. Ela daqui. Nem ela de lá. Cada uma compromissada com a própria rotina.

 

Depois de pães queimados e leites derramados - não choraram. Riram. Ela – prática –avisou. Vamos tocar o dia. Boa sorte no seu. Ela de cá respondeu. Sim. Muito boa sorte no seu também. E no silêncio da comunicação teclada - se entenderam. E se despediram.

 

Pela primeira vez em tanto tempo – não reclamou. Estava feliz com o despertar cedinho. Achou até que já estava acordando tarde.

 

Riu. Imaginou o que diria o tal professor se tivesse assistido esta cena.

 

O dia seria muito bom. Sem dúvida. E imitou às avessas – e em homenagem – o conterrâneo dela.

Tudo fica bem – se começa bem.

 

Acabou a arrumação e saiu feliz.

 


Julho 18 2009

 

Tomou uma decisão. Vou separar as fotos.

 

E entregar cada pacotinho ao seu dono. Aos donos das respectivas imagens. Poderiam –eles - contar a história delas. Ou recontar o que escutaram sobre a história deles. Teriam uma prova documental diante de relatos. E a cores.

 

O ao vivo ficaria por conta das falas. Dos textos acrescentados. Das invenções encobridoras das falhas de memória. Mas tinha certeza. Nada ficaria sem uma resposta. No mínimo um acréscimo fantasioso.

 

Lembrou da avó de uma amiga. Não existe relato verdadeiro se não somar a ele uma fantasia menina, se não somar a ele uma fantasia.

 

Sentou ao lado das gavetas. Decidida. E começou a seleção.

 

Do mesmo jeito que veio a idéia veio uma sensação nova. Não diria estranha porque tudo era familiar. Apenas o tempo fez um contorcionismo. Virava de ponta-cabeça. Esticava membros. Saltava olhos. Pulava arcos. Assim se sentia a cada foto. Ria. Se emocionava.

 

Até cantou uma musiquinha diante de uma das fotos. Se surpreendeu.

 

Aquela música estava tão dentro das gavetas quanto aquelas fotos. Incrível. O que uma foto trás junto com ela.

 

Diante de algumas outras escapou uma lágrima fugaz. Secou rapidamente.

 

Não estava ali para isso. Estava para organizar. Metodologizar. Assim denominou a atitude. Tomara a decisão de forma pragmática. Esvaziaria um espaço. Abriria oportunidade para novos tipos de ocupação. Dos tais espaços. E assim se auto-recriminou. Por lágrimas. Afinal nem havia motivos. Fotos são sinais de vida. De vida festejada. Por isso registrada.

 

Em meio às fotos lembrou-se dela.

 

Era uma fotógrafa especial. Uma amiga também especial. Diferenciada. Via cores extras no arco-íris. Vivia analisando fotos. Desvendando mistérios pelas posturas nas fotos. Analisando contextos familiares.

 

Não havia foto que ela não lesse de uma outra forma. Nunca em cima do que estava registrado. Se era foto de família ia logo avisando - este gosta mais deste do que daquele. Olha a inclinação da cabeça. Pende para o lado dele. Se era uma foto solitária ou diante de algum ponto turístico - também informava. Olha o jeito das mãos. Está um pouco decepcionado com o que viu. Ou, observe o riso. É tímido.

 

E assim ela ia analisando mais que vendo.

 

Sempre fora divertido ver fotos com ela ao lado. Se era um lugar mais formal, sentia um olharzinho discreto. Cúmplice. E já sabia. A análise estava a todo vapor. Mas respeitava o pudor alheio. Ou a cegueira alheia. Que cada um desvendasse suas fotos. Ou fotografasse seus mistérios. Quando ela o fazia – quando ela fotografava, mais se compadecia do que se divertia. Via sob a lente - a nudez da alma de cada um. E sofria pela imensa pobreza do humano. Pelas vezes que se cobria de panos - para ficar a nu. Ou que percorria fotografando o mundo – porque não sustentava fotografar a própria casa. E por aí seguia.

 

Interrompeu o pensamento para tomar mais uma decisão.

 

Metodologia nunca fora seu forte. Deixava que as coisas se amontoassem na ordem dita espontânea. Alguém uma vez sugeriu um termo nada sofisticado. Bagunça. Não se ofendeu. Sorriu. Procedia.

 

Entendia um pouco a vida assim. Sob o viés deste termo nada sofisticado. Ao menos assim parecia fazer com a sua própria. Riu de forma resignada.

 

Estivesse a amiga fotógrafa ali e lá se ia mais uma análise selvagem.

 

Tentou primeiro separar por fases. Depois desistiu. Achou melhor por lugares. Desistiu de novo. Talvez mais certo por tamanhos.  Não deu certo. Já estava até se irritando com a idéia. Ou com a forma de agir com a idéia.

Recusou a irritação. Aceitou a organização. Em parte.

 

Levantou. Pegou duas grandes sacolas. Amontoou as fotos. Colocou-as sem divisão. E sem ordenação alguma.  Dentro das sacolas. Considerou a mais sábia dentre as mais sábias das decisões.

 

Como se sentira assim. Tão poderosa. Ela organizando fotos que entregaria aos seus donos. Absurdo. Prepotência. Entregaria assim. Do jeito que estavam. Em sacolas. E que cada um organizasse e dividisse de acordo com sua intenção. Com a sua invenção. E acima de tudo com sua própria idéia de ordenação e posse.

 

Quando levantou que notou. Estava cantarolando ainda a tal música engavetada.

Sorriu tranquila.


Ficara com a parte que lhe cabia.

 

 


Julho 16 2009

 

Os anos passaram mesmo.

 

Ela nem se dera conta. Termo exato. Não contara o tempo. Os dias. As mudanças das estações. Não deu importância. Nem ao calendário lunar. Só ao que somasse ou multiplicasse. Esta uma forma segura. Ou uma tentativa bizarra. De não angustiar - pelo que não tem. Olhando apenas - para o que tem. Estava se sentindo adequada. Aprendera algo. Aprendera a seguir com os dias. Para a frente.

 

Se escolhera disfarçar a falta - nada melhor que viver de somar. E lá se ia.

 

Somava roteiros. Descobertas. Novidades. Até nomes de ruas.

Mas não é bem assim. Dias também se contam para trás. Porque são particulares. E cada um tem seu próprio calendário. Seu gregoriano de plantão. Como uma emergência providencial.

 

Ao abrir da porta - teve uma sensação estranha. Como se tivesse estado desmemoriada. Ou em estado de esquecimento. Durante muito tempo. Naquele momento se deu conta. Do tempo.

 

Estava bem mais atrás. Quando ela deu a ordem de saída. Seguiu a fila. Ainda no mesmo estado. Caminhava lenta. Compassada. Com olhar de rotina. Sem alardes. Sem manifestações. Não deu para negar um detalhe. Mínimo. Um súbito frio que escolhera o estômago. Dela. Como um posseiro. Impulsivo. Aqui vou estar.

 

Ela desconsiderou. Deveria ser o cansaço.

 

Chegou à porta. Diante da escada. Entendeu uma frase banal. Da tal luz no fim do túnel. Nunca viu tanta similaridade. E entendeu o tal friozinho posseiro.

 

Primeiro o cheiro.

 

O cheiro de mar. De maresia. De berço. De sereia. De fartura. Respirou forte. Como para despertar um sentido até já esquecido.

 

Naquele momento importava respirar. Respirar. Como o primeiro dos atos. Como o primeiro dos instintos. Lembrou de tudo. De tantos. De todos. De teorias. Isso numa única inspiração.

 

Até fechou os olhos. Os sentidos exigem – muitas vezes – privilégios. Concedeu.

 

Deu mais um passo. Sentiu a luz. Uma luz forte. Mas calma. Encheu todo o espaço. Os olhos não demoraram a se acostumar. Mas demoraram a acreditar. Como tinham conseguido compreender.  A distância da luz. E por tanto tempo.

 

Descendo a escada sentiu o calor. Na pele. Nos cabelos. Como um abraço. O calor contornava o corpo como uma manobra de revitalização. Emoldurando, despertava. Como uma aura festiva. Assim sentia.

 

Pareceu escutar um bem vinda.

 

Cercada pelo cheiro. Pela luz. Pelo calor. Decodificado todos os sinais. Na emoção. No corpo. Concluiu. Estou aqui. Como se a memória só naquele momento estivesse despertado. E aberto as suas gavetinhas. Expondo fotos. Marcas. Traços. A própria história. Desde sempre.

 

Obedeceu. Agradeceu.

 

Foi seguindo o percurso estabelecido. De vez em quando até fechava os olhos para sentir mais forte o cheiro. Depois abria os olhos com muito cuidado.

 

Como se assim pudesse separar cor por cor. Com lentidão. Para que nada escapasse. Ficara tomada de egoísmo. Egoísmo pelo puro prazer de quem retorna. Não sabia se havia esquecido aquela intensidade das cores. Ou se havia se defendido – acinzentando a tal intensidade daquelas cores. Tantas vezes o que parece - não é o que parece.

 

É muito mais fácil viver o prisma inteiro que um único ângulo.

 

Escutou sotaques. Regionalismos. Palavras que nunca mais dissera. Comportamentos que nunca mais tivera.

 

Recostou no carro. A cabeça um pouco para trás. E assim ficou. O tempo que o percurso durou. Virando com vagar para mais um detalhe. Ou para saber das ausências. Das mudanças. Das descrenças.

 

Foi retomando seu registro. Entendendo a própria presença. Se incluindo no estilo. Se re-compondo. Poderia sentir. Dizer. Repetir. Escutar. Sou daqui.

 

Olhou para todos os lados. Para todos os espaços. E respirou - tranqüila.

 

Por um período - estava de volta. Apertou forte a mão dele na dela. Sorriu.

 

 

 


Julho 12 2009

Ela me telefonou. A noite mal se instalara. E ela agia como madrugada afora.

 

Passara a semana toda pensando o que fariam. Na sexta. Mil programações.

 

Tinham duas comemorações pessoais. Acreditou. Ele viria mais cedo. Para comemorarem.  Organizou o roteiro. Escolheu os cardápios. Organizou o vestuário. Seria uma noite festiva.

 

Fazia tempos que eles não tinham tantos motivos. Para festejo. Para celebração. Sim. Esta a palavra certa. Celebração. Decidiram por celebrar os bons acontecimentos da semana.

 

Quando me telefonou estava emocional. Passional. Parecia filme italiano. Podia ate vê-la gesticular.

 

Ri baixinho. Não queria provocar mais emoções fortes. Quando ela se desacreditava ela se descomprometia. Com o mundo. Com as etiquetas. Com as regras.

Parecia que entrava em narcose. Porque todo o jeitinho calmo e suave se transformava.  Em explosão.

 

Lembrei a minha avó. Ela dizia sempre. Cuidado com as pontuações, menina, cuidado com as pontuações. Nunca vi ninguém que se adaptasse tão bem ao tal aviso de alerta.

 

Falava sempre doce. Com vagar. Nas frases dela continham de tudo. Desde hífen até exclamações. Mas tudo muito suave. Compassado. Parecia uma harpa. Com toda a leveza musical. Como um dedilhar pelas cordas.

 

Até a hora que se desacreditava.  Ai sim. Nem toda bateria faria tanto efeito. Era um ressoar de múltiplas sonoridades. Simultâneas. Sincrônicas. Um outro tipo - de pontuação - surgia.

 

Uma amiga a tinha convidado. Teriam um encontro para um café. Um vinho. Qualquer líquido acessório. Cancelou. Cancelou. Ele avisou que viria cedo. Preferiu esperar por ele. E não fazer encontros com pressa.

 

E ficou sozinha em casa.

 

Nem acreditou. Depois daquela semana só de problemas. Tudo bem. Nem lembrava mais se tivera problemas. Mas isso não importava. Assim foi logo dizendo. Quando perguntei pelos problemas. Importava que ficara só. Numa noite de sexta.

Dormiria sozinha. Conversaria sozinha.

 

Já estava na fase da bateria. Esta é uma fase onde só produz sons. Não escuta sons. Mais ou menos assim.

 

Mas houve um segundo de silêncio. Um segundo bem fugaz. Por onde pude dizer uma palavrinha. Uma frase. Por que não deixa para reavaliar amanhã. Nada melhor que o dia seguinte. E ainda é cedo.

 

Não respondeu. Ou melhor, não deu tempo de responder. Acho. Porque de repente escutei um som estranho. Algo como um gritinho. Um risinho. Difícil decifrar sons ao telefone. O som seguinte foi um estalinho.

 

Ela voltou a falar com uma voz doce. Aquela de sempre. A pré-bateria. Ele voltara. Não atrasara muito. O trânsito que atrapalhou a pontualidade do relógio. Não a dele. Até contou isso rindo. Estava cheia de graça. Graça até demais.

 

Antes de desligar escutei a explicação. Dela para ele.

 

Foi ela que estava preocupada com você. Ainda me perguntou se eu não me desconfortava. Por você marcar e não vir. Ou por estar em festinhas com suas colegas de trabalho. Imagina. Logo você. Sempre cuidadoso. Afetuoso. Coisa de amiga. Eu estava apenas lhe esperando e lendo. Quando ela telefonou.

 

De novo o som seguinte foi um estalinho. E o telefone foi desligado.

 

Do lado de cá – ou de lá – pensei. Preciso comprar uma tuba.  Vamos ver onde a harpa ficará nesta orquestra.

 

 


Julho 07 2009

 

Decisões são da ordem da auto imposição. Assim fez. Nem bem tomou a decisão e já pôs mãos à obra.

 

Termo bem adequado. Parecia uma obra. Uma construção.

 

Já acordou pensando. Vou arrumar os livros. Nem sabia explicar por que a decisão. Detestava arrumação. E por um motivo simples. Bem simples. Detestava ver a desarrumação que uma arrumação provocava.

 

Alguém havia lhe dito. O por que desta reação. Lembrava, certamente, a desarrumação interna. Como um espelho. Por isso se angustiava.

 

Na época até ficou atenta. Agora decidiu deixar a interpretação de fora. Ao menos naquele momento. Mal dava conta da idéia. Imagina da etiologia da idéia.

 

Riu e prosseguiu na decisão. Cedeu a este primeiro pensamento do despertar. Se tinha um motivo – descobriria.

 

Começou pela estante da frente. Alguma ordem tinha que ter. Para enfrentar a desordem. Escolheu a ordem decorativa, digamos assim.

 

Auxiliada por um paninho, álcool e óleo para couro – lá se foi. Se sentiu uma restauradora daquele famoso Museu. Não faltou nem a máscara descartável. Afinal. Nem só de restauração vivem os alergistas. E vale mais uma vez o contrário. Em parte.

 

Uma idéia realmente de mosteiro. Estilo auto flagelação.

 

Parecia ter tido um começo. Em algum momento começou. Mas confirmava nunca ter fim. Em algum momento assim pensou. Sim. A cada livro retirado para ser adequadamente catalogado – uma nova fileira tinha que ser remanejada.

 

E quando remanejava e dava por encerrado - descobria um volume perdido. Que pertencia justamente – à prateleira que já tinha encerrado. Foram muitas idas e vindas. Sobe e desce. Desvira e vira.

 

Já mais calma resolveu – vai lá saber também por que - abrir os livros.

 

Viu que todos – ou quase todos - tinham datas. E local onde os comprara.

 

Alguns até com dia e hora. E a estação do ano. Até riu. Nem lembrava mais - assim fazia.

 

E assim fez por muito tempo. A cada livro comprado registrava. Os dados do dia da compra. Até o boletim meteorológico. Riu de verdade. Mas não deixou de achar muito boa a idéia. Congratulou a si mesma. Em um deles viu que tinha escrito. Primavera sem flores e com muita chuva. Viu o ano. Será que fora mesmo. Ou seria ela que estava se sentindo assim. Deveria ter anotado melhor. Em um outro estava lá. Dia de sol, final da tarde - a livraria estava vazia. Novamente não sabia se era a sensação dela com ela mesma.

 

De repente caiu um papel. De dentro de um outro volume desgarrado. Amareladinho. O papel. Meio amassadinho. Ou melhor, enrugadinho. O tempo não poupa nem os papeis, pensou.

 

Lembrou daquele poeta. Ele falava isso num poema. De um papel amarelado encontrado num livro. Mas que rasgara sem abrir e ler. Não queria mexer com o passado. Mais ou menos assim, pelo que recordava da poesia.

 

Fez diferente. Abriu. E leu.

 

Era um bilhetinho dela. Avisando que tinha adorado a temporada que tinha passado lá. Que fora muito bem acolhida. E que a adorava muito. Que se sentiu fazendo parte real da família. E que estava com saudades.

 

Quase chorou. Incrível. Ela agora estava casada com ele. E fazia realmente parte da família. E escreveu esse bilhetinho ainda tão criança.

 

Foi em meio a tudo isso que teve uma luz. E que luz. Tirou até a tal máscara. Melhor espirrar que sufocar. Quando a luz vem é preciso se estar exposta. Ficou até de pé.

 

Estantes. Uma real autobiografia. Ou uma prova autobiográfica. Os próprios livros. Estes que se compram e guardam em alguma prateleira. Os lidos e até os não lidos.  Porque são resultado de uma escolha. Denunciam a evolução. A formação do pensamento. De época em época. O crescimento emocional. Não importa o estilo. Importa esta composição.

 

Pelas datas relembrou lugares. Pessoas. Estados de espírito. Movimentos. Ideologias. Filosofias. Entendeu as que ficaram. Compreendeu as que se foram. Assimilou as que se construíram. Avaliou as que sucumbiram.

 

Olhou para os livros como para si mesma. Passou a mão de leve pelas capas. Leu com carinho seus registros. Foi assim organizando - com súbita tranquilidade - toda a estante.

 

Entendeu o próprio pensamento.

 

Ali. Sentada. Diante da tal estante da frente. E de frente para a estante. Ali viu sua vida. Suas buscas. Seus achados e perdidos. E deu um riso particular. Para esta sua idéia ao despertar. Do despertar.

 

Procedia.

 

 


Julho 05 2009

 

Querido:

        Não esqueça  de escovar os dentes deles.
  Falar para a médica sobre a vacinação, a carteirinha está na sacola
  Fale sobre as manchinhas atrás das orelhas deles

  Fale sobre a alimentação

  Pergunte se ela vai passar alguma vitamina

  Fale do dedo que a Marina não tira da boca e já está até machucado – (o que fazer?)

  Pergunte se já está na hora de sair das fraldas (o que podemos fazer?)

  Leva os exames – já coloquei na sacolinha, não achei o comprovante para pegar os outros. Acho que você levou para a Empresa e não trouxe. Leva as carteirinhas que dá para pegar.

  Lave o cabelo do Paulinho.

  O cabelo da Marina é só prender. Fala pra minha mãe fazer dois rabinhos que ela sabe.

  Dá um banho bem dado nos dois, tá?

  Ah! Traz o papelzinho que marca a altura e o peso deles para eu marcar depois na carteirinha...

  É isso. Estou indo sem querer, mas fazer o que... logo estou aí

  Um beijo

 

 

Gêmeos. Foi um susto a noticia. Eles mal tinham saído do juramento na saúde e na doença e lá estavam. Na alegria e na certeza. Sim. Eram dois. E um casal.

 

Entenderam a Vida. A arte da Vida. E a razão de viver. Entenderam tudo isso ao mesmo tempo.

 

A consulta era de rotina. Estava atrasada a fisiologia. Mas devia ser o cansaço. Viajaram logo depois da cerimônia. Na volta foram cuidar de organizar a casa nova. E isso incluía documentos e volta à rotina do trabalho. Nem se preocupou. Tinha engordado um pouco. Devia ter sido pela ansiedade. Da festa. Da viagem. De toda a mudança de vida. Da volta ao trabalho. Dos horários mudados. Estava explicado.

 

Quando a certeza é garantida - é sempre bom duvidar. A experiência é a arte de carregar – com segurança - muitas dúvidas. Assim foi a sabedoria do médico. Achou segurança demais.  Examinou. Solicitou um complemento. Era rápido. Eles, tranqüilos. Conversando e rindo.  

 

Veio o resultado. Foi cuidadoso. Perguntou se já tinham a vida arrumada.

Escutou que sim. Se estavam empregados. Escutou que sim. Se pensavam em ter filhos. Escutou um sim – mais tarde. Entendi.

 

O que vocês acham de sete meses. Acham muito tarde. Muito cedo.

 

Os que riam – silenciaram. O que silenciou – riu. Gêmeos.

 

Saíram do médico e voltaram para casa. Já da porta - no abrir da porta - a casa já não era a mesma que tinham deixado. De repente parecia tão pequena.

 

Horas antes sobrava espaço.

 

Foram a caminho do hospital combinando a decoração. Pensaram em comprar mais uma poltroninha. Quem sabe incorporar um dos quartos à sala. Seria o local da música. Mais um sofá. No terracinho – uma churrasqueira. Teriam tempo. Com calma a casa ficaria como queriam.

 

Na volta já era outra casa. Não a que eles fecharam a porta. E deram as costas. Agora abriam a porta. Olhavam de frente. Tão pequena. Não cabia mais nada. Nem poltroninha. Nem churrasqueira. Naquele minúsculo terraço. Nada mais de som. Muito menos de quarto incorporado.

 

Incorporada estava ela. Duplamente incorporada.  

 

De repente se deu conta. Nem soube dizer por que. Mas entendeu.O mundo das listas.

 

Havia este mundo paralelo. A lista do chá de cozinha. Depois a lista do casamento. Passando por uma lista de convidados. Até a empresa de turismo cooperara - uma lista de hotéis. Teve a do chá de bebê. Bebês. Duas listas. Com direito a cor. A lista das compras. Então assim era o mundo. Só não sabia como não tinha percebido. Que listas não finalizam. Nunca.

 

Agora estava ele ali. Mais uma vez – diante de uma lista.

 

Seguiu – rigorosamente. Com toda a atenção que uma lista merece.

 

Estava com os “listados” no colo. Lindos. Os rabinhos dela maravilhosos. Cheirosos após um banho bem dado. Dentinhos limpíssimos. Feliz. Felizes.

 

Na saída pegou o papelzinho com o peso e a altura para colocar - na lista de acompanhamento deles.

 

Riu. Se sentiu integrado ao mundo.

 

 


Julho 01 2009

Lembrou daquele texto. Ele falava mais ou menos assim - a pena parou.

 

Como se no meio do texto a pena tivesse parado. Ali. Estancada. Sem nada a dizer. Muito menos a declarar. Fez-se paralisia. Congelou. Atos. Não sentimentos.

 

Os sentimentos estavam tão abalados que não se davam conta. Não podiam continuar. Atropelavam-se. E ao mesmo tempo paralisavam. Sensação estranha.

 

Parecia que os fragmentos do tempo se afastavam. Deixando pedacinhos soltos. Como mosaicos abandonados – decompondo sua forma. O que era para ser continuação – virou passado. E como passado foi reportado.

 

Tudo numa mesma declarada inversão. Onde tinha que ter não tinha. Onde tinha que estar – já não mais existia.

 

De repente tudo ficara sem cor. Sem lastro. O alcance tinha sido maior que pudera imaginar.

 

A notícia viera junto com uma lágrima. Ficou ali escutando. Dizem os entendidos - em situações limites - falta chão. Parece uma metáfora sem importância. Ou uma analogia. Ou apenas uma comparação banalizada. Mas se é verdadeira não se sabe. Porque ali parecia o contrário. Sobrava chão. Muito chão. E não se sabia que lugar pisar. O que faltava era ar.

 

Se sentiu sufocada. Presa em algum ponto do discurso dela. Ficou assim. Suspensa na palavra. Presa na angústia. Paralisada na dor.

 

E ela em frente. Contando. Contendo. Relatando. Expondo a sua dor. A sua falta. O seu desamparo. Mostrando no corpo o resto inútil que lhe ficara.

 

Lembrou o Francês. Se uma perda é muito grande – a perda seguinte é das palavras. Procede. Teve abraço. Teve choro. Mas não teve palavra. Pelo menos a palavra certa. Deve existir uma só que seja. Que se diga. E que acalme. Proteja. Explique. Console.

 

Mas isso já é pedir demais a uma palavra. Ela vem em auxílio - em auxílio. Nunca em função. Parece que a palavra não tem função. Tem regra. Tem sinônimo. Tem antônimo. Tem até acento. Mas não tem função. Descobriu isso na hora. Na hora de verbalizar. Por que verbalizou silêncio.

 

Fez um esforço enorme. Para mover os lábios. Começou pelas letras. Tentou formar a palavra. Construir uma frase. Assim, desta forma. Como quem engatinha. Pensando em andar. E perdida naquele excesso de chão.

 

Não conseguiu falar. Ou melhor, conseguiu falar. Não conseguiu dizer.

 

Dizer da enormidade da dor compartilhada. Da compreensão da dor individualizada. Da certeza de uma dor materializada. Que até – de tão forte - podia ser tocada. E que não faltava chão. Sobrava espaço. Tinha agora ali, diante delas - um lugar vazio.

 

Foi tudo isso que quis dizer. Letra por letra. Mas só disse silêncio.

 

E paralisou diante da dor. Da ausência.

 

Quando ela saiu não sabia o que fazer. Com o dia. E fez o que tentou fazer com a palavra. Fez minuto a minuto. Depois as meias horas. Para depois completar o ciclo das horas. Seguiu então o compasso das horas inteiras. Fez o dia - apenas - cronológico.

 

E levou consigo os dias que não virão. Junto com este dia encerrado.

 

Haverá sempre um chão sobrando. Uma presença faltando. Haverá a ligação. Pelo elo faltante.

 

Uma ligação pela ausência. Fazendo assim bascular a impossível presença. Mas ainda assim - presença. Ou ainda assim – ausência.

 

Quando uma ordem é invertida – toda uma nova equação tem que ser estabelecida. E todo um tempo novo precisa ser – existencialmente - acreditado.

 

Ficou - em meio a este passar de dia cronológico - pensando nas idéias do filósofo alemão. Ele garantia que só a dor é positiva. Devia saber o que falava. 

 


Junho 29 2009

 

Estava calada. Aliás, nos últimos dias pouco falara. Algo estranho acontecia com o seu corpo. Sentia desânimo. Vontade de ficar na cama o dia todo. Já acordava assim. Nesse total desalento. Algumas pessoas mais próximas notaram a mudança dela. Até as mais distantes perceberam.

 

Justo ela.

 

Vivia em constante atividade. Nem bem acabava uma tarefa e já organizava outra. Fins de semana agitados. Ia ao cinema. Ao teatro. Ao parque. A Feirinha de Artesanato. Quando estava se sentindo sem opção ia até visitar canil. Mas parada - não ficava. Nada de ficar em casa deitada.

 

Alertava. Desativar a vida em Vida é ofender ao Universo. O Universo pretende ação. E lá se ia com suas idéias motoras em profusão.

 

Mas estava desse jeito. E sentia um mal estar ocasional. Em especial no final do dia. Atribuiu ao cansaço. Muito cansaço. Não sabia explicar do que. Ou contra o que. Com tudo isso acabara diminuindo o seu ritmo. Deveria estar descansada. Mas parecia esgotada.

 

Um dia acordou em absoluto mal estar. Não saiu da cama todo o final de semana.

 

Ele ficou apavorado. Ofereceu tudo. Negou tudo. Reclamou. Acarinhou. Fez sugestão de bom gosto. De mau gosto. Provocou. Ameaçou. Até comentou que devia ser coisa da idade. Aí ate se afastou um pouco. Achou que poderia sofrer uma agressão física. Mas nada a fez reagir. Ela só dormia e acordava. O esforço maior - foi mudar o lado do travesseiro.

 

Decidiu. Na segunda vamos ao médico. Ela respondeu. Nem pensar.

 

Estava com medo. Uma amiga sempre dizia. Depois que se descobre – o processo se acelera. Não. Ficaria assim. Era só cansaço mesmo. Vai ver acumulado. De muitos anos de atividade. Lá um dia o corpo cansou. Pronto. Foi isso. Mais um tempo deitada e o corpo esqueceria o cansaço.

 

Corpo tem memória fraca. Disso tinha certeza. Corpo esquece o que é frio – no verão. E o que é calor – no inverno. E vai ver o dela se atrapalhou. Confundiu agitação com inércia. E estava exercendo seu despreparo mnêmico. Isso. Até gostou deste diagnóstico.

 

Não fosse a pouca vontade de falar até teria dito isso a ele. Mas com uma certa tontura se aproximando e se afastando continuamente - achou melhor calar e pouco se mover.

 

Nada o convenceu. Na segunda foram para o hospital.

 

Ela pouco reclamou. Estava pálida. Sentia um desconforto no estômago daqueles que só se contava em filmes. Concluiu. O corpo deve estar se lembrando de algum filme. Deve ter esquecido que o final de semana acabou.

 

Foi para a sala do médico.

 

Entrou. Sentou diante dele. Ele ao lado. Apavorado. Olhava para o médico.

 

Ela explicava. Ou tentava explicar. Foi logo avisando sobre a teoria do esquecimento do corpo. Ou sobre o corpo confuso.

 

Solicitou alguns exames. De emergência. Já. Ela ainda tentou recusar. Mas a tontura a fez sentar de vez na cadeira.

 

Duas horas de espera - pelos resultados.

 

Enfim. O médico apareceu. Segurava alguns envelopes nas mãos. Avisou que precisava de mais um exame para confirmar a suspeita. Suspeita. Olhou para o marido que apertou a mão dela.

 

Entraram juntos. Ela deitou. Ele fazia o exame e olhava para a tela. Tudo que ela via era a cor sob muitas nuances. E movimentos. A esta altura já estava se sentindo mudando de espaço. E tão jovem. Quem diria.  

 

O médico sorriu. Para os dois. E falou. Não sei se o corpo esqueceu. Ou se o corpo lembrou. Mas são três. Três. Devem se lembrar em mais ou menos sete ou oito meses. Agora é seguir acompanhando.

 

O marido perdeu a voz.

 

Ela chorou.

 

Lembrou da amiga. A da teoria dos processos descobertos - e acelerados.

 

Riu. E todos riram juntos.

 

Estão lindos. Sim. Não param. Decidi comemorar. Quatro aninhos. E estão tão bem.

 

Ele está na natação. Ganhou uma medalha ontem.
Ele escolheu judô. Até incentivei. Para ver se sossega um pouco. Ele vive sob propulsão motora.  
Ele não. É tranqüilo. Adora ficar sem nada fazer. Adora uma cama e uma televisão no final de semana.

 

 

É verdade. Falou rindo. Eu nem lembrava mais disso.

 

 

 



Blog de Crônicas - situações do cotidiano vistas pelo olhar crítico, mas relatadas com toda a emoção que o cotidiano - disfarçadamente - injeta em cada um de nós.
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