Fiquei lendo o que ela escreveu e pensando.
Fui até mais além. Fui aos pensamentos por trás dos pensamentos. O que sempre é um risco para a lucidez. Mas enfim. Lucidez é coisa que se perde aqui – acha ali. É saber aproveitar do efeito elástico. Isso a vida vai ensinando.
Se tem conceito que não se estabelece é este. O da lucidez. Cada um faz sua leitura. Sua assinatura. Sem esquecer a crítica amadurecida e imatura. E assim se vai construindo e destruindo no dia-a-dia - a lucidez.
Assim pensando - fiquei diante do texto. E o texto diante de mim. Por um tempo.
Havia chegado tarde. E naquele estado de final de jornada. Poderia até dizer estado letárgico. Sim. Não queria mais pensar. Muito menos decidir. A jornada cobrara seu alto preço em decisões. Estava exausta. E num estilo sofisticado. Colocando as costas da mão por sobre a testa.
Mas vi que chegou uma mensagem. Optei por ler. Era ela. Vai lá e leia. Depois se puder comente. Um recadinho tímido. Fosse uma voz eu diria que era rouca. Mas na escrita sugeria letras minúsculas. Discreto e recatado. O recadinho.
Obedeci de imediato.
Vou ter muito que agradecer a ela. A começar pela sabedoria. E pela forma refinada de expor. Pela maneira singela. Como se me mostrasse um álbum de fotos delicadas. Timidamente impressas em papel fino. Envoltas em papel de seda. Que precisavam ser desenroladas e tocadas por mãos hábeis. Para que nada se perdesse. Ou fizesse riscos encobridores. Coisa mais linda.
Pela primeira vez acho que entendi. A originalidade da escrita. A força da escrita. As marcas que pode deixar.
Aprendi com ela. Escrever também é assim. Escrever é como fotografar. Ler pode ser como olhar para uma foto.
Essa idéia me levou a lugares onde nunca fui. Vi fotos em cada página escrita. Redesenhei textos. Revelei relatos antigos. Guardei os esquecidos negativos. Fui de lembrança em lembrança enquadrando as imagens. Foi aí que rebusquei todos os cantinhos por trás dos pensamentos. Assim me senti.
Ela descrevia a nós todos. Coloria a descrição.
Era como se – olhando para o texto – lesse fotos. Como fazia aquela minha amiga. Discorria sobre as fotos. E colocava textos nas imagens. Ela foi mais sábia. Metaforizou imagens - uma a uma - no texto. E esbanjou instantâneos. Desconsiderou poses. Deliberadamente recusou imitações.
Ficou no silêncio. E no próprio silêncio – nos expôs. Nos organizou.
Impossível não lembrar a minha avó. Ela sempre dava um aviso. Nunca leia sem emoldurar as páginas, menina, nunca leia sem emoldurar as páginas. Não entendia muito bem – nem muito mal – o que ela me dizia. Achava complicado.
Agora sim. Tantos anos depois. Agora entendi. Até repeti aquele meu aceno positivo em memória dela. Estava correta. Foi lendo o texto que compreendi. E consegui emoldurar as páginas. Mais ainda. Emoldurei parágrafos. Separei por cores. Por nuances.
Dava para ver os risos. Os dentes brancos. As taças. As cores dos vinhos.
Dava até para enxergar os códigos e simulações. Tudo estava na foto. As pessoas eram poucas. Cabiam num pequeno enquadramento. A moldura não deixava ninguém de fora.
Assim fiquei diante do texto dela. Como que subitamente despertada.
Compondo fotos. E decompondo palavras. E vale o vice-versa.
Muito mais que um limite impreciso – é um des-limite preciso. De quem escreve e descreve. Para quem lê e assimila.
Mesmo por trás da lente. Amparado por um tripé de letras. Até se usasse aquele paninho preto dos fotógrafos de rua antigos. Decidindo por onde começar. Como continuar. Salvaguardando ângulos. Priorizando luzes.
Nada impede - o fotógrafo fica na foto. Estava ela ali. Focando. Escolhendo. Gravando. Mas estava dentro. Todo o tempo.
Não sei se ela sabe. Se entendeu. Ou se disfarçou. Mas – independente - a mágica se fez. Esta também uma possibilidade que somente a escrita permite.
Esta é a verdadeira magia da letra. Não porque vira contra o feiticeiro. Mas porque inclui o feiticeiro.