Blog de Lêda Rezende

Março 26 2009

Decidimos ir juntas. As três.  Ao mesmo espaço.

 

Assim poderíamos falar e trocar opiniões. E sugestões. Imagens sempre são objetos de inseguras opiniões. E cuidadosas sugestões. Por uma palavrinha mal colocada, ou mal sonorizada, pode-se provocar enormes desastres.   

 

Mas fomos lá. As três. Ela viera de muito longe só para este acontecimento. Era realmente um acontecimento.

 

O lugar era muito lindo. Uma delicada mocinha nos servia a bebida adequada ao ambiente todo o tempo.Se tivéssemos concordado todas as vezes que ela vinha nos oferecer, iríamos acabar mesmo era dormindo. Com todos ou sem nenhum dos acréscimos escolhidos.

 

Começaram as mudanças. Pinta. Corta. Prende. Enfeita. Acrescenta. Esconde. Nos indicaram o outro andar. Para complementar. Neste andar outra delicada mocinha e um delicado mocinho se incumbiam dos últimos retoques. Ele foi logo avisando. O delicado mocinho. Nada de ficar piscando os olhos. Isso só atrapalha. Gente fina não pisca o olho nestas situações. Fica até catatônica. Mas não pisca. Um movimento em falso - e tudo poderá estar perdido.

 

Antes de chegar a minha vez escutei o que o delicado mocinho falava. Para uma sofisticada senhora. Conversavam sobre as distâncias. Ela tinha voltado de bem longe, de uma viagem de quarenta dias - há dois dias. Trouxera-lhe os famosos doces, de lá, de presente. Ele nos informou. Orgulhoso pela competência. Ao menos assim me pareceu. Logo que ela saiu. Quando na cidade, nunca lavava o rosto em casa. Só neste lugar. E sob os cuidados dele. Trocava a cada dois dias. Os artefatos, digamos assim.

 

Fiquei imaginado o quão relativo e elástico é o significado da palavra prazer. Considero, como um deles, aquela coisa simples da água escorrendo do cabelo aos pés. Assim, sem pretensão. Desde a invenção do chuveiro. Eu a achei admirável. A senhora das longas viagens. Mas não a invejei.

 

Chegada a minha vez, esforcei-me muito para ficar catatônica. Lembrei da minha avó. Vivia me repetindo. Fica parada uma vez só, menina, fica parada uma vez só. Foi difícil. Mas consegui. Ganhei um meio elogio. Dito à meia voz. Sem muita convicção. Mas aceitei. Até agradeci. À minha avó. Não ao delicado mocinho.

 

Enfim encerrada esta tarefa-escrava-da-vaidade.

 

Estávamos as três lindamente irreconhecíveis. Assim nos diziam. E eu até dei uma confirmadinha no espelho. Num passar rápido de olhos. Gostei do que vi. Mas nem insisti. Numa outra olhadinha. Naquela altura do tempo não dava mais para discordar de nada. Entendi em segundos a frase que se diz. Em cima da hora. Entendi na hora que ele ligou. E falou assustado. Ainda. Ainda estão aí.

 

Quase me confundi com a senhora do-rosto-não-lavado-na-residência. Parecia que estávamos fora há já aos tais quarenta dias. Pedi calma. Mais a mim que a ele. E retornamos. As três.

 

Não dava para acreditar. Em meio à caminhada de volta. Isso não poderia ter acontecido. Depois de tanto esforço. E dizem que Ele lhe deu a chave do Paraíso. Não pode ter sido. Ou vai ver deu um cochilo. Não se tem tanta coragem assim em desagradar mulheres. Mesmo lá de cima. Pois é verdade. Caiu de súbito a maior chuva. Chuva de verdade. Como nos livros. E a chuva nada respeita. Nem às ordens do delicado mocinho. Mas não dava mais para fazer reflexões sobre meteorologia.

 

Nos enfiamos sob a marquise de um prédio. As três. Assustadas. Temerosas. Com medo de água. Nesta hora entendi a senhora das viagens longas. Certa ela. Não se pode mesmo sentir prazer em gotas caindo de cima. Entendi. Com certeza ela nunca brigaria com o portador da chave celestial. Ao menos não por isso.

 

Pedimos a eles que viessem nos buscar. Estavam juntos. Nos aguardando. Ele tentando acalmá-lo. É perto. Sabemos disso. Apenas uma quadra. Mas com a chuva não dá. Para continuar caminhando. Vieram. Nem sei quem se assustou mais. Porque ele deu um grito de horror. A esta hora. E vocês ainda estão assim. E nós de cá. Outro grito. E como poderíamos estar a esta hora. Só assim.

 

Subimos no apartamento. Correria total. Nem toda maratona. Nem estréia de peça em teatro italiano. Nem cerimônia grega. Veste daqui. Tira dali. Calça daqui. Prende dali. Concorda. Discorda. Reage. Briga com o Criador. Blasfema. Pede perdão.

 

Finalmente prontos. Saímos. Já na porta do elevador escutamos algo que parecia um grito. Até hoje ainda não sei ao certo. O que foi aquilo. Um grito. Um trovão. Uma donzela de ópera. Voltamos alvoroçados. Sei que com o susto a gata pulou em cima do sofá. De branca ficou transparente. Esquecemos dela. Dentro do apartamento. Trancada. Toda pronta. E ia ficar lá. Esquecida na correria. Voltamos todos.

 

Em segundos  foi elaborado um Novo Tratado sobre Culpa e Perdão. Em letra maiúscula. Agora sim. A ordem do delicado mocinho quase se cumprira. Catatônicos. Todos.

 

Recuperamos o susto. Ela a voz. Nós os tímpanos. A gata a cor. Descemos. Entramos no carro. Alguém sugeriu um desmaio na cerimônia. Porque não tinha almoçado. E nada comera até aquela hora. A tão ansiada hora.O freio se fez tão rápido que todos foram em direção ao vidro.

 

Ele desceu. Comprou balinhas. E entregou. Ordenou que comesse logo. Não queria desmaios.

 

Mais confusão. Um brinco se perdera. Todos mergulhados no carro procurando. Nada. Nova ordem. Esquece o brinco. Quase esquecia até das orelhas. Com a rigidez do decreto. Assim pareceu na hora. Um decreto.

 

Enfim. Chegamos. Com ar de paisagem. De paisagem pós-sedação. Todos lentos. Sorrisos educados. Cumprimentos formais. Como se o mundo tivesse sido criado naquele momento.

 

Uma senhora, que me pareceu das Forças Armadas, organizava o cerimonial. Era loura. Pensamento rápido e inoportuno. Algo ela notou. Porque disse meu nome. E me mandou ficar atenta. Em determinado momento, enquanto ela dava as orientações ditas protocolares, até ele arriscou mudar por um segundo de lugar. Escutou de imediato. Volte já para o seu lugar. Sàbiamente obedeceu.

 

Ela entrou linda. Tranqüila. Ele, belo, a aguardava no percurso.  Nós estávamos todos ali. Enfileirados. Tranqüilos. Emocionados. Assistindo.

 

Sim. Sim. Por toda a vida. Na saúde. Na doença. Na alegria. Na tristeza.

 

Sem um brinco. Sem desmaios. Nos lugares certos. Com laços - de todas as formas - unindo.

 

Coitada da gata. Até hoje se recusa a ficar na sala quando escuta barulho de saltos altos.

 

 

publicado por Lêda Rezende às 21:17

Imagino que tenha sido um dia em grande... Esepro também que a gata supere esse dito "trauma", estou a brincar... Adoro vir até aqui, para além de ser um blog apaziguador, existem sempre, em cada post teu, uma expressão que se grava na minha memória, hoje sem duvida que adorei: "Gente fina não pisca o olho nestas situações", gente fina ou não acaba sempre por desfalecer e deixar a palpebra descair...

Já está a chegar o fim de semana, já se pode desligar o despertador impiedoso...
Beijos
Teresa Isabel Silva a 27 de Março de 2009 às 14:53

Blog de Crônicas - situações do cotidiano vistas pelo olhar crítico, mas relatadas com toda a emoção que o cotidiano - disfarçadamente - injeta em cada um de nós.
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