Perguntou de onde eu viera. Esclarecida a minha procedência se sentiu mais à vontade. Foi o que me pareceu na hora. Porque desatou a falar. O que deveria ser uma conversa - com limites dirigidos - se transformou num monólogo estilo vôo livre.
A mulher observava. Calada. Fiquei com uma dúvida. Se ela estava carinhosamente atenta. Ou entediadamente dispersa. Esta separação é bem difícil em alguns casos. E este era um deles. Mas ela ficou ao lado. Do lado. Olhando para ele. Esta também é uma forma de afeto.
Informou ser tenso e agitado. Desde pequeno. Rimos. Muito. De onde ele viera todos são conhecidos como tranqüilos e descansados. Explicou. Tinha uma explicação plena de sabedoria. Escutei. Até deixei os aparelhos de lado para escutá-lo.
Começou pelo sol. O sol sempre cruel e pontual. O inverso também é válido. Nunca faltava. Nem um dia do ano. Vinha cedo e só saia depois de deixar o chão fervente. Dia após dia. Todo o tempo entre o sol e a noite.
Veio entender o que eram estações do ano quando de lá saiu e para cá veio. Achou a coisa mais linda do mundo. As mudanças na cidade de acordo com a época do ano.
Pela primeira vez na vida se interessou em comprar roupas. O primeiro casaco de frio. Não reclamou. Festejou. Parecia coisa do outro mundo. Nem conseguia dormir olhando-o pendurado na frente da cama. Adorou. Tremia de frio - mas comemorava os arrepios. Como uma festa no corpo. Sorriu quando falou isso.
A mãe grávida, dele - trabalhava na roça.
Ele nascera diante de uma cisterna. Diante de um balde caído no chão. Diante da pouca água derramada. Entre gemidos e correria. A força da mãe para conseguir a água provocara-lhe o nascimento. Antecipado.
Foi nesse cenário que veio ele ao mundo. A um mundo pleno de calor. De ambas as formas. Nunca entendeu. Como sobreviveu. Principalmente depois que viu a filha nascer. Envolta em tantos cuidados. Num ambiente especial. Só para nascimentos. Achou surpreendente. Os dois nascimentos. O dele. E o dela.
Mas retomou o enunciado inicial. O por que de ser agitado e tenso. Eis a razão. Enfim justificava. Desde o primeiro olhar viu correria. Estava explicado o fato e assim entendido. Lembrei do livro do alemão.
Ele fora o primeiro que viera para cá. Ainda adolescente. Mal sabia onde estava. Tinha medo. Mas enfrentava. Numa noite, sabe-se lá porque, tomou uma decisão. A segurança das pessoas iria ser a sua função. Assim fez. E até hoje faz. Lá se vão trinta e sete anos desde o dia da cisterna. E vinte de proteção desde o dia da decisão.
Contou, com uma ponta de vaidade à mostra, um elogio. Num dia de condecoração. Ficou feliz porque o elogio englobava todos da sua região de nascimento. Foi elogiado e citado como um entre tantos que de lá vinham que honravam a profissão. Muito mais que orgulho por si, sentiu orgulho por um povo. O seu povo. Homenageado num discurso de condecoração. Ficou radiante. Quase igual ao primeiro dia de frio. O corpo tremeu. Pelos muitos que nascem diante da cisterna. Por outros tantos que nascem na solidão de um roçado. Mais ainda pelos que nascem e nem suportam esta solidão. E se vão. Sem nada por aqui verem. Nem a beleza das estações do ano.
Os demais irmãos vieram depois dele. Todos hoje graduados. Nível universitário. Falou com satisfação. De um dever cumprido. Acolhera a todos. Com muita dificuldade conseguiu protegê-los. Descobriu, assustado, que muito mais fácil se protege um estranho que um parente. Riu. Não perguntei por que.
Deixei que falasse. Diante de mim. Da mulher com olhar duvidoso. E da filha que nunca saberia o que era uma cisterna.
Muito longe de ser nostálgico. Ele era feliz. É feliz. Sente-se em acordo com sua vida. Aprendi com ele que esta é a verdadeira sensação de felicidade. Estar em acordo. Com a vida.
A mulher riu de repente. Falou que eu não deveria estar compreendendo nada. Onde já se viu. Falar assim. Ir contando sobre cisternas e baldes. Mas notei algo interessante. Ela - mesmo reclamando - repetia a história. Recontava.
Saíram os três. Depois de risos e abraços. Gracejos sobre a origem. Congratulações pelo elogio.
Fechei a porta. Sentei. Olhei pela janela. O dia estava frio. Muito frio. Céu cinza. Uma garoinha deixava o chão mais brilhante que molhado. Lembrei do compositor das estações do ano. Da delícia do som que sai dos violinos. Das mudanças nos acordes com as mudanças das estações. Sempre o escutei. Sempre gostei. Mas acho que nunca o compreendi completamente.
Compreendi hoje. Entre baldes e cisternas.