Lembrei dela. Melhor dizendo. Lembro muito dela. Todo o tempo. Passei anos da minha infância escutando os conselhos dela. A alguns obedeci. A outros desobedeci. Pela vida a fora. Conselho é assim. Vem vida a dentro e fica – muitas vezes – vida a fora.
Acho que até hoje ainda é. Culpa do Sputnik. Ela estava certa. E nem sabia como estava. As buscas acabam em mudanças fora do procurado. Nem sempre o encontrado é o adequado ao pesquisado. Acho que ela entendia bem isso. Entendia das utilidades e inutilidades. Das buscas úteis e dos encontros inúteis. Do prudente e do infinito. Da generosidade e da facilidade. Da dificuldade e da conveniência.Entendia de antônimos como nunca mais conheci alguém em toda a minha vida. Só não compreendia os sinônimos. Estes sempre a amedrontavam.
Não sofria com as mudanças. Rebelava-se.Tentava se adaptar ao modo dela. Mesmo que às avessas. Lembro do telefone. Brigava com o telefone. Achava que soava alto. Que assustava muito mais que informava. Que demandava muito mais que ofertava. Uma sábia. Não conseguia diminuir o volume. Quando ensinavam esquecia. E brigava de novo a cada toque. Achava suspeito falar assim. Conversar com alguém sem ver o rosto. A expressão. Mal sabia. Que ia falar sem ver. E que nem faltava muito para isso.
Muitas vezes nos surpreendemos com nosso destino. E já são - muitas vezes - cronicamente anunciados. Com a bula oculta, mas presente. De como conviver com eles. De uma outra forma. Como um saber não sabido, como diria o Francês.
Isso dá muito que pensar. Vou pensar sobre isso algum dia.
Ela vinha de um tempo de escravos. Mas se orgulhava da família de origem. Alforriaram os escravos antes que a Princesa ordenasse. Não falava do passado. Ou falava muito pouco. Só sobre o passado histórico. Sociológico. Nunca sobre o particular. Não devia ter sido muito bom. Preferia criticar o Sputnik. Era mais simples.
Diziam que era braba. Mas oferecia o colo. Respeitava e acolhia os menos amados. E numa época em que faltas eram corriqueiras. Tratadas com indiferença. Despudoradamente.
Um dia - nem lembro mais porque - me prometeu um pente de enfeitar o cabelo. E me mostrou o pente. Fiquei espantada com a surpresa. E encantada com o objeto.
Guardava como uma lembrança de um tempo de riqueza. Enrolado em papéis finos. Amarrotados. E me vejo diante do prometido. Lembro do brilho dele no quarto pouco iluminado. Dentro do armário de madeira escura. Como uma mágica. Tinha pedras incrustadas. Era preto. E tinha uns dentes enormes. O pente. Não ela. Ri. Não devia ser tão enorme. Eu que era pequena. Ri de novo. Agora que me lembrei. Já fui pequena.
Sonhei anos com esse dia. Quase criei um feriado. Denominei O Dia do Pente. Ela fez um adendo. Uma entrelinha. Tinha que ser uma menina bem comportada. Eis uma palavra em total desacordo. Para uns tem um tipo de leitura. Para outros uma leitura oposta. Acho que sempre segui na oposta.
A infância acabou. Nem sei se me comportei bem. Ou mal. Não sei se foi por punição ou por esquecimento. Mas o pente nunca veio.
Um dia fez silêncio. Fechou os olhos por conta própria e se foi. Sem Sputnik. Sem alarde.
Fiquei sem o pente. Mas com uma malinha de conselhos. Às vezes brilham. Vejo até dentes grandes neles - em algumas situações. Tento usá-los da melhor maneira. Possível e desejável. Abro sempre que se faz necessário. Ás vezes na hora certa. Outras na hora errada. Outras, atrasada. Maioria das vezes até adiantada. Mas é uma malinha com vontade própria. Assim me parece.
Guardo-a agora junto a uma outra malinha. A de exclamações. Esta mais recente.
Não vejo parceria melhor !