Blog de Lêda Rezende

Agosto 25 2012
                          I


O dia começara excessivamente tumultuado.

Era o dia da volta para casa e acordara bem cedo para organizar o que tinha mais dificuldade – as malas. O que já pareceu a ela tumulto demais. Era péssima em arrumar as malas. Não importava se na ida ou na volta – era péssima.

Obviamente não foi fácil. Fez e refez incontáveis vezes. Já estava até falando sozinha – agora vai dar certo. E sozinha respondia – foi o que você falou cinco tentativas atrás. E tudo recomeçava.

Já estava até com os braços doendo quando finalmente conseguiu. As malas pareciam bem arrumadas. Nada colocado em risco no interior delas. Sentiu-se orgulhosa.

Mas refez o aviso de sempre e para si mesma – da próxima vez vou comprar nada.

Começou a fechar as travinhas das malas quando quase o coração que ia precisar ser arrumado.

Aprendeu rápido – nem só de malas se alimentam os tumultos.

O alarme de incêndio disparou. Dentro do quarto. Ou melhor – dentro do tímpano dela. Só quem já viveu uma situação destas há de entender o enorme barulho de um alarme de incêndio dentro de um apartamento de Hotel.

Deu um pulo buscando se e onde errara. Até onde sabia – arrumar e desarrumar malas não causava fogo. Só cansaço nos braços. Olhou em volta. Nada havia de estranho – além obviamente das malas prontas e do quarto arrumado. Nada sobre as camas nem as poltronas. Nem uma só sacolinha de compras pelo chão. Nem latinhas nem garrafinhas vazias sobre as mesinhas. Uma ordem até digna de um alarme – mas não de incêndio.

O alarme não se calou pelo olhar dela percorrendo o ambiente – continuou. E não viu nem sinal de erro próprio nem de fumaça alheia. Em um pequeno intervalo entre uma sirene e outra escutou os barulhos consequentes – passos apressados e portas abrindo. Ainda bem que não errara sozinha – pensou num átimo de chiste.

Abriu a porta do quarto. Ali fora sim – justificava um alarme. Deparou-se com um desfile bizarro de descabelados e semidesnudados pelo corredor. Homens e mulheres. Pudor e elegância próximos à vista e longe do alcance. E o mais alarmante – além do alarme – a porta que dava acesso ao elevador e escadas – fechada automaticamente.

Vai ver o Hotel detestava queixas em casos de acidentes e incidentes. Mais um átimo de chiste.

Paft. Assim. Era uma porta de vidro emoldurada de madeira. Foi a primeira que se manifestou. Fechou. No corredor todos se olhavam e pareciam realmente não se enxergar. Cada um apenas pressentia o outro – como cegos de primeira viagem.

Ela mais calma – já havia gasto toda a adrenalina arrumando as malas – optou por telefonar para a recepção. A mocinha atendeu com uma voz trêmula e avisou – nada de errado. Erro do Sistema de Segurança.

Voltou para o corredor e comunicou o que escutara.

Todos agiram da forma semelhante ao susto. Do jeito que saíram para o corredor – deram as costas e entraram para os próprios quartos. Assim. Sem mais nem menos. E muito menos – um mais.

Ela voltou para finalizar o que tinha que ser finalizado.

 Era o último dia na cidade e gostaria de aproveitá-lo numa espécie de ritual de despedida. Caminharia como se habitante fosse. Sem muitas rotas nem roteiros ansiosos.

E de novidades achou que já tivera bastante para um último dia.

Deixou as malas no guarda bagagens do Hotel separou o que precisava de mais imediato. Cumpriu a parte protocolar de fechamento da hospedagem e saiu.

Já habituada a viajar sozinha – foi planejando o tour particular do até qualquer dia.

Teve uma daquelas ideias ambíguas. Tão oportunas quanto inoportunas. Mas só valorizou a parte do oportuna.

Pensou e decidiu – sentindo-se possuidora de uma genialidade prática digna de inveja. Depois contaria a eles. Por certo aplaudiriam.

Nada melhor do que um simples e comum transporte público urbano para entender a urbanidade. E assim fez. Em meio aos transeuntes dirigiu-se ao ponto de parada – pagou o acesso à tal ideia e sentou-se na primeira fileira ao lado da janela. Retirou a câmera fotográfica da bolsinha. Bem instalada e acomodada e indiferenciada dos residentes locais agora era a dona absoluta e tranquila das últimas imagens a selecionar. E por certo nem a notariam.

O tal meio de transporte urbano fez a parte da trajetória que ela já conhecia e seguiu por onde ela desconhecia. Exatamente como queria. Faria o roteiro completo – de ponta a ponta. Maravilhosa ideia – foi o que pensou mais uma vez.

Mas lá se foi. E lá se foi. E foi tanto lá que se foi que não mais via a tão nomeada urbanidade. A paisagem começou a ficar a cada quilômetro mais – como poderia dizer – mais não seria a palavra certa. Talvez menos. Menos prédios. Menos casas. Menos ruas. E de repente o mais surgiu em forma de árvores e terrenos gramados. Só faltavam as famosas vacas pastando.

Assustou-se. Lembrou o voo de volta e uma promessa antiga de pontualidade.

Levantou-se e foi falar com a senhora que dirigia bem séria o tal transporte urbano da ideia genial que ela tivera.

Perguntou com alguma timidez quanto tempo demoraria a voltar ao ponto de partida. A senhora séria olhou para ela rapidamente e avisou – por certo dentro de quatro horas. Vamos a outra região e depois – ainda terá um tempo de descanso para a motorista.

Ela não sabia como fazer. Avisou apenas que teria que voltar e tentou explicar sobre voo e horário de voo. A senhora pareceu não entender nem compreender e muito menos se interessar por aviões. Vivia sobre os trilhos urbanos e nem sempre tão urbanos – mas trilhos. Respondeu sem olhar para ela – desça na próxima parada e atravesse para o outro lado. Passará outro transporte urbano com o numero cinco na frente. Este lhe levará de volta mais rápido.

Ela desceu.

Atravessou. Viu-se diante dos trilhos com a grama a encobri-los parcialmente. Um ventinho ameno brincava com as folhinhas das árvores. Havia uma espécie de garagem – assim era a estação. Paredes brancas. O vento. A grama. Os trilhos. O céu. E ela. Ali. Sozinha. De pé se sentindo dentro de um filme americano que tanto poderia ser romântico ou quanto de suspense. Ou até de nada. Implorou pelo nada.

Aguardou confiante – na sabia bem no que – mas confiou. Se aquela estação existia – deveria ter uso. Se as paredes eram branquinhas – não deveria ter assassinatos por ali.  Quase riu na parte do assassinato. Mas o leve tremor nas mãos fez balançar a câmera fotográfica que continuava apertadinha – e põe apertadinha nisso – na mão dela. Desistiu do riso. Grudou o olhar no final dos trilhos. Aguardava ver o tão belo transporte urbano com o perfeito número cinco bem na frente. Sim. Confiou no bom senso. Sentiu uma pontinha de vontade de chorar de saudade das malas tão bem arrumadas. Mas se conteve. Até fez uma auto recriminação – deixa disso.

Finalmente o transporte supostamente urbano apareceu. Não demorou mais do que dez minutos. E quase deu um pulinho de alegria quando leu na frente e no alto dele – cinco.

Mas de acordo com a situação o tempo pode ser um velho elástico com pouca tensão ou um novíssimo elástico carregado de veloz tensão. Pareceu o tal velho elástico – como se ali já estivesse há horas. A imaginação autoritária e arbitrária – faz e desfaz da realidade como possuidora de uma cronologia impecável. A imaginação joga com o que não convém – desconsidera o que tem e atinge o mais além. Mas ou menos assim. Dera tempo de imaginar muitos filmes. De escrever alguns livros. Redigira até um Manual de Sobrevivência na Selva. Quase riu ao olhar a graminha entre os trilhos – aquilo era a selva que dedicava o tal Manual.

A cada minuto parecia que a carga dramática aumentava em parceria com a mórbida criatividade.

Sem falar que por trás de qualquer que fosse o pensamento – a memória trazia anexado os filmes policiais que ela adorava assistir esparramada na cama do próprio quarto e do próprio país e da própria cidade. Parecia tudo tão imensamente distante. Mas o pensamento assustador vinha e por sorte já vinha outro encobridor. Uma verdadeira guerra neuronal – concluiu.

E de pensamento assustador a livros e filmes que ela produzia – dirigia e atuava – chegou a possibilidade da saída da tal estação parecida com uma garagem branca.

Lá chegava diminuindo a velocidade o tal transporte com o tal número cinco. Não lembrava o dia que tivera tamanha alegria por ver algum deles. Provavelmente não lembrava porque realmente nunca acontecera. Mas naquele instante deu vontade de fazer uma Ode. Um discurso. Uma celebração. Viva a chegada de um transporte público urbano na estação. Quis até cumprimentar quem o dirigia – desta vez um senhor. Mas manteve-se sóbria e lúcida. Eram terras estranhas. Idioma estranho. O mais conveniente era fazer o habitual a qualquer normal – aliás – exatamente como tinha planejado antes de ver a mudança de paisagem. Olhando o caminho de volta – quase riu pensando no caminho de ida. Entrara tão nativa e depois mudara para visitante apavorada.

Entrou sem alardes e se sentou bem quietinha. Já estava excelente esta possibilidade e o dia já se tornara campeão de tumultos. O resto era por conta do tal tempo elástico que ela inventara.

Sentou-se. Fez questão de rever a paisagem da volta. Reconhecia o caminho da ida e festejava o que passava. Olhava para frente. Uma verdadeira filosofia de Vida.

Já ia começar um novo texto mental ou um filme quando percebeu um barulhinho em volta dos cabelos. Virou-se com algum tédio em direção ao tal sonzinho.

Descreditou.

Tudo bem que estava com saudade da viagem e da cidade que deixaria em poucas horas – mas não precisava ser tão ostensivamente tumultuada a tal despedida.

Era uma abelha.

Seguindo a linha de raciocínio da estação – uma abelha gigante.

Era alérgica a abelhas. Alergia importante – uma picadinha e – de imediato – o Hospital se fazia necessário.

E a abelha supostamente gigante ali. Fazendo dança e música em torno dela. O filme mudou. Continuou como produtora e diretora e – lógico – atriz principal. Agora a cena era outra: estava inchada e rouca. Tentava explicar em todos os idiomas que conhecia a situação de emergência que se encontrava. Imaginou os lábios com aspecto siliconado. A pele lisa sem uma só ruguinha. Um rubor de pele de dar inveja aos habitantes do deserto. E a voz. Nada de voz.

A abelha gigante deveria ser também uma abelha vidente. Deu uma trégua. Foi até um senhor que elegantemente estava de pé – firme e equilibrado – lendo um livro. Chegou perto dele com o tal sonzinho. Ele a custo tirou os olhos do livro – e verificou a provocação para a desconcentração.

Foi rápido.

Letras e frases deram fim ao processo dela de alergia e à vida da abelha gigante. Com o livro bateu nela. Com o pé encerrou-lhe o ciclo biológico.

Ela voltou a olhar para a paisagem.

Chegou finalmente ao ponto de ida. Desceu. Olhou em volta. Conferiu o tempo no relógio – tempo de sobra. Numa calçada diante de um canal estava um carrinho de cachorro quente. O cheirinho era delicioso. Comprou – colocou todos os molhos e especiarias que estavam à disposição.

Sentou-se num banquinho e deliciou-se diante do canal. Havia flores e árvores. Barquinhos e pedalinhos faziam ondinhas por onde passavam.

Fez uma retrospectiva do amanhecer até o carrinho de cachorro quente. Não se controlou. Riu. Riu enquanto mordia toda aquela confusão por sobre a salsicha. Riu sem censura e sem reservas. Imaginou o que eles diriam. E riu mais ainda.

Quando deu por encerrada a travessura gastronômica e o riso de si mesma – levantou-se. Decidiu passear no belo Parque que ficava a duas quadras do Hotel. Aprendera a lição entre gramas e garagens brancas. Nada mais de torcer pelo número cinco.

Ainda tinha um tempo amplo para continuar a se despedir da cidade. A Van que iria buscá-la no Hotel com destino ao aeroporto estava agendada com uma boa margem de segurança. Tinha tempo. Saiu caminhando feliz e desta vez mais certa da coerência na escolha do percurso.

Deu por encerrada a tradução em ato da palavra tumulto.

Mas o dia ainda não tinha acabado – nem estava ainda no avião de volta.

 

 
publicado por Lêda Rezende às 19:13

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