Blog de Lêda Rezende

Dezembro 14 2011
I
Com os desentendimentos frequentes eles decidiram por uma separação amadurecida. Não que exista algo sequer parecido – mas entenderam ou declararam que a separação poderia ajudar na união. Mais ou menos assim. Uma Filosofia encobridora. Aliás - exatamente a função da Filosofia – sair encobrindo algumas verdades não muito suportáveis. Mas enfim. Assim decidiram.  O que não traz alegria ou ao menos não mantem a alegria – deve ser repensado. Ambos já experientes – era o segundo divórcio de cada um – compreenderam que havia chegado o instante. E com chegada e com instantes não se brinca nem se menospreza. Em geral o preço fica mais alto.
Que repensemos distantes no cotidiano. Assim falou a Leticia. Assim concordou o Luciano.
E diante de decisões só restam mesmo os atos. E os atos se fizeram presentes no dia marcado e na hora agendada.
A tristeza da listinha de pertences ficou na sombra das atividades. O trabalho foi cedendo espaço à emoção e quando notaram – já estavam os objetos em caminhões separados e eles em carros separados seguindo o que de material ficou etiquetado com o nome do proprietário. Cada um em direção ao novo suposto lar.
Esta uma sinopse que faz jus à etimologia da palavra. Pouca descrição e muita formalidade.
Na etapa posterior da separação – um passinho à frente – eles descobriram – ou ela descobriu - que algo não fora etiquetado. O que fazer nas festividades de família. Eles já não faziam parte – em dupla – das famílias opostas. Nem ela frequentava a dele – nem ele frequentava a dela. Eram células estanques sob esta óptica.
A primeira festa que os surpreendeu sob a nova Situação Civil - foi a do Natal.
Já estavam separados há muitos meses e o Natal a fez lembrar – de um modo abrupto – o tempo que passavam juntos. Lembrava o último Natal. Havia sido comemorado com toda a intensidade justificada. Até os familiares habitantes do exterior vieram se unir ao festejo. Fora um Natal dos mais felizes. As fotos eram tiradas em sequencia e por todos que tinham uma maquininha à mão. Leticia nem sabia da última festa que ficara tão feliz quanto naquela noite.
Agora estava feita a diferença.
Sim. Natal.
Todos viriam para a festa na casa do filho mais velho – inclusive ele - o protagonista do primeiro divórcio - com a atual esposa. Viriam casais e casais. Simples assim.
Somente ela estaria no singular. E pior. Combinaram presentes de casal. Um presente para o par. Perfeito. Economia em tempos de consumo sempre é bem vinda. Mas não para ela.
Leticia ficou - dias e noites - imaginando todas as opções de viagem que poderia fazer. Nem a Turquia escapou. Das excursões excêntricas às pequenas vilas na praia – todas foram passando na fantasia de escape. Viu-se de casaco e bota caminhando sob o luar oculto de alguma cidade mediterrânea. Depois no estilo intelectual por entre os bancos da Universidade de Salamanca. Descalça numa vilazinha do nordeste sem pé nem cabeça. Ou talvez no próprio apartamento servindo-se de si mesma com champagne.
Nada.
Eles não permitiriam e ainda seria maldoso deixá-los preocupados com ela.
Não tinha opção. Era encarar os casais e o casal formado pelo fruto do primeiro divórcio.
A Leticia tinha um traço estrutural interessante. Um não – dois. Era imediatista e pragmática. Dois traços maravilhosos - ou perigosos - dependendo das situações.
Interessante – pensou ela. É época de consumo. Tudo se vende. Tudo se aluga. E silenciosa deu uns passinhos em direção à varanda da sala. Olhou para o Universo. Para a terra. Apropriou-se do ar e concluiu.
Vou alugar uma companhia. Perfeito. Um par.
Os pés e as mãos foram mais rápidos que qualquer bom senso seria – no caso de – o tal bom senso - querer se intrometer.
Foi o pensamento e o ato. Bom senso de fora e os dedos já dentro do teclado digitando a Agência.
Achou uma já na primeira teclada. Parecia elegante. Desde o nome até a localização. Ótimo. E ainda garantiam a integridade moral do contratado. Riu quando pensou qual a forma da garantia ou se ofereciam a mesma garantia em relação aos contratantes. Mas deixou a parte protocolar de segurança para um segundo momento. Este também outro tracinho estrutural da Leticia. Algo tipo – agir primeiro e refletir depois.
Telefonou ainda deixando que os dedos decidissem. Ia até pensar duas vezes quando escutou o alô – sim pode falar.
Já gostou. Maravilhoso o que se começa com o Sim.  
Ia explicar à atendente positivista os motivos da comunicação. Mas desistiu. Preferiu fazer logo as perguntas. As palavras também se adiantaram ao bom senso. Pelo visto – nesta maratona de final de ano - o bom senso iria perder. Era lento.
Bom senso é sempre lento. Vagaroso - ela diria num risinho irritado. A maioria até o invoca – mas ele sempre se atrasa. E o mais impressionante é que acaba levando os louros. Sempre haverá quem diga – se tivesse mais paciência o bom senso não permitiria. E o bom senso lento que deveria ser acusado – acaba elogiado e intitulado como – bom senso.
Enfim.
Afastando com a mão a tal espera pela chegada do lento bom senso - avisou o dia da contratação – ou melhor - a noite. O estilo. Até a roupa e o idioma ela pontuou. Não queria deixar dúvidas. Era um caso de vida ou desastre. 
Assim mesmo explicou para a atendente positivista.
Ela parecia tranquila do outro lado da linha. A cada pré requisito ela respondia o Sim. Não havia dúvidas. Ela receberia exatamente o que alugasse. E o pagamento seria em etapas. A primeira quando se decidisse. E a segunda no momento do encontro. Nada de sexual fazia parte da tal contratação – que esta observação ficasse bem assimilada. Era fundamental. Era uma Agência idônea – nesta palavra ela pareceu notar uma certa gagueira se antecipando à positividade – não sabia se pelo pouco uso desta palavra ou se pela pouca utilidade para a situação em questão.
Mas a atendente continuou com tom de voz objetivo.
Somos um grupo que entende que nem sempre a solidão é conveniente. E quando não for - temos a companhia intelectual correta. Assim. Claro como dois pontos. Sem reticências nem meias palavras. Ele será seu partner – e se despedirão tão logo os efeitos adequados estejam encerrados. Nada tem de ilícito. Muito menos de atentado à moral e pudor. São contratações de companhia e diálogos. Trabalhamos com pessoas sérias e de excelente passado e presente.
E acrescentou uma observação. Ainda bem que ligara tão antes da data. Nesta época as contratações se avolumam – e quem demora não consegue mais a companhia. Em datas de congraçamento a Agência tem o trabalho triplicado.
Por um segundo sentiu-se em Estado de Ambiguidade. Tanto se sentiu enturmada – como imensamente solitária. E pensou nas pessoas que fariam o mesmo que ela. Nem pode terminar o tal pensamento ou a tal sensação de se sentir nua na neve. Assim pareceu sentir. Nua na neve. Do outro lado da linha a mocinha positivista continuou a fala e a trouxe de volta da tal neve. Ou da tal nudez. Algo a mocinha positivista se empenhava em cobrir e aquecer. Devia ser antiga na função.
Já tinha o candidato que preenchia a solicitação. Enviaria a foto de corpo inteiro e de rosto. E os dados sobre idade e preferencias intelectuais. Assim fez. Assim Leticia concordou.
Um par. Perfeito.
Falaram pelo telefone. Depois pela webcam. Francesco era o nome dele. Além do Português - falava também Inglês e Italiano. Viera para esta cidade muito garoto ainda com os pais - de uma região da Itália que avistava o mar pela janelinha da casa. Era o que de mais forte ficara gravado na memória. Crescera e estudara nesta mesma cidade – distante do mar. Trabalhava fixo numa Empresa multinacional. Nas horas de folga fazia o serviço requisitado. Entendia de cidade grande e de gente solitária. Ou de gente grande e de cidade solitária. Fez ele este chiste mas sem muita convicção que estivesse agradando. Leticia optou por deixar de lado – tanto o chiste como a convicção ou falta dela.
Mas o achou decidido e verdadeiro. Nada de falinhas moles ou tons de sedução. Agia como contratado para um evento público. Ótimo. Ficou concluído – combinado e acertado.
A noite chegou.
O mês que antecedeu a chegada da tal noite foi de pura preparação. Inegável que estava ansiosa e insegura e não necessariamente nesta ordem. Escolher a roupa que usaria foi muito mais complicado que o ímpeto de ligar para a Agência. Não havia um só dia que não ficasse diante do próprio armário ou diante de alguma vitrine implorando por inspiração.
Isso era novo nela. Quando ia às festas com ele – o Luciano – pouco se preocupava com as roupas. Até riu diante de uma vitrine mais sofisticada. Vai ver me vestia dele – e era o suficiente para me sentir linda. Agora sim. Estou em busca da minha pele. Mais ou menos assim. Os pensamentos eram tão contraditórios que vez ou outra se preocupava mais com a sanidade da mente do que com a arrumação do corpo.
O encontro foi marcado na esquina do prédio. Ele avisou que iria de moto. Uma Harley. Ela sorriu. De onde saíra a Harley. Já deu vontade de aguardar com mais paciência o bom senso chegar. Mas nada. Tocou o plano.
Na hora certa e quase sincronicamente – os dois chegaram.
Ele desceu da Harley com ares de Apolo. Realmente era mais bonito do que na foto e na webcam. Bonito e com uma elegância que acentuava ora um lado forçado ora um lado displicente. Mas não era natural. Adquirida – pensou ela. Talvez num cursinho de médio padrão. Ele a cumprimentou. Fez um elogio e beijou—lhe a mão. 
Bom. Já não tinha mais como modificar a situação. Enfrentou.
Subiram um trechinho da ladeira de mãos dadas. Como um treino de última hora. Ou a última olhada no texto que poderá cair numa prova. Francesco era alto. Ombros largos deixavam a camisa preta em queda suave. Cabelos castanhos alternavam uns poucos fios brancos. Pele clara. Barba bem feita. Observou uma pequena tatuagem no punho direito. Uma chama. Gostou. Combinaram as apresentações.
Haviam se conhecido há alguns meses numa Livraria na disputa por um único livro. Ele gentil – cedera. Ela grata – lera e emprestara a ele. E assim nasceu um afeto especial. A família dele viajara e escolheram passar o Natal juntos com a família dela. Descreveu as pessoas que estariam presentes. Falou dos filhos e enfim revelou os motivos exatos da tal contratação. Francesco parecia achar tudo obviamente natural. Como se isso fosse o comum – o rotineiro em qualquer vivente. Diferente seria algo diferente. Foi o que comentou – numa segunda tentativa de chiste. Ela entregou a ele um presentinho enrolado num delicado papel prateado. Avisou – você me entrega como meu presente de Natal. Coloca na árvore e me entrega na troca de presentes. Combinadíssimo.
Ele a incentivou a relaxar. Esqueci de lhe contar - estudei teatro por três anos. Fica tranquila.
A porta do apartamento de Aline já estava aberta. Todos já haviam chegado. Renato – marido da Aline veio recebê-la e pareceu se divertir com a apresentação do Francesco. Deu um riso de bom entendedor que não precisa nem de meia palavra. Ela riu de volta. Roberto se aproximou com a Cecilia e pareceu menos entusiasmado. Mas nada comentou. Francesco ao ser apresentado disse a ele num tom de gracejo – pode me chamar de papai.
Neste exato instante todos que conversavam – calaram. Nunca vira algo tão imediato. Nem sabia explicar quem nascera primeiro. Se a palavra papai ou se o silêncio. Mas ecoou. O silêncio permitiu a palavra papai voar pela sala e se aproximar de todos. Não faltou um só par de olhos que não tivesse girado em direção ao Francesco e em seguida ao Roberto – que educadamente apertou-lhe a mão.
Neste instante a Leticia tremeu de leve. Lembrou de imediato da tal nudez na neve.
Mas Renato veio em seu auxílio e disse sorrindo – certo papai – vamos entrando. Desta vez um novo som – riram. 
E aos poucos os olhares foram – não sem pouco esforço – girando para outros contornos.
Clóvis estava sentado num sofá mais ao fundo da sala. Parecia – como de hábito – alheio ao ambiente. Talvez tenha sido o único que olhou sem ter escutado o tal papai. Virou como num coral. Seguiu os outros. E justo ele – a tal consequência do primeiro divórcio e causa da contratação do partner intelectual. Ao lado dele estava a atual esposa – a Carmem. Vestida num longo de tom roxo escuro e justo - recostava lânguida a cabeça no ombro dele a cada vez que se dirigia à Leticia. Mas abriu um pouco mais os olhos ao ser apresentada ao Francesco.
Em cadeiras unidas sentavam-se espigadinhos e algo tímidos os pais da Cecilia. Cumprimentaram o Francesco com uma pouco de interrogação. Não pareciam entender tão rápida reintegração de dupla da Leticia.
Os pais da Aline agiam como se o Francesco fosse um velho amigo da família. Convidaram a sentar e ficar à vontade. Lilian – a mãe da Aline - não se deteve em detalhes nem em generalidades. Álvaro o pai – sempre desatento – o tratou como acreditou ser a verdade – um amigo antigo da família.
Havia ainda a tia Luiza solteira e adaptada ao Estado Civil como se um sobrenome fosse. Ou um título. Pareceu mais surpresa do que recriminadora. E a prima Camila - que morando há pouco tempo na cidade - e sem os familiares próximos - fora convidada. Não tinha um cotidiano com aquela parte da família mas mesmo assim aceitara o convite.
Leticia entendeu – num fragmento de tempo. Estar só em datas festivas abre novas socializações. Cada um busca um agrupamento – seja adequado ou não. Como se o importante fosse muito mais a agregação do que o compartilhamento. Ou o afeto e suas incontáveis formas de demonstração. Mas dispensou as ideias conceituais. Não era momento para estabelecer conceitos novos nem repensar os velhos.
A Camila era de uma beleza especial. Morena. Alta. Altíssima. Magra. Cabelos e olhos negros. Destacou os contornos da anatomia com um longo preto – sem costas. Onde passava provocava alguns olhares – mas agia como se cega fosse. Não registrava. A expressão oscilava entre o tédio e o riso social. Não sabendo bem como agir já que não era habitual entre os participantes – se refugiava numa bandejinha de pequenos aperitivos e fazia da tacinha de champagne um convidado com quem conversava sem parar. Sim. A tacinha nunca se esvaziava – ou nunca se enchia - de todo. Havia sempre a complementação que ela permitia com prazer. Segurava a tacinha com um jeitinho especial – como se estivesse de mãos dadas com ela.
Enfim. Assim estava o ambiente. Ao aroma do banquete quase totêmico se misturavam o perfume das pessoas. Todos circulavam e vez ou outra um se aproximava de algum outro para uma suposta conversinha mais codificada.
A linda árvore de Natal acesa em todo o seu esplendor dava uma sensação de boa energia ao ambiente. Os filhos e as norinhas eram todos efetivamente alegres e bem humorados.
Francesco cumpria o papel a que fora requisitado com desenvoltura. A cada gentileza a Leticia agradecia – obrigada vida. Ele sorria e complementava com um forte sotaque italiano – prego Gioconda mia. E circulava com o estilo oposto ao da Camila - como se de lá ele nunca tivesse saído. Como se nascido e criado naquele ambiente e em convívio estreito com aquelas pessoas.
Se num minuto Francesco conversava com a tia solteira – no seguinte já estava com o Clóvis comentando a própria felicidade no relacionamento com a Leticia. La mia Gioconda é una principesa. Carmem com a cabeça sempre recostada no ombro do Clóvis – buscava entender as rápidas mudanças das cidades grandes. Clóvis parecia nem saber sobre quem ele falava. E vez ou outra repetia a pergunta – de onde ele viera e com quem viera. Até o confundiu com um parente que não via há muito tempo.
Assim estava a sala. Tudo em perfeita sintonia. Comidas. Aromas. Perfumes. Música. Roberto e Renato – sempre próximos. As meninas em torno deles e dos pais. Leticia bem servida e a esta altura já relaxada com a companhia contratada. Afinal não tinha compromisso com ninguém e era apenas uma forma de se sentir menos cobrada. Nada além de uma necessidade pueril de pouca explicação. E como tudo seguia como planejado – sentia-se bem à vontade. Os filhos a tratavam com o carinho de sempre e acabaram por se divertir com a nova companhia. Mas nada sabiam sobre alugueis e contratações. Achou desnecessário. A historinha do conhecimento na Livraria fora contada de forma tão enfática que já estava até acreditando ela mesma que assim acontecera.
Par. Perfeito. Perfeitamente - não fosse a prima Camila resolver separar as mãos dadas com a tacinha.
De repente a Leticia viu uma tacinha abandonada num cantinho da mesa. A chama do punho do Francesco desaparecida. E as costas da Camila fora de circulação.
Algo acontecera. Ou estava acontecendo.
Escutou um riso vindo do salão de entrada do prédio. Um riso não. Dois. Dois risos e um silêncio. Depois dois risos e outro silêncio – este já mais longo. E mais longo o próximo e já sem riso intercalando.
Lá se sentiu de novo nua na neve. Olhou em volta. Todos pareciam estar envoltos com a festa muito mais do que com os convidados. Não pareceram notar as ausências. Sentiu um mínimo alívio.
Mas não era mulher de meias palavras. Subiu um calor tão intenso no rosto que a neve – mesmo inexistente derreteu e ferveu. Por certo em algum lugar do Alasca teve uma geleira despencada. Aguardou. Continuou agindo dentro da festividade – embora grudada ao aparelho de ar condicionado. E quando olhava para a tacinha na borda da mesa abandonada – voltava flamejante o tal calorão.
Virou para a porta. Lá estavam. Camila sorria e acomodava os cabelos atrás da orelha. Puxou de volta uns fiozinhos rebeldes que estava por entre os olhos. A camisa preta do Francesco já não caia tão suave sobre os ombros largos como no começo da festa. Pareciam descompassados.
Leticia deslizou pela sala. Chegou junto deles. Avisou – que você prossiga com a segunda parte do pagamento.
Camila – que a esta altura estava ao lado do Clóvis e já de mãos dadas com a tacinha – avisou em bom som. Ele não é mesmo seu. É alugado para que este aqui – apontou para o Clóvis - não pense que você está só. Quem aluga não é proprietário. Nem pense em me dar lições de moral. Era o que faltava. Eu pelo menos não alugo companhia para fingir parceria diante de ex-marido. E apontou mais uma vez para o Clóvis.
Carmem ergueu de um golpe só a cabeça do ombro do Clóvis.
Clóvis – como de hábito alheio ao ambiente - virou-se assustado e repetiu algumas perguntas. Isso é comigo? Por que? Eu a conheço? Eu o conheço? Alugaram o que? Eu nem moro aqui. Ele não é o pai da Cecilia?
O melhor era mesmo seguir com a festa. Aline – sábia – aumentou a música e vários tons se misturavam com a orquestra. A tia solteira avisou que estava no momento de troca dos presentes. A tacinha voltou a ser abandonada na mesa. Escutou-se um agradecimento e um beijo jogado a todos. Camila saiu deixando a imagem das costas nuas nas retinas que a olhavam. Avisou que recebera um comunicado do Hospital onde trabalhava e teria que sair. Que o Natal fosse feliz para todos. Olhou para o Francesco e arriscou uma piscadinha e um gratisima amore mio.
Francesco devia ser um bom entendedor de contas a pagar. Ainda bem. Viva os financiamentos bancários. Rápido e por certo relembrando a cara do gerente do próprio Banco e das prestações da tal Harley - Francesco fez-se de Clóvis. Não sei o que aquela moça falou. O sotaque dela é tão estranho. Deve ser devido a tantas doses do champagne. Pediu para ir até o carro dela porque iria pegar os óculos. Comentou algo sobre lentes de contato e queimor em olhos. Não entendi bem. Coitada. Tão nova.
Andiamo mia Gioconda. Vamos trocar os presentes. O seu está aqui comigo. Mas vou por na árvore. Assim você ficará surpresa ao lado de todos da famiglia.
Leticia fez-se de Carmem. Recostou a cabeça no ombro de Francesco e numa pose que tendia à própria Gioconda, cruzou os braços - e por entre os braços cruzados escaparam as unhas. As unhas.
As unhas se anteciparam e lá foram se enfiar em meio à chama tatuada no punho do Francesco.
A chama esquentou. Francesco suspirou um gemidinho. Mas nada fez. Sorriu para a Carmem que percebendo levantou mais uma vez a cabeça do ombro do Clovis – que nada notou. Controladamente Francesco comentou - ela adora aumentar minha chama. La mia Gioconda é uma regazza cheia de surpresas.
Novamente tudo parecia sob controle. Mas aquele jamais seria um Natal comum.
Quando todos sentaram em torno da Árvore para a entrega dos presentes – ouviu-se um barulhinho na maçaneta da porta. Era ele. Luciano. Contrariando qualquer possibilidade e expectativa. Viera para desejar um Feliz Natal a todos e a ela em especial. Entre um beijo e um olhar acrescentou que saíra da festa da própria família e viera até lá compartilhar o restante da noite. Com ela e com eles.
Que noite.
Francesco – experiente – foi se afastando como se lá nem estivesse. Carmem – ao ver o Luciano - de um pulo só ergueu a cabeça do ombro do Clóvis e gaguejou um boa noite segurando a nuca. Cumprimentado – Clóvis perguntou se estava tudo bem na Itália. Os pais da Cecilia se recusaram a dar continuidade a qualquer tipo de diálogo. O pai em especial se recolheu diante dos próprios pensamentos. Nada mais falou – já que nada mais entendeu.
Lilian e Álvaro se mantiveram como devem se manter numa festa de Natal – participantes e socialmente compartilhantes. O acolheram como de costume.
A tia solteira suspirou forte em direção ao Universo – comentou em seguida ao longo suspiro que o melhor presente de Natal foi descobrir como a vida pode ser sobressaltante – e foi-se para entre os braços que o Francesco abriu em direção a ela. Francesco a aconchegou e sussurrou algo no ouvido dela que a fez rir e apontar para a própria bolsa.
Quando os presentes foram abertos e a tia solteira recebeu das mãos quentes do Francesco a caixinha como se para ela tivesse sido comprada – a voz dela surgiu doce e rouca por entre o barulhinho dos papeis rasgados. Falou em suave tonalidade - foi preciso crescer para ter a certeza da existência do Papai Noel. E em seguida um estalido. Este o real comentário da tia agradecendo a bela correntinha de ouro com o pingentinho de brilhante que o Francesco sensualmente colocava no pescoço dela.
Desta vez foi a vez da Leticia olhar a própria bolsa. Quanta despesa. Mas enfim. Quem não tem paciência não aguarda o bom senso chegar. Pensou e olhou de ladinho para o Luciano que conversava com os meninos – há tempos não se viam. Desde que o caminhão levara a parte etiquetada de cada um.
Lembrou uma frase que escutava quando criança de alguma professora mal humorada. Aqui se faz – aqui se paga. Ou seria o contrário. Aqui se paga – aqui se faz. Enfim.
Em seguida ao barulho da porta se fechando – veio o barulho da moto roncando. A tia avisou que sairia mais cedo. Francesco se dispôs a acompanhá-la e não mais retornou. Do hall do elevador pareceu vir o som da voz dela – rouca - falando algo como lo sole mio.
O Clóvis levantou e foi em direção a um espelho. Parecia se sentir envaidecido por ter ocupado um lugar de tamanho destaque. A prima Camila antes de sair tinha sido bem clara quando avisou que o tal Francesco era alugado para ser exibido a ele. Não entendeu bem as razões nem os porquês – muito menos o alugado. Mas foi se olhar narcisicamente. Pena que no caminho até o espelho esqueceu o motivo. Apenas arrumou os cabelos enquanto Carmem o chamava para a sala e colocava a cabeça no ombro dele.
Encerradas as trocas de presentes e após a muito alegre e afetuosa confraternização – foram se despedindo e saindo. Clóvis cumprimentou Luciano e comentou que iria a Itália em dois meses por uns dias de férias. Ofereceu-se para levar algo que quisesse para alguns parentes que porventura ele quisesse agradar. Uns livros talvez – já que ele gostava de ir a Livraria.
Luciano não entendeu muito bem – mas dispensou a gentileza avisando que era do Brasil – não tinha parentes na Itália. Clóvis nem piscou – mas observei que você fala todo o tempo em italiano. Que interessante.
Leticia ainda deu uma última olhada para a caixinha aveludada da joalheria – vazia – que ficara num canto. Comprara aquela correntinha que tanto queria e agora brilhava no pescoço da tia Luiza – que por certo percorria a cidade sobre a Harley.  
Os meninos felizes olhavam os presentes que deram e receberam e riam ainda das ideias da mãe. Só Roberto ainda fazia uma birra leve pelo - pode me chamar de papai. Renato somente ria. Aline foi reorganizar a mesa das comidinhas. Cecilia tentava explicar aos pais que o importante mesmo é deixar circular o amor que a noite de Natal reforça.
Depois do último brinde - Leticia voltou para a casa dela. Luciano para a casa dele. Ao abraço da saída ele acrescentou para ela - vamos seguir nos falando. Ela concordou sorrindo. E num gestual impetuoso – passou as mãos sobre si mesma – e gostou de começar a se vestir com a própria pele.  
Numa noite de muita chuva - a tia Luiza veio para uma visitinha rápida. Havia muitos meses que não aparecia. Desculpava-se por muita ocupação. Viera se despedir por motivo de uma viagem não planejada mas desejada.
Ao erguer o braço para um cumprimento mais afetivo – viu-se no punho dela - da tia Luiza - uma tatuagem. Uma chama. E dentro da chama vermelha uma letra. F.

 

 
publicado por Lêda Rezende às 22:59

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