Acordar todos os dias na mesma prematura hora – era um ato que já beirava e ultrapassava a cota dela de sobrevivência – há muito tempo. Mas responsável aceitava - o que tem que ser feito – que seja.
O atendimento era preciso e pontual. Não faltava um só agendado. E se começava tão deliberadamente cedo - se encerrava sempre objetivamente tarde.Os anos passaram como as páginas do calendário – sem interferência da vontade.
Mas neste dia foi diferente. O amanhecer se fez diferente. O relógio não despertou. Vai lá saber onde estava o erro – mas não despertou. Não fosse uma força recém conhecida - a Força do Hábito - e teria ocorrido um confronto de alto risco entre o horário e a rotina. Enfim. Já se foi pulando cama afora. Escada abaixo. Armário a dentro.
Nem sabe bem como se vestiu. Estava tão assustada que conferiu os pés de sapatos já no elevador. Sim. Eram gêmeos na cor e no estilo. Ainda bem.
Quando pisou na rua – olhou para o céu. Nem acreditou. Com toda aquela correria – olhou para o céu. Mas olhou como quem olha para um outro céu. Foi o que pareceu - porque foi em outro céu que foi parar.
Assim recriou o mar de lá de onde viera. Há muito tempo.
Morava de frente para o mar. Acordava diante das muitas cores. Escolhia as roupas sob as mil nuances da água. Azul - mais próximo. Esverdeada - mais para longe. Azul escuro - mais no horizonte. A luminosidade era tanta que desde cedo - já era dia avançado. Seguia para a atividade profissional margeando – ou sendo margeada - por ondas quebrando na areia. O olhar pulava entre o asfalto - os barcos e as pedras. Abria o vidro do carro e servia-se do vento morno e do aroma - para aquecer com suavidade os sentidos.
Assim recordou o mar de lá de onde viera. Há muito tempo.
Subiu a ladeira que ainda se sentindo nem lá nem cá. Tentou fazer contas. Nunca fora boa nisso em outra situação - quanto mais diante desta nostalgia aguda que fora acometida de repente. Mas fez e refez as contas. Muitos anos. Muitos.
Tentou lembrar o cheiro do mar. Um carro apressado que passou por ela cortou de imediato o aceno para a Memória. Tentou sentir o calor na pele. O vento frio da esquina por pouco não levou a pele tremulada. Tentou recompor a imagem dos pontinhos de luz dançando nas ondinhas. Uma garoa fina a fez cobrir a cabeça.
Assim despediu-se do mar de lá de onde viera. Há muito tempo.
Mas antes de descer as escadas para o percurso sobre os trilhos – parou. Deu uma piscadinha para cima. Para o céu de cá que estava encoberto. Para as gotinhas finas que caiam sobre o rosto. Acomodou com delicadeza a bolsa pesada sobre os ombros - e concluiu.
Ah! Como eu gostaria de caminhar na praia - pisar na areia. Olhou para os sapatos gêmeos na cor e no estilo – merecem descansar um pouco. Riu. Preciso sentir o gosto salgado na pele depois do mergulho. Preciso renovar – para continuar. Preciso de fantasia para que a realidade se mantenha. Até ousou arriscar se não seria o contrário. Mas afastou o pensamento controverso. Já fora muito para uma manhã de atraso e correria. Quase falou isso alto em direção aos sapatos.
Deixou o pedido aos cuidados do Universo. Correndo – desceu para os tais trilhos e seguiu em direção ao já cotidiano – há muito tempo.
Mas repetiu. Ah! Como eu gostaria de caminhar na praia - pisar na areia.