Blog de Lêda Rezende

Maio 19 2010

Tomara esta decisão. Sim. Seria seu presente de aniversário. Fui incluída. Veio no vôo da tarde. Ele foi buscá-la e enviou um recadinho. Para mim. A águia pousou. Comecei a rir. Estava deflagrado o final de semana.

 

Viera para assistir a peça. No Teatro da Livraria que tanto adorava ir. Tinha corpo, tinha alma, tinha moral, tinha traição. Tinha também tradição. Tinha a morte e o matar. Tinha até a lei e o espírito da lei. Sentou-se diante de todo este excesso. Diante do palco.

 

Lembrou das faltas. Naquele segundo em que um pensamento se instala. Como um entreato. Um corte de cena. Mas não chorou. Só lembrou.

 

Fora uma época farta. De ausências. Devia ser por isso que agora a alegria se contrapunha. Intensa. Semelhante. Não sabia se chorava sobre o caixão ou sobre os papéis. Muitos papéis sobre a mesa. Envelopes abertos e contas. Muitas contas. Naquele momento compreendeu – implícita e explicitamente - o significado da palavra falta. E o ato de chorar. Cada vez que enxugava o rosto, mais o olhar sobre as faltas ficava mais nítido. Ou desembaçado, como diria a minha avó.

 

Decidiu então parar de chorar. Estava já com uma reação colateral perigosa. A nitidez. Cortou.

 

Falta é uma função. E deve ser tratada como tal.

 

Curiosos - assistimos. Eufóricos - saímos. Do Teatro. Viemos para casa. Ele discordou de um comentário. Contestou. Deixou o espaço silencioso. Novamente a falta se fez presente. Faltaram palavras. Pelo menos as que seriam certas.

 

Falta vive se esgueirando. Atrás de uma porta, em cima de um armário, debaixo de um móvel. Surgiu uma oportunidade e lá vem ela rápido para o sofá da sala. Instala-se como convidada especial. É preciso estar sempre atenta. Para não ceder o lugar com tanta disponibilidade. Não conheço o que ocupe mais espaço que a falta.

 

Mas o vinho veio em auxilio. Respondeu eficaz ao chamado. Il brindisi. Bebemos e rimos por horas. Sentadas diante da mesa. Na cozinha.

 

Noite adentro. Alma a fora.

 

Tantas lembranças. Tantas pessoas. Ela repetia uma frase que era titulo de um filme. E riamos mais ainda. Os convidados evocados chegavam. A Humanidade veio caminhar em nossa cozinha. Individualmente. Às vezes aos pares. Outras vezes em turma. Tinha o idealista. O realista. O pessimista. O romântico. O sádico. O amadurecido. O adolescente. O criador. O ator. O avarento. O descobridor. O doutor. O falso libertador. O aposentado. A teórica. A milionária. A nova milionária. A que trocou de opção. A que manteve a solidão. Os que saíram mais cedo. Os que saíram mais tarde. Os que ainda estão.

 

A cozinha se fez exígua para caber todos os personagens evocados e convocados. Ficamos espremidas – também como diria a minha avó – em meio a esta confusão toda.

 

Diante de nós o cenário se mantinha. Quando Morfeu nos deu por vencidas, calamos. Nos recolhemos do nosso pequeno palco. Dispensamos os personagens.

 

Ele me aguardava. Silencioso. Decidira não participar além do já participado. Talvez uma sábia decisão. Sempre digo que ele é sábio. Se fez dono do silêncio.

 

Silêncio deve ser um jogo. Quando um o ganha, o outro o perde. Jogo de dupla. Deve ter também o match point. O domínio se abastece de silêncio. Li isso num livro uma vez. Quando é quebrado, perde sua força e até sua estética. Já não sei mais. Se foi assim que o livro falava. Mas lembrei disso agora. Nem sei porque. Deve ser ainda o efeito. Do vino. In vino veritas. Cresci escutando esta frase. Acho que agora entendi. Ri.

 

Pela manhã o preço. Que amanhecer. Amanheceu. Que rápido. Sim. O russo tem razão. E o austríaco também. Sempre tem um preço. Mas este seria pago estilo riso pelo riso.  E amanhecido. Riso amanhecido é o que há de melhor. A ser comemorado. Lembrei agora daquele filme. O personagem tinha o riso colado. Na face. Assim parecíamos.

 

Quando ela chegou para a rotina do dia recebeu, de imediato, uma lista de pedidos. Citados do alto da escada. Toda a rotina alterada. Ela se confundiu.

 

Café da manhã com macarronada.

 

Nunca vira antes assim. Falou que estávamos rindo muito. Suspeitou da causa. Formalizou o diagnóstico. Eu negava. Negava rindo. Ela denegava. E ria. E ela, assustada, obedecia.

 

Não existe melhor maneira de impor obediência. Só a surpresa faz um efeito tão imediato. Do faça ao feito é só uma questão de tempo operacional, não tem dialética que se interponha.

 

Subiram as bandejas. Parecia um banquete às avessas. Macarronada, molho à bolognesa, ovos mexidos e soro oral para hidratação. Soro oral foi perfeito. Mais risos. Fez um efeito maior que o vinho. Aquela humilde garrafinha plástica, contendo um ingênuo líquido cor-de-rosa, causou mais riso que o mais seleto dos vinhos. Muitos risos. Os enólogos podem me encarcerar, mas é verdadeiro. Ríamos só de olhar para a garrafinha.  Mais risos. Nem na Sicilia seriam tão criativos. E olha que criatividade lá não falta. Até vulcão tem.

 

Quando a cura se estabeleceu, saímos.

 

Só um destino cabia. Recuperadas da nossa festa isolada, convocada, invocada e povoada, fomos para o lugar significante. Ou Lugar significante. Ou Significante. Sem Lugar. Nem lugar.

 

Maiúsculas e minúsculas não foram inventadas à toa. É parte de um processo filosófico. Não sei bem porque, mas não se aprende isso em cultura formal. Só na informal. E talvez individual. Seria muito útil ao caminhar da Humanidade noções básicas como essa. A Filosofia das maiúsculas e minúsculas.

 

Liberdade. Assim foi comemorada a data de nascimento e renascimento. E – a partir deste momento – com uma maior tentativa de sabedoria, sem convocações nem provocações. Ficou assim proposto e acordado pelas partes envolvidas. Nos despedimos. Entrou no vôo de volta. Em todos os vôos de volta.

 

E - no último aceno já na escada de acesso ao embarque - demos vivas a Marco Polo!

publicado por Lêda Rezende às 16:27

Até que enfim resolveu voltar à sua escrita, que nos trouxe certas saudades de leitura dos Textos de Lêda Resende, não sei se já publicados!!
Caravaggio a 19 de Maio de 2010 às 17:03

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