Blog de Lêda Rezende

Dezembro 31 2009

 

Nunca saíra daquela pequena cidade.

 

Nascera e se tornara adulta no mesmo bairro. Toda a vida circulara diante dos mesmos códigos.

 

O bairro onde nascera portava uma simbologia. Vinha de um tempo de escravos. Mas se chamava Liberdade. Havia música pelas esquinas. Havia danças. Rituais ecléticos preenchiam de esperanças os corações. A comida era vendida nas ruas – o que dava um cheiro peculiar.

 

Tudo funcionava como se fora um universo particular. Girando não sei se dentro ou fora – do universo social.

 

Ali fora alfabetizada. Orientada. Vinha de um núcleo familiar pequeno. Apenas mais uma irmã. Cedo conheceu o parceiro. Cedo casou. Mudaram-se com os poucos pertences e presentes para uma casa pequena. Próxima da família de ambos. E lá ficaram por toda a vida.

 

Um dia avisou. De um ímpeto só. Escolhera mais um outro futuro. Trabalharia na área da saúde. O marido se surpreendeu. Desde quando. Por que. Para que.  Melhor ficar a fazer o que tem em casa.

 

As perguntas foram muitas. As insinuações mais ainda. Desconsiderou uma por uma. Continuou apenas informando a composição da decisão.

 

Vai lá saber o que despertou nela. Nunca soube ao certo a causa. Mas lidou muito bem com as consequências.

 

Estudou com dificuldade. Precisava trabalhar para completar o curso. Precisava de livros. De roupas brancas. De material próprio. Mas na mesma proporção das dificuldades – encontrou soluções. Não tinha a quem solicitar. Se é assim – concluiu – solicito a mim mesma.  

 

Trabalhou. Noite e dia. Intercalando livros com cuidados da casa e do filho recém nascido. Amamentou com ele no colo e o livro na mesinha ao lado. Assim estudava. Lavou e passou roupa recitando nomes e técnicas de procedimentos.  

 

Decorou pequenas fórmulas. Revisou contas.  

 

Enfim concluiu o curso. Fez um concurso. Público. Aprovada- entrou para o seu primeiro emprego. Feliz. Conseguira.

 

E lá está há quarenta anos. Quarenta anos. Neste mesmo emprego. Sem faltas. Sem atrasos. Sem queixas. Muitos entraram e saíram. Muitos chefiaram. Muitos outros desistiram. Mas ela continuou.

 

Decisão é parceira da existência. Uma vez conquistada – para sempre priorizada.    

 

O filho cresceu. O marido mais apressado - se foi numa noite depois de algum sofrimento. Cuidou dele até o final. Chorou. E foi guardando as lembranças nas dobras do lencinho.  

 

Assim poderia ser contada a vida dela. Desse jeito linear. Mas nem sempre a vida entende que pode assim ser vivida. E surge uma contramão aqui ou ali. Um desvio.

 

De tanto cuidar – descuidou de si mesma. E o corpo não perdoa descuidos. Cobra. Aponta. Expõe.

 

Fez a cirurgia. Chorou quando lembrou o tempo que amamentava. Chorou pelo passado. Pelo presente. E pelas perdas. E duvidou – pela primeira vez - do futuro. E talvez pela primeira vez na vida toda – reclamou. Desaprovou.

Mas sabia fazer rimas. E continuou. Lutou.  

 

E durante essa poesia que inventou – surgiu uma oportunidade. Única. E para ela. Que nunca de lá saíra. Que nunca atravessara outros mares. Nem terras. Nem sotaques. Para ela o Mundo era muito maior que um globo. Ou um planeta. Era de uma imensidão que assustava. E quando pensava assim – segurava o portão da casa com força.

 

Mas recebeu um convite. Talvez até uma ordem. Vou mandar lhe buscar. Você ficará um mês aqui. Com todos nós. Desde que saímos daí sonhamos com esse dia.  Agora o dia chegou. Vai passear pela cidade. Vai descansar. Vai conhecer onde moramos. Vai escutar outros sons. Virá de avião. Nada de estrada.

 

Eis uma imagem inesquecível. Ela sozinha. Com uma roupa branca. Um casaquinho bege sobre os ombros. Uma pequena valise nas mãos. Um sorriso tão feliz que – incontido - saiu dela e iluminou todo o saguão.

 

Veio. Abraçou um por um que a aguardava. Escaparam lagriminhas emocionadas. E falou. Então é assim. Então estou aqui. E só demoraram duas horas e vinte minutos. Pensei que fosse tão longe.  

 

E o mês se fez alegre. Trocou de Liberdade. E celebrou também a nova. Fez-se de econômica a consumidora. De curiosa a integrada.

 

E como na Vida não existe Matemática nem lógica – quando retornou – repetiu os exames. Estava curada. Já não temia. Aprendera sobre distâncias e espaços. Sobre limites e infinitos.

 

E nunca mais segurou - assustada - o portão da casa com força.

 


 


Bom ano,muita alegria e amor.bacini.
Peter a 1 de Janeiro de 2010 às 16:55

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