Fiquei olhando os pares. Dentro do salão. Repleto e preeenchido por dança e música.
Cada par se integrava. Se desintegrava. Dava até uma confusão mental. E tive a sensação de um - virar dois. De dois - virarem três. Até de dois – virarem um. E de muitos - virarem nenhum.
Assim a dança os desnudava. Expondo muito mais as emoções do que os corpos.
Ela era a mais nova.
Não estava desacompanhada. Estava sem acompanhante. Dançava com quem a convidasse. Tinha a pele muito branca. Magra. Esguia. O cabelo repuxado para trás deixava-lhe o rosto mais à mostra. Traços finos. Exóticos.
Ficava todo o tempo com a sobrancelha erguida. Como uma tatuagem. O vestido – preto - obedecia com rigor os contornos da pele. Usava uma delicadíssima e alta sandália. De camurça vermelha. O conjunto permitia destacar o que mais importava. Os pés. Por que para os pés - que olhava de momento em momento.
Dançava com cautela. Temia o encontro dos corpos. Mãos e rostos próximos. Corpo e pés afastados. Parecia não dançar. Só se apoiar. Tinha uma expressão triste no rosto. Mas sempre que agradecia ao seu par – sorria. E voltava - só - para a cadeira.
Eles eram dançarinos antigos.
Tinham um jeito teatral. Como se a dança fosse uma arte lúdica. Podia ser vivida como quisesse. Até com um pouco de desprezo. Sem cautela e sem controle.
Talvez a cumplicidade do casamento já não mais existisse. Mas a da dança permanecia jovem. Ele já idoso. Magro. Recurvado. Um terno preto dava um toque discreto de preparação. Ela mais alta. Disfarçava a idade com maquillage. Cabelos soltos e curtos cobriam uma parte do rosto.
Um vestido vermelho longo descia rebelde a curvas. Uma sandália preta com pedras brilhantes faiscava diante do vai-e-volta dos passos da dança. Não se olhavam. Mas se entendiam. Trocavam pernas e braços. Enlaçavam e desenlaçavam. Mas em nenhum momento se olharam ou se abraçaram.
Eles eram iniciantes.
Ela chegou tímida. Olhava mais para os lados que para o piso. Media espaços. Deslocava a roupa. Um vestido preto de tecido mais brilhante. Puxava sempre para baixo. Como se isso a fizesse menos visível. E ao mesmo tempo despertasse os olhares.
Parecia oscilar – entre se cobrir - ou se expor. Os cabelos eram longos. Avermelhados. Usava uma sandália preta. De salto tão incrivelmente alto – quanto fino.
Ele a guiava com cuidado. Lento. Porém mais confiante. Em si. E talvez nela. Quando o passo exigia que os corpos se separassem – e as mãos ficassem presas – ele a trazia com delicadeza.
E ela parecia vir com disponibilidade. Este era um dos poucos momentos que esquecia o vestido. E olhava para ele. Rindo. Ele fazia uma expressão de acolhimento – com os braços e com os olhos.
Eles eram ocasionais.
Entraram um pouco afoitos. Não decidiam a posição da mesa a escolher. Conheciam o espaço. Mas não sabiam lidar com ele. Demoraram a decidir. Decidiram. Arrependeram. Mas não mudaram.
Ela usava um vestido preto. Curto. Os cabelos de cachos caiam pelas costas. Talvez desobedientes ao planejado. Irritava-se de vez em quando. E os puxava para o lado do rosto. A sandália era preta. Com uma flor vermelha lateral.
Ele estava com um terno preto. Uma gravata vermelha. A flor vermelha do sapato dela e a gravata vermelha dele -- parecia ser a única comunicação compartilhada entre eles.
Dançaram duas ou três músicas. Suado – ele pediu para sair. Puxando os cabelos para o lado – ela o seguiu.
Há muitos anos assisti a um filme. Passava-se todo num salão de Baile. Uma filmagem atual. Sobre um período passado. Toda a História se passava sem que uma palavra fosse verbalizada. A música, a dança, o gestual e as roupas denunciavam vontades e recalques. Dominadores e dominados. Invasores e submetidos. O contexto social emoldurava as emoções. Mas o contrário se faz sempre - impossibilitado.
Inesquecível. Bendisse até a famiglia do diretor. Mas foi ali sentada. Diante do ritmo e da contorção dos corpos. Da mistura de sexos. Da ambigüidade dos gestos. Que me veio uma sensação forte.
Me vi assim. De repente. Dentro do tal filme. Participante anônima das mesas circundantes.
A Vida desfila diante de nossos olhos. Todo o tempo. Sem precisar pagar ingresso. Ou comer pipoca. Ela vai tecendo e compondo. A cada nó desatado - prossegue uma linha tortuosa. E meio que à deriva – nos fingimos cegos de nós mesmos.Ou melhor. Meio cegos de nós mesmos – nos fingimos à deriva.
Quando sai – não resisti. Dei uma olhadinha para trás.
Tudo continuava. E se repetia. Perfeito.